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Contos-->A entrevista -- 16/05/2009 - 14:12 (hans dammann) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.






A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.






A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`







A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







`
















A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.






A entrevista.


Às 5 horas e treze minutos da manhã de 27 de
março de 2009, Zordan Slávera abriu os olhos
pela décima primeira vez naquela semana.
Mas desta vez, o que ele viu ao redor de sua
cama foi algo diferente.
Como nas madrugadas anteriores, havia muita
gente de branco à sua frente.
Eram vultos indefinidos, que se moviam sem
parar, e trocavam palavras num idioma que
ele, por mais que se esforçasse, não conseguia
entender.
Em meio ao seu torpor, teve a sensação de que
se falavam ao mesmo tempo várias línguas
diferentes.
Mas naquela manhã do dia 27 havia
novidades:
identificou 3 personagens recém-chegados à
sala.
Suas calças e camisas coloridas destoavam do
branco predominante e, ao contrário dos
demais, conversavam discretamente entre si.
Zordan estava assim concentrado, tentando
agarrar no ar algumas palavras desse diálogo,
quando um médico velho, talvez o mais velho
da sala, se inclinou sobre ele, chegou a
encostar o queixo no seu peito, e sussurou
perto de seus ouvidos:
`Zordan´, disse, `sou o doutor Bresovitch.
Ivan Bresovitch. Russo. Ucraniano. De Kiev´
Fez uma pausa, como que para se certificar
de que suas palavras foram ouvidas, e
prosseguiu:



`Você está entre amigos. Está conosco há
duas semanas. Hoje é o dia que escolhemos
para você contar a sua história para o
mundo´.
Zordan percebeu que os vultos brancos se
moviam mais devagar, sentiu que todos
estavam com a atenção voltada para o que
Bresovitch dizia:
`Estão aqui Bob Clark, do New York Times,
Nickolas Raidemann, do Spiegel, e Abdul
Ik Svar, da El Jazzera.
São os editores-chefe de suas publicações, e
foram sorteados de uma relação que continha
os 25 jornalistas mais importantes do mundo.´
Um dos vultos brancos pediu licença, se
aproximou, ergueu um braço de Zordan e
mediu sua pressão.
Bresovitch continuou, falando lentamente:
`A experiência que você viveu, Zordan, é
única no mundo. Ninguém chegou onde
você chegou. 6 bilhões de pessoas querem
ouvir o relato de sua extraordinária jornada.
Cada um dos jornalistas terá direito a fazer
3 perguntas. Nada mais. Meia hora depois,
as suas respostas estarão voando pelo mundo.´
Bresovitch se aproximou mais de Zordan:
´E irão levantar o véu de um mistério que
persegue a humanidade há mais de dois mil
anos.´
Bresovitch aguardou que dessem água a
Zordan, e continuou:
`Lamento, Zordan, submetê-lo a esse esforço
antes de você se recuperar. Mas não sabemos
a que microrganismos, radiações e estresse
psicológico você esteve exposto. Ninguém sabe




