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Cronicas-->O INFERNO -- 27/12/2005 - 21:26 (Roberto Stavale) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O INFERNO

Como era de se esperar, numa certa noite eu morri. Desencarnei, como dizem os espíritas. Enfim, fui para a cidade dos pés juntos.
Nem bem tinha deixado a minha matéria, num piscar de olhos encontrei-me numa enorme fila dentro de uma gare, que lembrava muito a Estação da Luz. Aproximadamente duzentas pessoas dirigiam-se ao balcão, onde, em letras garrafais, estava escrito - INFERNO.
O trem saiu com mais de cinco horas de atraso. Os comissários de bordo, com seus uniformes vermelhos, desculpavam-se, culpando pelo atraso o excesso de passageiros.
Depois de uma longa viagem em direção ao centro da Terra, paramos em uma estação escura, às margens do rio Aqueronte.
Em vida, não fui leitor assíduo de Dante. Mas conheci um pouco do seu inferno. Com a alma nostálgica, (será que ainda tenho a alma?) lembrei-me do primeiro terceto da Divina Comédia: "Da nossa vida, em meio da jornada, achei-me numa selva tenebrosa, tendo perdido a verdadeira estrada". Será que o lendário poeta florentino contou toda a verdade sobre aqueles sinistros lugares? Certamente cabe a mim conferi-los!
No meio de um empurra-empurra infernal, mais de mil condenados aguardavam o barqueiro Caron com sua canoa para nos levar até os quintos dos infernos. De repente, escutei o barulho de um motor. Não pude distingui-lo, de imediato, devido à neblina que pairava sobre aquele rio escuro como breu. Como por encanto, apareceu o temível remador. Mas sem os remos! Sua antiga embarcação agora era um luxuoso iate. E lá fomos nós, singrando o Aqueronte para penar eternidade afora! Com um poderoso transmissor e receptor portátil, o velho bruto e carrancudo falava e recebia ordens lá das entranhas da Terra.
Depois de diversas triagens, conseguiram obter o meu perfil por meio dos computadores. Com o resultado nas mãos, embarcaram-me com outros desafortunados, num veículo tipo "besta". Fui o último a desembarcar. Sozinho, lendo as instruções, entrei no prédio indicado e me dirigi aos aposentos onde deveria passar o resto dos meus dias.
Surpresa! Ao entrar no suposto apartamento, a porta se fechou. E eu não tinha a chave. Mas, para o meu grande espanto, eu me encontrava em minha casa! Reconheci meu escritório, o atelier, dormitórios, copa, cozinha e banheiros. Só uma decepção inicial - faltava o quintal. A casa não tinha janelas. Apenas em um dos banheiros havia uma pequena janela, tipo basculante, de onde se avistava uma enorme extensão de terrenos áridos.
De repente, uma voz cavernosa ecoou por todos os aposentos:
- Seja bem-vindo, senhor Roberto! Descanse, pois em poucas horas começarão as penas ao senhor impostas!
"Porra, que merda!", pensei.
Liguei o computador e coloquei a Sonata ao luar, de Beethoven, uma das minhas favoritas. Fui até a cozinha, mas lembrei que após o passamento as alimentações eram desnecessárias. Nada nos armários nem na geladeira. Voltei e me sentei em minha poltrona preferida, pensando em descansar um pouco aos acordes da "sonata". Assim absorto, devo ter adormecido.
Quantas horas ou dias dormi, não sei. Só me lembro de que acordei sobressaltado, com o estrondo de uma voz vinda de um possante alto-falante que estourava em meus ouvidos:
- Laranjas, bananas, abacaxis! Tudo por um real! Dona Maria, venha conferir. Mandioca, alface, tomate, tudo baratinho aqui no caminhão da economia.
A voz era conhecida.
Não sei por quanto tempo aguentei aquela ladainha.
De repente, tudo ficou quieto. Quando os meus ouvidos estavam relaxando, outra voz, desta vez mais forte, explodiu:
- Está passando na sua rua o carro da pamonha. Saboreiem a pamonha de Piracicaba. Piracicaba no inferno? É um caso para pensar!
Desesperado, fui até a janela do banheiro para ver o amaldiçoado. Porém, nada! Mas que castigo?! Ele estava dentro da minha casa, fazendo parte do meu inferno!
E assim as vozes foram se sucedendo.
Passou o caminhão do peixe, dos produtos químicos para limpeza, mais uns vinte vendedores de frutas e verduras; os peixeiros com os seus bagres e sardinhas; os apregoadores de ovos e galinhas; o carro da maçã do amor e do sorvete; as buzinas manuais e escandalosas dos padeiros. Ouvi até os berros de alguém, vendendo brinquedos; enfim, tudo o que tinha direito de ser vendido ecoava pelos aposentos.
De um momento para outro, a barulheira cessou. Olhei novamente pela janela e notei a escuridão da noite. Enfim, sossego!
Ledo engano.
