“O Cânone Colonial”, de Flávio Kothe (416 páginas, UnB, 1997) é um livro surpreendente. Seu autor coleciona títulos acadêmicos, como os de mestre, doutor, catedrático e livre-docente em literatura, relacionados na orelha do volume. Uma de suas propostas é verificar “a falta de resistência de textos clássicos a uma análise crítica”. Assim, o leitor procura a obra na expectativa de encontrar uma discussão séria sobre a literatura colonial brasileira, realizada a partir de uma pesquisa abrangente e com a credibilidade de um especialista. Porém, este livro se diferencia da maioria dos ensaios publicados. Afinal, ele serve de veículo a um dos mais absurdos erros de interpretação de texto de nossa literatura. No último capítulo, “O Arcadismo de Gonzaga”, dedicado ao estudo (?) da obra do poeta e inconfidente Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), Flávio Kothe examina a famosa Lira nº 1. O poema, que inicia com “Eu, Marília, não sou algum vaqueiro, que viva de guardar alheio gado”, diz, pouco depois:
“Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;”
Assim empregada, a palavra “casal” tem o sentido, registrado no dicionário Aurélio, de pequena propriedade rústica; granja. É desse modo que a utiliza Eça de Queirós, em seus “Contos” (página 368): “Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais”. Portanto, “ter próprio casal” quer dizer: ser proprietário de uma espécie de sítio, onde o poeta “assiste”, ou seja, mora, e de onde retira os elementos necessários a sua subsistência. Surpreendentemente, o “mestre” Flávio Kothe parece ignorar ou desprezar essa lição básica. Acredite se quiser, mas ele conclui, à página 398:
“Um “casal” - que possa “dar” vinho, legume, fruta, azeite – só pode ser um casal de escravos”.
E antes que o leitor se refaça, arremata com o seguinte juízo histórico-político sobre Gonzaga:
“ É estranho que se faça de um dono de escravos um libertador”.
Tamanho despropósito bastaria para marcar o livro. Mas o volume é ainda pontuado por expressões inadequadas e fora do contexto, como a afirmação (além do mais, inverídica) , à página 397, de que Marília viria a casar-se “com um ricaço qualquer” ou, logo a seguir, sobre o romance frustrado entre ela e Gonzaga: “A tragédia mineira acaba em pizza”. O mesmo capítulo tem outras pérolas como referir-se a Marília (cujo verdadeiro nome era Maria Dorotéia Joaquina de Seixas) como “Dorotéia de Castro”(página 409).
Em síntese, fica da leitura de “O Cânone Colonial” a amarga constatação de que, infelizmente, ainda no Brasil o despreparo intelectual pode travestir-se de sabedoria professoral, de forma aparentemente impune.
(*) Sergio Amaral Silva (samaralsp@uol.com.br), de São Paulo, SP, é jornalista, escritor e pesquisador da Inconfidência Mineira.