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Artigos-->MACHADO DE ASSIS: A CARNAVALIZAÇÃO NA METAFÍSICA DO ESTILO -- 22/12/2002 - 02:20 (Marciano Lopes e Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A CARNAVALIZAÇÃO NA METAFÍSICA DO ESTILO

Marciano Lopes e Silva (UEM)





Resumo: O presente estudo tem por objetivo realizar uma leitura do conto O cônego, ou metafísica do estilo de Machado de Assis a partir da teoria da carnavalização de Mikhail Bakhtin. Dois temas nos parecem fundamentais no texto: o amor e a literatura. Quanto ao primeiro, procurar-se-á demonstrar que é tratado a partir de uma cosmovisão carnavalesca que rebaixa a concepção platônica de amor presente no romantismo e no cristianismo, de maneira a exaltar os aspectos físicos da união sexual, não esquecendo, conforme se esforçaram em afirmar os escritores realistas e naturalistas, de que o mesmo também apresenta uma faceta marcada pelos instintos e pelo prazer carnal. Quanto ao segundo tema, discutir-se-á a hipótese de que, articulado a uma visão carnavalizada do mundo e do amor, a literatura é caracterizada como uma atividade canalizadora dos instintos e da sexualidade reprimidas no inconsciente, opondo-se, como fantasia e expressão de Eros, à pura racionalidade e objetividade propugnadas pelo realismo.





O Cântico dos Cânticos e a Sátira Menipéia





No conto O cônego ou a metafísica do estilo, Sílvio e Sílvia, substantivo e adjetivo, procuram-se ardentemente, assim como o rei de Israel e sua amante libanesa no Cântico dos cânticos:



- Vem do Líbano, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda a casta de pombos...

- Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor...





Porém, embora utilizem uma linguagem sagrada, visto que “em cérebro eclesiástico a linguagem é a das escrituras”, no conjunto o conto se estrutura como paródia ao texto bíblico.

O Cântico dos cânticos, livro pertencente ao Antigo Testamento, apresenta-se como um poema fortemente marcado pela sensualidade e pelo erotismo, expressando um ritual de união amorosa entre o rei de Israel e sua amada libanesa, socialmente inferior. Ambos, extremamente apaixonados, procuram-se; principalmente a amada que, em seus devaneios, sai pelas ruas da cidade e chega a ser espancada por guardas. No entanto, todo espaço evocado pelo poema, excetuando-se esta passagem, é caracterizado por uma natureza prenhe de belezas e delícias que, constantemente, fornece elementos para homologias na caracterização dos corpos dos amantes e do seu amor, se revelando, desta forma, como um espaço idílico, visto a harmonia entre os mesmos e a natureza, bela e rica como o jardim do Éden.

Espaço idílico, o jardim metaforiza, na sua abundância de frutos e ervas aromáticas, os prazeres do amor. Até mesmo o deserto, apesar da sua esterilidade, constitui um espaço belo, claro e puro, bem diversamente caracterizado com relação à “grande unidade impalpável e obscura” que constitui o inconsciente do cônego.

No cérebro do cônego, os amantes têm uma origem diversa, contraditória, assim como a origem dos amantes no Cântico. Os substantivos, masculinos, nascem no hemisfério direito do cérebro; os adjetivos, femininos, nascem no hemisfério esquerdo, portanto politicamente contrários, assim como os amantes do Cântico, visto que a amada é escrava no Líbano. No entanto, embora a semelhança neste aspecto, o caminho a ser vencido por ambos, no conto, é bem mais adverso e nem um pouco idílico.

No conto, Sílvio e Sílvia descem do consciente do cônego para o seu inconsciente, como quem desce da terra para o inferno, uma vez que o último constitui uma “grande unidade impalpável e obscura” onde se misturam embriões e ruínas, morte e vida, numa massa amorfa e nojenta:





Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pululam a vida sem formas, os germes e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito.