De repente, comecei a ouvir os escapamentos abertos e as respectivas explosões de motocicletas. Para complicar mais ainda, carros derrapando e freando, bruscamente. Em quantas horas tudo isso aconteceu, eu não sei dizer. Estava em meus limites, a ponto de bater a cabeça na parede, quando o silêncio voltou.
Fui dormir, pensando se no dia seguinte começaria tudo de novo. Só assim saberia se o barulho constante seria o meu penar no reino de Satã.
Nem coloquei a cabeça no travesseiro quando teve início uma zoada de sanfonas e cantores que se alternavam entre música punk e forró. Para piorar o tormento, mais de cem cachorros latiam ao mesmo tempo, parecendo ajudar no coro musical. O dia clareou ao som das sanfonas e do ladrar dos cães vadios.
Não sabia mais o que fazer, pois o ciclo do barulho continuou.
Nem tinha terminado aquela sinfonia maluca, quando o som de um alto-falante começou a divulgar pães de todas as variedades.
E assim se passaram os dias e as noites, sem tréguas para os meus ouvidos.
Para que servia o atelier, o computador e o aparelho de som? Para nada! Que dura pena! Pagar pecados, escutando barulho. Era o máximo da sentença a mim imposta. Pois eram os sons que mais me incomodavam na Terra.
Passados alguns dias, semanas ou meses de diversos ruídos, recebi a visita de um simpático diabo. Muito gentil - acho que era Relações Públicas de Satanás - sentou-se ao meu lado e, sem se incomodar com a barulheira, começou a me explicar o porquê de tudo aquilo:
- Meu filho, (merda! Agora virei filho do diabo!), a sua última passagem pelo planeta Terra foi, sem dúvida, repleta de prazeres, já que você era um libertino e boêmio inveterado. Quantas mulheres sofreram por você?
- Você sabia? Continuou o empertigado demónio - que uma, inclusive, tentou o suicídio? Caramba! Nunca chegou aos meus ouvidos tamanho disparate!
O tal diabo, arrumando a gravata, continuou a desfiar o seu rosário de pecados por mim cometidos. Os piores mesmo foram os da boemia; minha idolatria por cerveja; meu desejo por mulheres alheias; não guardar os domingos e dias santos, pois nestas datas eu geralmente amanhecia em boates ou inferninhos.
Resultado: desci ao inferno para ouvir, durante a eternidade, os barulhos que perturbaram a minha vida. Com o agravante de xingar constante e obscenamente todos os provocadores de barulhos, lá na Terra
Alisando o seu rabo, calmamente, aquele ser misterioso prosseguiu:
- Em contrapartida, para amenizar o seu sofrimento, vou contar um pouco do motivo que trouxe essas pessoas aqui para o inferno.
- Os verdureiros, fruteiros, cantadores e tocadores de forró, pagode, funk e outras músicas são, alguns, filhos de prostitutas. Outros são os políticos corruptos, que tanto roubaram o povo.
- As pamonhas de Piracicaba, gritadas aos quatro cantos, são os pamonheiros, que cometeram incesto com suas mães e irmãs.
- Os peixeiros comiam carne de boi e de porco durante todas as quaresmas vividas na Terra.
- Sorveteiros e afins cometeram o terrível pecado de furtar objetos alheios.
- Os padeiros, que tocam essas buzinas de ar, meteram a mão no dinheiro dos outros.
- E os vendedores de material para limpeza, aqueles que detestavam a limpeza na Terra, além de pouca higiene pessoal, contribuíram de uma maneira espantosa para a poluição do meio ambiente.
- Os outros barulhentos que passam por aqui cometeram pecados leves e logo estarão no Purgatório. Mas outros virão para ocupar os seus lugares.
Estávamos nesse diálogo quando fui surpreendido por um grito, saído de um alto-falante:
- Óia a laranja, só `dois´ real o pacote; óia as melancia, dona Maria, vermeia, grande e gostosa. Venha ver a mandioca, minha senhora. Tá passando na sua rua o caminhão da fruta e verdura. Venha ver de perto!
Ao mesmo tempo, outra voz berrava, sugerindo trocar panelas, baterias usadas, pedaços de cano, garrafas plásticas e outras bugigangas por uma maçã do amor.
Enquanto não gritavam nos microfones, os filhos das prostitutas colocavam os alto-falantes em emissoras de FM, com músicas de forró.
Assim começou outro dia.
Dia? Sim, já era dia claro, estava deitado mais vivo do que nunca na minha cama e não no inferno. Tudo não tinha passado de mais um pesadelo, depois de uma noite mal dormida.
Levantei-me e olhei o relógio - nove horas da manhã de um domingo.
Fui tomar banho, louco da vida, ouvindo o filho de uma meretriz vendendo ovos e galinhas, ainda aturdido com o sonho daquela noite. Deixando a água relaxar minhas idéias, fui pensando e concluí, com certeza absoluta - o inferno é aqui, na própria Terra.


Roberto Stavale
Julho/2005
Direitos Autorais Reservados®


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