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Contos-->Fotografias -- 14/04/2001 - 11:45 (Nelson Machado) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Josias estava com pressa. Ele precisava tirar as fotos, fazer exame médico e estar de volta à empresa até as quatro da tarde. E já era uma e meia.
Enquanto atravessava a rua em direção à máquina de fotos que ficava na esquina próxima à sua casa, Josias sorria. Tinha sido muito esperto. Como sempre.
O emprego não era para ele, como nada na vida tinha sido. Josias sempre foi daquele tipo de pessoa que se apossa do que não lhe é devido. Via isso como uma demonstração de força, uma prova de coragem, de audácia.
- Ficar com o que já é da gente por direito não é vantagem. - dizia ele aos poucos amigos. - A vantagem está em conseguir aquilo que não era para ser nosso. Isso é que é conquista!
Com esse bizarro conceito de vencer barreiras, Josias não tinha medidas. Tudo era justificável, tudo era permitido, desde que a finalidade fosse vencer... Conquistar... Ganhar, enfim. Não que ele fosse uma má pessoa. Ele não se sentia um mau sujeito. Na verdade nenhum mau acha que é mau. Os bons, em geral sabem que são bons. Sabem que estão fazendo boas coisas. Mesmo os modestos enxergam sua bondade com os mesmos olhos de quem a recebe. Quem faz coisas ruins é que não enxerga com os mesmos olhos de quem as sofre. Os maus, quase sempre, se sentem fortes, se sentem defensores de seus direitos, encontram motivos os mais nobres para atitudes vis. Mas nunca se ouviu um mau dizendo: "Eu sou uma pessoa ruim".
Josias não se sentiu uma má pessoa quando provocou um congestionamento monstruoso na ponte da marginal que dava acesso à região onde era a faculdade em que ia prestar o vestibular. Era uma forma de evitar que muitos dos concorrentes chegassem a tempo para o exame. Assim ele já eliminava um bom número de pessoas que concorreriam à vaga que talvez passasse a ser dele. E, afinal, ele tinha sido esperto o suficiente para bolar aquele plano. Ele tinha sido audacioso o suficiente para pegar emprestado o carro de um amigo, fazer com que o motor afogasse na saída da ponte e deixar o carro parado lá, de lado, atrapalhando o trânsito de maneira quase irrecuperável. Ele tinha sido ágil o bastante para sair dali, apanhar um táxi uma rua depois e chegar a tempo para o exame. Ora, um sujeito esperto, audacioso e ágil merece ser um vencedor. Josias conseguiu sua vaga. Raspando. Muitos prováveis colegas não chegaram realmente a tempo. Perderam o exame. Mas talvez entrassem no ano seguinte. Não seria um prejuízo tão grande.
Também não tinha nada a ver com ser bom ou mau o fato de não freqüentar tão assiduamente a faculdade. Se ele podia contar com alguns amigos que assinavam a presença para ele, por que se cansar indo todos os dias? Enquanto os bobos ficavam lá, ouvindo aquele amontoado de besteiras, ele estava armazenando energias para o que realmente importava: ganhar a vida. E um homem tem que ganhar o seu próprio sustento. Josias vivia sozinho em São Paulo, cidade grande, cidade dura, e não podia ser um fraco. Os fracos são devorados. Ele tinha que ser um devorador. Só que estudando de manhã e com um empreguinho de meio período à tarde ele iria ser apenas mais um na cidade. Um igual a todos. E ele não tinha nascido para ser um igual. Ele era um forte! O fato de um amigo ter sido pego falsificando a assinatura dele na lista e ter sido penalizado por isso não tinha nada a ver com ele. O amigo é que era o culpado por não saber fazer as coisas direito.
Josias sim, fazia as coisas direito. Tinha idéias, arquitetava planos, maneiras de ganhar dinheiro em prazo curto para economizar tempo. E sempre se deu bem com seus truques. Se alguém saía lesado, ele não se incomodava. Para haver um vencedor é preciso haver um perdedor. Paciência que o outro escolheu ficar do lado errado. Josias tinha escolhido o lado da vitória.