o efeito de tudo isso.´
Bresovitch mediu as palavras:
`Há razões para eu ser objetivo, Zordan, se é
que você me entende.
Peço-lhe: faça um esforço, e converse com os
nossos jornalistas.´
Com a cabeça, Zordan fez um `sim´quase
imperceptível.
O doutor Bresovitch sentou-se numa cadeira
ao lado da cama, e fez sinal para que o
primeiro jornalista ocupasse uma cadeira ao
seu lado.
`Sou Clark, Bob Clark, do New York Times.
Permita-me cumprimentá-lo por sua extrema
coragem e sangue frio...
Gostaria de lhe perguntar, sr. Zordan, se
durante toda a sua viagem o senhor se
manteve lúcido e consciente.´
A pergunta aparentemente não agradou a
Zordan, que balançou levemente a cabeça
e em seguida, olhando diretamente para
Clark, respondeu sem hesitação,
falando pausadamente:
`Nas circunstâncias, senhor Clark, nas
circunstâncias...os níveis de lucidez, de
consciência...é algo diferente do que se
conheceu até aqui...´
Zordan pediu um copo de água antes de
continuar:
`Desculpe...devo dizer que em dado momento
fui envolvido...como dizer ? ...por uma
aura de euforia...senti um arrebatamento
intraduzível...uma sensação que vinha do
fundo, mesmo, da alma...algo como encontrar
a Felicidade...sinto, senhor Clark, mas
me faltam as palavras...talvez seja o que os
indianos chamam de Nirvana´...
Zordan cruzou as mãos e manteve-as sobre
o peito.
Fechou os olhos, depois foi buscar energias
com uma longa inspiração de ar e continuou:
`Fui literalmente enviado para um novo
patamar do Universo...porém posso lhe
assegurar que em nenhum momento, repito,
em nenhum momento perdi a noção do que
estava acontecendo...´
Bresovitch ajeitou-se na cadeira e Clark
tossiu baixinho.
Depois de alguns segundos de silêncio,
Clark retomou:
`Muito obrigado, senhor Zordan. Deixe-me
fazer a segunda pergunta.
`Um sem número de pessoas, de todos os
países, viveu pelo menos parcialmente uma
experiência semelhante à sua. Há milhares de
relatos e centenas de livros sobre o assunto.
Refiro-me à sensação, sempre repetida, de que
no momento de cruzar a linha entre a vida e a
morte, a pessoa ingressa num túnel escuro e
depois é envolvida por uma luz branca, muito
forte, inebriante.
Pelo número de relatos, diria que é um
fenômeno recorrente.´
Clark fez uma pequena pausa.
`Aconteceu também com o senhor ?´
Zordan ajeitou a cabeça no travesseiro, fixou
o olhar no teto e deixou que aos poucos um
sorriso iluminasse seu rosto.
`Não quero ser arrogante, senhor Clark´,
murmurou, `mas o senhor acerta em cheio




quando diz `parcialmente´. Como disse, não
quero ser pretencioso, mas devo lhe assegurar
que nenhum ser humano, em qualquer tempo
ou lugar, viveu experiência semelhante à
minha.
Como tanta gente, li alguns desses relatos que
o senhor menciona. Li no mínimo um livro
inteiro sobre o assunto. Por isso posso lhe
assegurar, com absoluta certeza:
conhecer o outro lado é mil vezes mais
emocionante que a viagem no túnel preto.´
`Então houve essa viagem ?´, perguntou
Clark.
Zordan respondeu vagarosamente,
sublinhando algumas palavras.
`Como já aconteceu a muitos outros, eu
estava entre e vida e a morte...na verdade,
desenganado pela junta médica...os
batimentos cardíacos cessaram por completo.
Veio o médico-chefe e atestou minha morte
cerebral.
Foi então que eu saí do meu corpo e passei a
flutuar perto do teto do centro cirúrgico, vendo
lá de cima tudo o que acontecia comigo...
meu corpo estendido, inerte, rodeado por
quatro médicos que cuidavam dos
preparativos para a minha passagem de
paciente a cadáver...um deles fechou meus
olhos e cruzou minhas mãos sobre a
barriga...outro cobriu meu rosto com o
lençol...o mais velho enfiou um cigarro na boca
e começou a fumar.
Não senti raiva, não senti medo.





Eu estava sublimado, flutuando acima de tudo.
E foi flutuando que entrei no túnel escuro...´
Um dos vultos brancos esfregou o braço,
arrepiado.
Outros, pigarrearam baixinho.
O doutor Bresovitch mais uma vez mudou de
posição na cadeira.
Clark esboçou mais uma pergunta, mas foi
interrompido por Bresovitch:
`Desculpe, mr. Clark, mas o senhor já fez suas
três perguntas. É sua vez, herr Raidemann.
O editor do Spiegel leu num bloquinho a
pergunta que iria fazer:
`Senhor Slávera. Ao responder a segunda
pergunta do meu colega Bob Clark, o senhor
disse ter chegado do outro lado.
Como é esse lado, senhor Zordan ?´
Zordan virou-se para Raidemann e o velho
sorriso novamente apareceu no seu rosto.
Enquanto falava, o sorriso aumentou,
tornou-se enorme, tomou conta do rosto.
`O senhor não vai acreditar, senhor
Raidemann´, disse Zordan, `o senhor nunca
vai acreditar...ninguém nessa sala vai
acreditar´.
O sorriso ficou maior que o rosto e Zordan
arrematou, triunfante:
`Ninguém nessa sala, ninguém no mundo vai
acreditar.´
Os vultos brancos estavam imóveis
Bresovitch desta vez levantou da cadeira,
lentamente, e improvisou um alongamento
com os braços estendidos.