Note-se o contraste entre o amor - na sua elevada aspiração - de Sílvio e Sílvia e o meio que os circunda, repugnante e sujo, formado por detritos e sedimentos em meio às formas vivas mais inferiores na escala zoológica: os “germes” e outras formas amorfas (portanto invertebrados) que “pululam”, ou seja, germinam, brotam com rapidez e abundância do lodo.

Outro contraste ocorre entre as imagens da vida e da morte, “embriões e ruínas”, ou seja, morte e renascimento concomitantes em meio à massa informe e obscura:





Vasto mundo incógnito, Sílvio e Sílvia rompem entre embriões e ruínas. Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto das reminiscências. Outras idéias, grávidas de idéias, arrastam-se pesadamente por outras idéias virgens.



Os paradoxos citados apontam para a dialética morte-renascimento, para a instauração de um mundo às avessas, onde o alto e o baixo, o sagrado e o profano, se invertem, e para a presença do “realismo grotesco”, pois como não admitir a semelhança entre a imagem das “idéias grávidas de idéias” a se arrastarem pesadamente em meio à lama e aos detritos e as figuras de velhas grávidas a rirem que se encontram entre as “célebres figuras de terracota de Kertch” e que combinam “o corpo decomposto e disforme da velhice e o corpo ainda embrionário da nova vida”? Tais elementos degradantes rebaixam o texto bíblico e instauram a paródia, principalmente se atentarmos para o fato de que o amor entre Sílvio e Sílvia, que contraditoriamente se caracteriza pelo desejo de monogamia e fidelidade cristãs aliado à força dos instintos sexuais (o que discutiremos adiante), passa-se no cérebro de um cônego - a quem se impõe a abstinência sexual e o pensamento livre de pecados. Reside, nessas contradições, o paradoxo entre o sagrado e o profano, o rebaixamento do primeiro que termina por elevar o segundo, ou seja, o amor no que possui de profano e carnal, embora não se negue o seu caráter espiritual e monogâmico.

Além da paródia, da dialética morte-renascimento, das imagens do grotesco, do alto e do baixo, do sagrado e do profano que, lado a lado, se apresentam invertidos, às avessas, instaurando a oposição entre a religiosidade e o naturalismo, característicos do universo carnavalesco na sua vertente da sátira menipéia, encontramos outras características que permitem classificar o presente conto como um texto carnavalizado:

1. A presença do narrador tipo “kataskopos”, conforme Enylton Rego, que, distante e sob um ângulo inusitado de observação (o cérebro do cônego), faz graça do leitor e de si mesmo ao ironizar a sua própria narrativa. Riso sério-cômico característico do carnaval pela sua universalidade, pois atinge a todos: narrador, texto e leitor.

2. O diálogo, entre o narrador e o leitor ausente, que nos remete a um dos gêneros formadores da sátira menipéia - a diatribe - juntamente com o solilóquio e os simpósios, todos marcados pelo caráter dialógico.

3. A livre fantasia expressa através do espaço e dos personagens inusitados, fantásticos.

4. Mistura de gêneros: a prosa de ficção com a linguagem lírica e sagrada dos versos do Cântico dos cânticos.

5. A atualidade das questões filosóficas tratadas (com humor e paródia, é claro), tais como o amor, o estilo e a criação literária, conforme discutiremos adiante.





O amor carnavalizado





Os cânones literários e plásticos da Antiguidade clássica consideravam belo o corpo na sua harmonia, serenidade e equilibrio, valores que constituiam o ideal da perfeição estética. Em tal concepção “retiram-se as excrecências e brotaduras, apagam-se as protuberâncias (que têm a significação de novos brotos, rebentos), tapam-se orifícios, faz-se a abstração do estado perpetuamente imperfeito do corpo e, em geral, passam despercebidos a concepção, a gravidez, o parto e a agonia”, ao contrário do “realismo grotesco”, característico da visão canavalesca do mundo, em que “o princípio material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um conjunto alegre e benfazejo.” Surpreendentemente, esta visão carnavalizada do mundo, ao que a análise indica, parece ser a dominante no conto, por mais contraditório que possa parecer tal afirmação se levarmos em conta a forte tradição crítica no sentido de afirmar o pessimismo e o ceticismo da visão de mundo do amadurecido Machado de Assis.