A máquina de fotos na esquina era daquelas cabines onde se entra, coloca-se uma ficha, aperta-se um botão e fica-se sentado olhando para frente a espera do clarão que indica que se foi fotografado. Essa ficava ao lado de uma padaria, onde eram vendidas as fichas. Se o cliente soubesse operar a máquina, o rapaz responsável ficava muito feliz por não ter que sair da confortável cadeira em que passava seus dias resolvendo palavras cruzadas.
Josias comprou uma ficha e foi direto para dentro da cabine. O rapaz fingiu que nem viu. Só iria se fosse chamado.
Josias achava que, apesar de nunca se poder contar com uma grande qualidade nas fotos dessas máquinas, aquela sairia ótima, porque ele estava se sentindo muito bem. Tinha dado o grande golpe de sua vida. Depois de ter trancado a matrícula na faculdade, na qual nunca se formaria, ele tinha levado uma vida até que tranqüila. Seus pequenos truques de sobrevivência lhe garantiram um certo conforto, embora houvessem afastado, no decorrer dos anos, alguns bons amigos. Ele não entendia o porquê. Muitos deles se afastaram de maneira até violenta, sem motivos reais. Se estavam se sentindo prejudicados por ele de alguma forma, a culpa era deles. Os fracos perdem. Quem não devora é devorado.
Mas aos vinte e oito anos, começava a se fazer necessário um emprego fixo, um local onde ele pudesse dizer que trabalhava, uma forma de justificar socialmente sua existência. Ele precisava de alguma coisa assim como um ponto de partida para novos empreendimentos. Começava a se fazer necessária a imagem do homem responsável e enquadrado no esquema social. E já que isso era necessário, que assim fosse. Ele iria atrás de sua fachada social.
Sentado no banquinho da cabine fotográfica, Josias puxou o pente do bolso de trás e deu uma ajeitada nos cabelos castanhos bem cortados. Um clique daquela máquina, em seguida uma inspiração profunda em frente a um equipamento de raios X e ele estaria a caminho do sucesso total. Era engraçado pensar que bastou trocar algumas fichas em uma prova de seleção para seu nome ser colocado no lugar do sujeito do lado que sabia tudo e que, com certeza, pegaria uma das vagas na empresa. Vaga que foi ocupada por ele. Paciência. O mundo é dos espertos.
Um botão pressionado, um clarão, um breve clique e Josias já estava do lado de fora da cabine, aguardando os dois minutos que a máquina pede para aprontar as quatro cópias da foto. Um novo ruído e uma ponta de papel veio surgindo. Mas quando a primeira cópia já estava fora da máquina, Josias ficou, primeiro, intrigado. O rosto que vinha estampado no papel não era o dele. Era de um homem bem mais velho, algumas mechas brancas de cabelos encimando um rosto bem magro de olhos pequenos e lábios finos. Em seguida, Josias ficou irritado. Pegou as fotos e foi falar com o rapaz responsável pela máquina.
- Não sei o que é isso não, moço. A máquina deve ter guardado a foto de alguém que tirou antes e soltou agora. O senhor vai lá e faz outra.
- Sim, mas quem vai pagar a ficha? Eu já paguei e não recebi minha foto.
- Tá bom... - o rapaz largou as palavras cruzadas e começou a se levantar. - Eu vou lá dar uma olhada.
Mas não chegou a sair da frente da cadeira. Uma pessoa havia se aproximado por trás de Josias.
- Por favor, amigo, uma ficha pra foto.
Enquanto o rapaz pegava a ficha e cobrava, Josias pôde ver bem o novo freguês. Um homem de uns quarenta e cinco anos, algumas mechas brancas nos cabelos, muito alto e magro, olhos pequenos, lábios finos. O homem da foto!
Antes que Josias pudesse dizer qualquer coisa, o homem entrou na cabine. Um minuto depois ele saiu, esperou e voltou com um ar aborrecido.
- A máquina não soltou nenhuma foto!
Josias foi até a máquina e ficou olhando. Alguma coisa não estava muito certa por ali. Voltou até onde o homem conversava com o rapaz.
- Meu senhor, me desculpe... O senhor já tinha usado aquela máquina antes?