Zordan, por sua vez, estava visivelmente
extenuado.
O ar lhe faltava, respirava com dificuldade.
Estranhamente, o sorriso continuava lá.
Bresovitch de novo passou a palavra a
Raidemann.
Desta vez a pergunta não veio do bloquinho,
veio da ponta da língua do jornalista:
`Senhor Slávera, o senhor certamente nos
surpreende. Embora o tema outro lado sempre
suscite pensamentos sombrios, o senhor
extravasou alegria ao mencioná-lo.
Poderia nos dizer porquê, senhor Slávera ?´
Foi na mosca.
Raidemann fez a pergunta que todos queriam
fazer.
Uma invisível corrente de aprovação tomou
conta da sala.
Todos esperavam a resposta de Zordan.
E ela veio sob a forma de um trem numa
descida.
Primeiro o sorriso de Zordan ganhou alguns
soluços, transformou-se numa espalhafatosa
risada e em seguida virou uma
gargalhada incontrolável.
Bresovitch ficou meio sem jeito:
`Vamos fazer uma pausa, Zordan ?´
Mas com a ponta do lençol Zordan enxugou os
olhos e autorizou Raidemann a fazer a terceira
pergunta.
`Senhor Slávera, não vou lhe fazer nenhuma
pergunta, abro mão disso para, interpretando
o que sinto nesta sala, lhe pedir uma descrição
de tudo o que o senhor viu do outro lado´.




Zordan cochichou algo ao ouvido de
Bresovitch, dois vultos brancos se apressaram
a colocá-lo na posição `sentado`.
Um terceiro vulto montou uma mesinha na
cama, e lá colocou jarra de água e copo.
Zordan fechou os olhos, durante alguns
minutos ficou absorto, como que rezando.
Depois começou, solenemente:
`Senhor Raidemann, eu como o senhor e todos
aqui, também tive a minha infância. Tive um
avô que eu venerava, amiguinhos, paixão
precoce por uma professora... fiquei
afetivamente ligado a vários lugares, como
a praça do meu bairro, a escola, minha casa,
minha casa na arvore, e me divertia com
mil coisas...a roda gigante do Parque Staat, os
álbuns de historias em quadrinhos, as frutas
roubadas no terreno dos Swaben...e mil
outras delicias, como os doces da Pickert,
ou aqueles feitos pela minha tia Ivana...os
gigantescos milk-shakes aos sábados...
Durante a adolescência, outros fatos e
coisas que ficaram na memória...as
matinês no cinema de Lod, os primeiros
namoros, a primeira calça comprida...
E assim foi sendo até os dias de hoje:
as discôs enlouquecidas, o casamento
celebrado pelo padre Igor, a primeira
filha, batizada como Ava...são emoções
e alegrias incontáveis, que ficaram para
sempre na minha memória...e que um
dia, meu caro Raidemann, um dia
voltaram todas juntas e vivas como
nunca...assim que saí do túnel preto, a
festa começou...imagine que festa, senhor
Raidemann: ser recebido pela amada
professora Ana, receber um beijo no rosto
da Ava Gardner, comer doces da Pickert
até não querer mais, dançar com Gene Kelly
ao som de Singing In The Rain, assistir ao
parto da Avinha, dar uma pitada no cigarro,
sim, dele, Humphrey Bogart, tomar quanta
Pepsi que eu quisesse, rodopiar alucinado
com minha mulher Tammy, derrubar o
goleiro Igor com uma rasteira cruel.´
Neste momento, Zordan desfaleceu.
Um murmúrio quebrou o silêncio.
Bresovitch agiu com determinação:
com um gesto afastou as sombras brancas da
cama e acionou os 3 vultos que formavam
a tropa médica de emergência.
Em menos de 30 segundos eles iniciaram os
procedimentos para trazer Slávera de volta.
Medida da pressão, avaliação de pulso e
de batimentos cardíacos, medição de
temperatura...a rotina estava sendo seguida.
O próprio Zordan se encarregou de quebrá-la.
Suando, respirando com dificuldade, reuniu
forças para chamar o terceiro jornalista:
`Abdul ?´, perguntou quando um homem
barbudo se aproximou da cama.
`Abdul Ik Svar, do El Jazzera`, completou o
homem.
Zordan Slávera fez um esforço sobre humano
para sussurar:
`Por Alá...é tudo verdade...desculpe ...me
chamam para uma...festa...´
E com um leve sorriso, fechou os olhos.







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