A paródia ao Cântico dos cânticos apresenta o rebaixamento da visão platônica e cristã sobre o amor, visto que a perfeição dos corpos, a sublimação da sexualidade através da cultura e da espiritualização em direção à ascese e a beleza harmônica do idílio romântico são substituídos pelo amor carnal e pelo caráter degradante e imperfeito do espaço que caracteriza o inconsciente do cônego. É nesse meio que o amor se desenvolve e se concretiza, evidenciando-se o paradoxo entre o seu caráter sublime e o aspecto repugnante que apresenta o espaço em que se encontram. Nesse sentido, é importante observarmos que o ambiente é caracterizado como sendo um depósito cultural de idéias científicas e filosóficas, enquanto Sílvio e Sílvia - cujos nomes trazem a homofonia com a palavra “cio” e a aliteração da sibilante / s /, que sugere o silvo da serpente, símbolo do pecado - não são nada disso:





(...) profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio e Sílvia.





Como vemos, filosofia, liturgia, diversas ciências, experiências intelectuais registradas pela memória, nada disso é Sílvio e Sílvia, porque ambos seguem “rasgando, elevados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os obstáculos e de todos os abismos”; força que, por exclusão - uma vez que não faz parte da racionalidade e da moral - pertence ao mundo sensível e aos instintos, embora, paradoxalmente, se apresente como a “elevação de uma força íntima”, de caráter espiritual:





De quando em quando, aparece-lhe alguma dama - adjetivo também - e oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a única, a destinada ab eterno, para este consórcio. (...) Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor nomeado e predestinado.





Depois de tantos obstáculos, a luta dos amantes para se encontrarem alcança êxito, provocando um “estremecimento” na escritura do cônego, evidente alusão ao orgasmo resultante da união amorosa entre Sílvio e Sílvia. A homologia entre o prazer resultante da união sexual e o prazer resultante do achado estilístico, que fecha com chave de ouro o sermão, produz o riso pelo seu caráter paradoxal, visto ser a literatura, e o sermão religioso, em especial, uma atividade do espírito que eleva e dignifica o homem, prova de sua natureza divina segundo uma visão platônica e clássica de nossa cultura ocidental. Por conseguinte parece-nos possível afirmar que o conto em questão realiza a paródia ao Cântico dos cânticos, mas não renega o seu significado como um todo. As farpas da sátira, ao que parece, são dirigidas - no que toca a essa questão - ao platonismo presente no romantismo, que sublima o amor, dessexualizando-o em função de um sentimento plenamente espiritualizado, sem a presença da carne, que produz, nas palavras do radical Carvalho Júnior, “(...) virgens pálidas, cloróticas, / Beleza de missal que o romantismo / Hidrófobo apregoa em peças góticas, (...)”

No entanto, diversamente do que lemos na Profissão de fé do poeta Carvalho Júnior, Machado de Assis não envereda para o extremo oposto da atitude romântica, negando a espiritualidade existente no amor e afirmando única e exclusivamente “a exuberância dos contornos, / As belezas da forma, seus adornos, / A saúde, a matéria, a vida enfim.” Embora eleve o seu caráter material e, portanto, instintivo, não o faz em detrimento da espiritualidade, não deixa de consagrar a doação mútua e exclusiva, total e definitiva entre o homem e a mulher. Por isso, o riso que brota do texto não é pessimista, cético ou cínico, mas um riso marcado pela ambivalência, pelo caráter regenerador que degrada para elevar, que instaura o mundo às avessas para desvelar o poder e as mentiras ocultas nas convenções sociais e abrir perspectivas para a instauração do novo, das relações estabelecidas em moldes mais livres e naturais e, portanto, menos opressivos.