- Não, nem sou daqui. Só parei porque vi a máquina, precisava de umas fotos e quis aproveitar. Mas parece que dei azar.
- Então... como o senhor explica... isso? - Josias mostrou as fotos para o dono do rosto.
- Ah, que bom. Afinal, não estava quebrada. Acho que fui impaciente e não esperei o tempo suficiente, não é? - e foi pegando as fotos. - Muito obrigado, amigo.
Colocou as fotos no bolso e foi embora, sem que Josias tivesse tido tempo de dizer coisa alguma. Ainda estranhando o caso insólito, Josias voltou à máquina com a nova ficha que o rapaz havia dado a ele. Sentou-se, esperou o clique e saiu da máquina. Quando o papel foi retirado, a foto estava vazia. Na verdade, não totalmente vazia. Ele não estava na foto, mas via-se a parede interior da cabine e uma ponta de alguma coisa esbranquiçada, com curvas, em camadas sobrepostas, como se fossem penas. Josias ficou ainda um minuto ou dois parado ali olhando para aquela foto e para dentro da cabine. Talvez houvesse algum mal ajuste, talvez a lente não ficasse apontada diretamente para quem se sentasse no banquinho. Talvez a câmera estivesse fotografando algo acima dele ou à direita dele. Entrou de novo, examinou tudo, não achou nada lá dentro que se parecesse com aquela imagem cheia de curvas. Saiu e já estava indo reclamar de novo quando sentiu um movimento às suas costas. Virou-se a tempo de ver um pombo entrar esvoaçando na cabine, esbarrar na parede, ficar de lado e sair voando em direção ao prédio em frente. Asas! Olhou para a pequena foto na sua mão e a imagem ficou clara. Asas brancas. Mas, como elas estavam na foto se só estiveram na cabine uns cinco minutos depois?
Josias ficou fascinado. Chegou a esquecer do emprego, dos planos para o futuro, das possibilidades que um cargo poderiam proporcionar. Ali estava acontecendo uma coisa completamente inusitada e se aquilo durasse algum tempo, talvez ele pudesse obter alguma vantagem da descoberta. Mas qual?
- Que porcaria de chance é essa? Uma chance pela metade? Eu posso saber de coisas que vão acontecer, mas só dentro da cabine?
Josias não era homem de se deixar vencer. Não era homem de perder uma chance daquelas. Uma oportunidade única! Saber coisas que mais ninguém sabia! Se qualquer cartomante, fingindo que sabe, já ganha um bom dinheiro com essa idéia, imagine alguém que saiba de verdade!
Resolveu fazer um teste. Correu em casa, pegou um espelho de tamanho médio e voltou à máquina. Comprou uma nova ficha, entrou na cabine, colocou o espelho em um ângulo que ficasse de frente para a lente ao mesmo tempo em que refletia parte da rua e acionou o botão.
Quando a foto saiu, mostrava uma porção de gente que ainda não estava ali. Ele não conseguia distinguir direito, pois a foto era muito pequena. Levou para casa e analisou com uma lupa. Enquanto olhava a pequena foto, vasculhava a rua em frente, da janela. Em poucos minutos, a rua estava cheia de pessoas que corriam para uma caminhonete com um alto-falante. Não era nada importante, talvez um vendedor de carnês ou de derivados de milho. Isso não fazia diferença. O que importava era que a idéia tinha dado certo. O espelho havia levado até a lente da cabine fotográfica um grupo de pessoas que só estaria naquele local alguns minutos depois!
Josias ficou tão excitado com a descoberta que esqueceu definitivamente o novo emprego e os planos que tinha traçado para o seu futuro. Futuro! Pra que fazer planos de um futuro duvidoso, se ele tinha nas mãos a certeza do que estava por vir. E sem grandes custos. Afinal, aquilo estava acontecendo em uma máquina de uso público, com fichas baratas e...
- Uso público! Não... Não posso permitir. Se outra pessoa entrar na máquina e acontecer o mesmo, eu vou ter que repartir esse conhecimento e em pouco tempo todo mundo vai poder tirar fotos do futuro. Se for como estou pensando, se só acontece comigo e os outros não podem ver nada, como aconteceu com aquele senhor grisalho, em pouco tempo alguém vai mandar consertar a máquina e eu perco tudo. Eu tenho que dar um jeito de manter as coisas como estão, pelo menos até descobrir uma maneira de tirar alguma vantagem disso tudo.
