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cronicas-->A Queda -- 28/08/2005 - 16:01 (Carlos Eduardo Canhameiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A Queda

Carlos Canhameiro

Ele caiu sobre si, sem tempo de um último suspiro: morto. Sem causa, sem explicação, como se a Morte, aleatória ao seu trabalho intrinsecamente aleatório, começasse a ceifar indiscriminadamente tanto o fruto verde quanto o maduro - e até mesmo o fruto podre, não poderíamos deixar de citá-lo, que, por capricho da já caprichosa natureza, manteve-se preso à árvore. Caminhava na calçada quando desabou sem vida. Os que seguiam-no, não porque viam nele um mestre, mas porque assim determinava o destino, de seguir ele na mesma direção dos que atrás vinham, desviaram com um misto de susto e indignação, lamentando em baixo tom, como convém a sociedade de fina educação. Os que acompanharam a queda de frente, expressaram certos olhares típicos da situação, esboçaram alguma espécie de ajuda, que analisada a fundo nada significava, e seguiram em suas atividades rotineiras que a ninguém importava, mas que deveriam ser cumpridas.
Alguns segundos depois as testemunhas da queda já estavam distantes do corpo, não só física como mentalmente: ninguém ocuparia o já muito ocupado raciocínio com um estranho que mal conseguia parar em pé e não há no mundo quem poderá culpá-los por tamanho desprezo. A calçada foi inundada por novas pessoas, que em nada sabiam da queda e do caído, exceto o fato de vê-lo no chão. Porém, os motivos que levaram ou que obrigaram o morto a estar morto não eram mais evidentes, se é que seriam um dia, e os novos transeuntes poderiam fazer qualquer tipo de suposição, segundo seus próprios livres-arbítrios - como convém o ideal cristão - sobre o porque o morto se encontrava no chão, se possível fosse um morto estar noutro lugar, dada à circunstància já apresentada.
Desses, que passavam sem nada saber da queda, alguns olhavam de canto de olho, tentando entender o inusitado ao mesmo tempo em que procuravam não demonstrar nenhuma surpresa. A Cidade não aceita quem nela esteja que não conheça seus mecanismos e seus acontecimentos corriqueiros. A esse tipo de otário, escusada seja qualquer tipo de maledicência que venha a cair sobre nós pelo uso da palavra torpe, porque assim julga a própria Cidade: otário é todo aquele que se deixa impressionar pelas infelicidades cotidianas, haja visto que a Cidade é feita desses pormenores sem efeito ou causa, e como dito, a esse tipo de gente, otária, a placa de boas-vindas na entrada da Cidade não servia a eles.
Do caído não havia o que reclamar, lá estava a desempenhar com exatidão seu papel de morto. Esquecido ao sol, nada podia reclamar e, como sabemos de antemão, ninguém reclamaria por ele. Pelo menos não nas delegacias competentes. Infeliz, saíra de casa sem portar documentos, pessoa comum, se perderia nos labirintos do necrotério, quiçá queira a sorte que o morto tivesse alguma utilidade nos malfadados cursos de medicina legal. Dos familiares, poucos reclamariam e, passado o tempo que é direito a qualquer tragédia familiar, cairia o morto no esquecimento, resgatado, de tempos em tempos, nas conversas sobre o tema dos casos sem solução. Dividiria a pauta com Fulano de Tal, sumido nos idos da velha época por perseguição ideológica e Beltrano Sem Quê, desaparecido desde os tempos da vitrola, quando saíra para comprar cigarros. Acaso ninguém se reúna para conversas sem Eira nem Beira, terá o caído de enfrentar o esquecimento absoluto, um apagamento da existência, o milagre da transubstanciação: o ser em nada.