Literatura: fantasia e prazer





Além de se inscrever na tradição da sátira menipéia e da literatura carnavalizada, podemos considerar que o conto em questão também apresenta uma alegoria sobre o processo da criação literária. Ao representar o esforço artístico do cônego como sendo fruto de um idílio amoroso que transcorre em seu inconsciente, o texto alegoriza o ato da criação artística como sendo resultante de processos e desejos inconscientes e reprimidos. A luta pela criação artística é comparada à luta amorosa, ou melhor ainda, à luta pela satisfação da sexualidade, do princípio de prazer, pois Sílvio e Silvia só perseguem o som da serpente - aliterada em seus nomes - e desconhecem tudo que diz respeito à filosofia, às ciências e às normas sociais, ou seja, à cultura considerada como toda modificação que o homem imprime à natureza através do seu trabalho criativo, mas também repressor da sexualidade. Sílvio e Sílvia, perdidos no inconsciente, desconhecem o princípio de desempenho, toda racionalidade, são apenas instinto, a tentação da maçã que a sábia serpente oferece, desejo primitivo e inevitável, princípio de prazer que - contraditória e ironicamentemente - sublimado anima o casto ( ? ) cônego a criar o sagrado sermão.

À parte toda a ironia, podemos considerar que a alegoria sustenta-se com base na idéia de que há um inconsciente onde forças não racionais também apresentam-se como (co)responsáveis pela criação artística. Visão do processo literário que coloca em xeque o mito da racionalidade objetiva que sustentam o positivismo e - por extensão - grande parte da literatura realista e naturalista do século XIX. Não é só o poder racional da observação objetiva e fria, dura e calculista - como a de Fortunato e a de Garcia, em A causa secreta - que sustentam a criação literária. Também há o inconsciente, a livre fantasia de Sílvio e Sílvia, a busca pela satisfação dos instintos, o tesão que sustenta a criatividade, a sensibilidade artística e o desejo carnavalesco e revolucionário de instaurar um mundo às avessas, de trazer à terra, mesmo que por instantes, o céu, a paz, e milagrosamente elevar, ao céu, a mísera e atormentada humanidade. Alegoria, carnavalização, expressão sublimada do princípio de prazer, expressão das utopias - mesmo que reprimidas. A literatura concebida com base em considerações desta ordem não poderia alinhar o passo com o pelotão realista e, principalmente, naturalista, que dominava o palco das letras no século XIX. Daí, provavelmente, a sátira, o humor e a ironia, a livre fantasia carnavalesca tão presente na obra de Machado de Assis. Daí também a alegoria. Naquilo que ela tem de mais lúdico: o prazer na descoberta e decifração dos enigmas que habitam as sábias escrituras. Semelhante leitura, sem dúvida, é apena uma hipótese, mas um hipótese cujo caminho é aberto pela múltipla leitura proporcionadas pela ironia e pela alegoria que permitem vislumbrar uma possível crença (?) machadiana, conforme as especulações de Schiller em suas cartas sobre a educação estética, em que o impulso lúdico, considerado como mediador entre os impulso sensual e o formal, possa abrir o caminho para a conquista do reino da satisfação dos impulsos sensuais e da liberdade criadora.







BIBLIOGRAFIA



ASSIS, Machado de. Os melhores contos de Machado de Assis. 2a. ed., São Paulo: Global, 1985.



BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de Rabelais. São Paulo: Hucitec/ Brasília: Editora da UnB, 1987.



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_________. Particularidades do gênero e temático-composicionais das obras de Dostoiévski. In:_______. problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1981.



MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Uma crítica filosófica ao pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.



PLATÃO. O banquete. In: ________. Diálogos. 4a ed., São Paulo: Nova Fronteira, 1987. (Coleção Os Pensadores)



RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Panorama da poesia brasileira: Parnasianismo - Vol. III. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1959.



REGO, Enylton de Sá. O calundu e a panacéia. Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1989.



SCHILLER, Frederich. A educação estética do homem numa série de cartas. 3a ed., São Paulo: Iluminuras, 1995.

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