Keller
Conheço Manoel Keller da Silva há mais de trinta anos e ele tem sido um grande companheiro e amigo ao longo desses anos todos.
Em 1955, por ocasião de sua formatura em odontologia dediquei-lhe um artigo sob o título de "Honra ao Mérito", publicado no jornal interno da nossa empresa, mas eu o conhecia muito pouco, então.
Àquela altura, ele trabalhava na "Rua Chile" e eu no "Comércio. Ele já era um chefe de e seção, possuía uns sete anos de serviço, e eu era um modesto escriturário-datilógrafo, iniciando minha carreira. Eu estava muito distante dele, sob todos os aspectos, e a porção que via ou sabia dele não me agradava!
Keller era tido como um chefe exigente, "caxias", muito formal, reservado - numa empresa que valorizava demasiadamente a iniciativa, a criatividade, a participação, o informalismo...
Ele era, portanto um contraste diante de tudo isso - e durante toda a sua prodigiosa carreira no banco manteve esses atributos apesar de não se casarem com os da instituição!
E, talvez, aqui, esteja o primeiro elemento marcante dessa personalidade tão surpreendente: a independência intelectual,a autenticidade e a coerência consigo próprio. Ele sempre foi capaz de arrostar quaisquer consequências para manter suas convicções inabaláveis.
Há "casos" de Keller que o revelam de modo mais completo do que qualquer descrição ou análise psicológica será capaz de fazê-lo, e eu vou contar alguns deles neste e em outros escritos, como já o fiz recentemente, ao testemunhar sobre a venda de um seu apartamento ao José Teixeira.
Há., por exemplo, esta historinha que ilustra de modo admirável o rigor com que ele sempre administrou as despesas do banco, que só autorizava quando entendia serem indiscutivelmente pertinentes.
Quando voltei à Bahia depois de oito anos fora e assumi a área de Recursos Humanos do banco, tomei conhecimento de que possuíamos um excelente "coral" , formado por cerca de trinta funcionários e dirigido pelo maestro Lindemberg Cardoso, da Universidade Federal da Bahia.
O "coral" exibia-se em eventos internos do banco e abrilhantava muitas festas e solenidades em Salvador e no interior do Estado.
Ensaiavam três vezes por semana, no horário do almoço, possuíam roupa apropriada e eram muito apreciados pelos funcionários.
Pretendendo organizar o "coral", dar-lhe um Regimento, submetê-lo à supervisão de um Departamento da minha Diretoria, descobri que ele não pertencia ao banco. Era do Keller!
Procurei-o para saber dessa história, e porque o "coral" não integrava a nossa estrutura se todo o proveito da sua atuação era do banco!
Respondeu-me, simplesmente, que o banco não podia arcar com despesas que não se inseriam em suas atividades regulares, que ele não era um insensato para aprová-las, tanto mais que a criação do "coral" resultara de ação espontànea de sues participantes.
Descobri, então, que Keller pagava do próprio bolso o salário do maestro, os lanches fornecidos aos participantes durante os ensaios, o transporte que os levavam aos locais de exibição e o uniforme que vestiam.
Foi com muita dificuldade, e depois de muitos meses de negociação com ele que consegui transferir o "coral" para o banco.
Mas essa é apenas uma faceta do Keller que, no caso, se tornou visível porque eu me envolvi no episódio.
Pois outra característica muito sua é a de fazer as coisas "na moita", no anonimato, da forma mais discreta possível.
Lá no banco, por exemplo, há todo um esquema montado para estimular a competitividade, tanto entre pessoas, quanto entre equipes de agências e até mesmo entre Sucursais. Há prêmios de toda sorte - desde dinheiro vivo, passando por automóveis, motos, etc. - até viagens pelo país e pelo exterior.
Pois bem, na região administrada por Keller alguns concursos por ele instituídos, que visavam a objetivos mais específicos, contemplavam prêmios financeiros mantidos por sua própria conta, naturalmente sem o conhecimento dos interessados ...
Um outro atributo kelleriano muito evidente é o da disciplina, do respeito e obediência ao superior, a quem chama sempre de doutor, mesmo à queles que não possuem qualquer título.
Mas, tudo isso sem servilismo, sem subserviência.
Apesar disso, na defesa do que entende sagrado, intocável, como por exemplo, o conceito da profissão bancária ou a honra e competência de um auxiliar, ele não tem receio a expor-se: é desassombrado, firme, temerário!
Eu o vi várias vezes, em muitas reuniões de diretoria, tomar a palavra para, iniciando com um "o senhor me perdoe" defender o companheiro injustamente acusado de alguma suposta irregularidade com a maior veemência, de modo respeitoso mas firme.
Assim é Keller: reto, intransigente, inflexível, respirando dignidade e comedimento, honrando os amigos com apoio e a solidariedade que não faltam em momento algum e chegam da forma mais discreta e modesta possível, restaurando o padrão moral "do fio de barba", um homem exigente consigo próprio, exemplo de trabalho, dedicação e perseverança - em poucas palavras, uma pessoa muito especial , um"tipo inesquecível" de muita gente !
31.10.85
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