Ainda aqueles que caminhavam, alguns - raros, para não pecarmos pela generalização - lançaram moedas, numa tentativa de se redimirem perante si e perante o que acreditavam ser superior a eles. Soubessem eles que o caído já se encontrava defunto e as moedas permaneceriam no bolso, numa prova de que o preceito: o que vale é intenção, principalmente a boa, já estava derribado por terra antes do morto. Alguns outros reclamavam do mendigo insolente e desobediente das leis públicas, que se dava o direito de dormir em pleno passeio público, lugar, como já indica o nome, de passeio e não de repouso. Esses, os que reclamaram, o faziam em tom de cidadão, praticantes convictos da cidadania e conhecedores dos direitos e deveres da Cidade. Havia os que pulavam o corpo, desviavam no último instante, as velhotas piedosas e seus suspiros misericordiosos, os indiferentes, as crianças e seus dedos acusadores sem saber o que, mas somente quem acusar. As mães sobrecarregadas, os executivos e seus brinquedos de geração atual, que alguns insistem em dizer ser a última, numa esperança de que assim seja. E os policiais, atrasados como de costume, talvez pelo excesso de diligências ou de indulgências, aportaram depois de horas, a ponto das moscas fazerem do caído um porto, ou aeroporto como melhor se encaixa aos insetos que voam, em meio ao trànsito infernal de pessoas. Trajados como convêm os estatutos estilísticos governamentais, seus "ande-e-fale" presos à cintura e cassetete em punho, como se fossem ser atacados a cada instante, os policiais usaram o mesmo cassetete que imobiliza o delinquente para tentar mobilizar o morto. A dura constatação feita pelos intercomunicadores e o serviço de recolhimento de gente morta solicitado, porque a Cidade precisa de todo tipo de especialistas, que cuidem tanto da vida quanto da morte. Era questão de tempo até as calçadas estarem livres novamente. Da queda nada se sabia, como já dito e confirmado pelo interrogatório feito pelos policiais a alguns proprietários de estabelecimentos próximos. O corpo, dobrado sobre si, assim ficou porque não convinha um lençol branco, prática comum em bairros pobres ou cidadelas desconhecidas, no meio da calçada abarrotada de pedestres, que poderiam chamar a imprensa, ou acender velas, ou convocar carpideiras, ou levantar placas de protestos contra o que fosse possível protestar, e a simples morte tomaria dimensões épicas e não calharia a ninguém, nem mesmo ao morto, este que nem sequer o direito de figurar na sessão obituária dos jornais teria, por não ser indivíduo portador de Registro Geral. O automóvel de recolhimento não tardou a chegar. Novos homens em seus trajes oficiais, a constatação inegável da morte através de procedimentos médicos simples, aplicados até mesmo por um leigo. Uma maca, umas amarras para caso o morto resolvesse cair novamente, não que fosse este o seu desejo mas para prevenir o descuido dos vivos e a entrada pela parte traseira do automóvel. Uma batida excessivamente forte das portas traseiras, como um martelo jurídico sentenciando o final. Ainda algumas pessoas se dignaram a olhar a ação de limpeza, indagaram-se sobre as causas, os motivos, o histórico da vítima, fosse ela uma vítima de algum mal, surpreenderam-se com a efemeridade da vida; conversas que não duravam mais que duas quadras e se perdiam no turbilhão dos acontecimentos outros: quiçá um novo morto ou um vendedor ambulante e seus chocolates com preços irresistíveis. A polícia retornou a sua rota costumeira, os agentes funerários adentraram o carro e partiram sem nenhum alarde, sem ao menos ligar a sirena, deixando claro que não era o morto digno de qualquer carnaval. As pessoas continuaram a caminhar ainda a se desviar do local onde o caído se encontrava, em respeito, acreditamos nós, pela morte. Depois, tanto os que vinham na direção oposta como os que seguiam o fluxo, ocuparam toda a calçada, isentos de qualquer culpa por pisar onde antes estava o morto, porque nada sabiam da queda. Seguiram seus caminhos e do morto nunca tomaram ciência. A Cidade respirou aliviada.
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