Josias desceu correndo e foi procurar o rapaz das fichas.
- Quantas você ainda tem?
O rapaz afastou o olhar das palavras cruzadas com uma indisfarçada má vontade. Abriu a gaveta e contou. Havia quinze fichas.
- Não venda mais nenhuma pra ninguém. Eu quero todas. Tome o dinheiro que eu tenho como sinal. Vou buscar o resto e já volto.
O rapaz achou ótimo. Assim poderia passar o resto do dia em paz. Josias voltou em poucos minutos com o resto do dinheiro, pegou as quinze fichas e foi para a máquina.
Em três fotos que fez com o espelho, com intervalos de meia hora entre uma e outra, Josias não conseguiu captar nenhum fato que parecesse interessante ou lucrativo. Mas a quarta foto foi surpreendente. Assim que a foto saiu, ele voltou para dentro da máquina, sentou-se com a lupa e ficou intrigado com aquela multidão olhando para a lente. Por que estariam todos olhando para lá? Na verdade, estavam todos olhando para o espelho. O que estariam vendo? Será que dentro de cinco minutos as pessoas descobririam o que estava acontecendo e iriam se juntar em volta dele para lhe roubar o segredo e as oportunidades que ele traria? Sim, por que as pessoas em geral, os fracos do mundo, adoram se aglomerar em cima de eventos incompreensíveis, pensou Josias. Estátuas que choram, pedras que respiram, curas inexplicáveis, tudo atrai multidões, tudo provoca aglomerações. Multidão adora o imponderável... e as desgraças.
Um arrepio percorreu o corpo de Josias. A súbita compreensão do que poderia significar aquela foto teve um efeito terrível sobre seus membros. Em lugar de sair correndo, ficou prostrado, sem ação, sem movimentos, numa das mãos a lupa e na outra a foto com dezenas de pessoas olhando diretamente para a câmera, para o espelho, para o local onde ele estava. Não conseguiu esboçar um gesto, nem quando compreendeu, nem quando começou a ouvir o poderoso motor se aproximando, o som estridente de pneus raspando no chão numa inútil tentativa do motorista para frear o enorme caminhão desgovernado. Em seguida, Josias não viu, nem ouviu mais nada. O caminhão se abateu sobre a cabine fotográfica que se despedaçou. O corpo de Josias foi arrancado de dentro, jogado para o alto e caiu em cima do motor do caminhão cujo capô havia aberto com o choque. Sua cabeça despedaçada pelo motor ainda em funcionamento, metade do corpo para dentro, as pernas penduradas para fora daquela enorme boca mecânica. Um passante mórbido ainda teve espírito para uma comparação, dizendo que o caminhão parecia estar com a boca aberta e que o homem ali dentro tinha sido... devorado.
No meio da aglomeração, um rapaz de uns vinte e três anos não parecia impressionado. Não desligou nem um instante sua câmera de vídeo. Ele sabia que iria faturar um bom dinheiro vendendo aquele material para algum jornal de TV. Afinal, ele já estava gravando antes de tudo começar. Tinha gravado o pavoroso acidente inteiro. Graças à fabulosa polaroid que ele tinha. A estranha máquina fotográfica fazia fotos de coisas que aconteceriam alguns minutos depois. Com isso ele estava ganhando um bom dinheiro gravando locais de acidentes desde um pouco antes de acontecerem. E aquele tinha sido um dos mais fáceis. Afinal acontecera na frente do seu prédio. Era realmente uma sorte ele ter comprado aquela máquina velha do rapaz que vendia fichas na padaria. Se o rapaz soubesse o que tinha vendido!
Dentro da padaria, sem sair de sua confortável cadeira, sem demonstrar qualquer interesse pela tragédia lá fora, o moço das fichas continuava com suas palavras cruzadas. Agora ele resolvia a última, com um sorriso de satisfação:
- Fado, sorte... Com sete letras...

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