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Contos-->O Regime -- 28/09/2008 - 13:55 (paulino vergetti neto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


O Regime


Deixar o vício de fumar foi-me difícil, mas não tanto quanto as várias tentativas para emagrecer que fiz. A gordura foi meu grande inimigo. Quis enfrentá-la, decidi enfrentá-la. Iniciei o último dos enésimos regimes de emagrecimento tentado.
- Você está obeso, Juca, o que está acontecendo com você?
- Um ótimo apetite, vontade exagerada para comer e só. Está nesses dois itens a causa. Quer saber mais alguma coisa?
- Mas você carece fazer um regime sério. Não está diabético?
- Não. Minha glicose está nos trinques. Vai adoecer-me?
- Cuide-se. Quero-o ver magro.
- Morto ou vivo?
- Vivinho da silva.
Esse papo era constante em minha vida. Às segundas iniciava a dieta. Ultrapassava até quinze dias sem muita dificuldade. Na segunda quinzena começavam os delírios. Sonhava jantando em chiques restaurantes. Acordava indignado e faminto. Tomava copos e mais copos com água, sentia o epigástrio pedir-me alimento e eu resistia.
Dez, quinze quilos chegava a perder. Com um mês de ter parado o regime, ganhava tudo novamente e mais alguma coisinha de quebra. A velha sanfona perversa agia e eu me mudava por algum tempo para as profundezas da insatisfação, quase doença.
Havia um aspecto aventuroso ao lançar-me a uma dieta. Um caminho sonhado, cheio de planos. Às vezes, procurava acreditar que estava começando o tal regime de emagrecimento do fim para o começo. Olhava-me no espelho e desejava, quase que agonicamente, que estivesse dez, vinte, trinta quilos mais magro. A balança não me justificava tal desejo e esmorecia. Cada quilo perdido, brigava com os sonhos cheios das guloseimas e das farturas de tudo.
Convivi com essas sensações desagradáveis por quase dois terços de minha vida. Nasci gorducho, cresci gordinho e atingi a fase adulta muito gordo. Daí até a obesidade, um pulo nem tão alto. Cheguei rapidamente lá!
Todo Mílon tem o Timasíteo que merece, em época de olimpíada ou não. Comigo não poderia ser diferente. Gastei as gorduras da vontade para vencer a outra, fofa, incômoda, desnecessária. Para mim, ela era igualzinha à falácia das pessoas que me encontravam na rua ou no trabalho e se espantavam com o meu corpo.
- Você está tomando corticóide?
- Acho que não. Só se estiver pondo em minha comida, ou bebida, algum amigo seu.
- Como?
- Esqueça. Não estou tomando corticóide não.
Eu carecia de ter cuidado com o que respondia. Andava em campo seixoso. Apresentava lufadas de raiva, quase ira, quando alguém me dirigia a palavra com certa indelicadeza.
Minha obesidade marcava dois limites: o tentado e não alcançado e o outro que ainda estava por vir. Eu acreditava neste e esquecia-me daquele outro, fracassado, cheio de incongruências que me envergonhavam. Um dia cobria o outro, e o tempo roubava todos eles de mim. Meu peso aumentava, e a esperança de eliminar seu excesso emagrecia. Estava numa guerra contra a obesidade.
Já pressentia o preço da morte. Estava hipertenso, taquicárdico, constantes edemas nos tornozelos e deambulava com dificuldade. Via-me apenas através da face irônica do espelho. Um monstro me fazia a sombra. Eu, pigmeu de minhas esperanças, perdia a vontade de tudo.
- Como você está gordo! Que há?
Foi a última conversa que ouvi de alguém. Decidi enfrentar o mundo e não só minha obesidade. Vesti-me de forças. Não sei onde as encontrei.
Levantei-me domingo, ainda cedo. Fui até a geladeira, abri suas portas, olhei tudo. Havia doces adoráveis, frutas saborosíssimas, as sobras do jantar de sábado. Retirei tudo o que pude. Pus sobre a mesa de jantar e iniciei uma degustação maluca, devorando doces e salgados e tudo o que a mão alcançasse.
Minha família ainda dormia. Eu estava sequioso de estranho desejo. Ouvi falas de um certo vendaval de desesperança. Florações malignas me conduziam a nada. Senti-me uma grande pedra de gelo que derretia. Como pólvora ainda molhada, não podia explodir. Passara por meu nariz um cheiro de algum perfume perdedor. Eu estava completamente doente e não me dava conta disso.
Segunda-feira iniciei a última batalha. Aprendi a amar a fome. Sabia que dentro dela estava o meu recomeço. Não havia outro caminho a escolher. Dei-me às intempéries e não quis enxergar qualquer retrocesso. Magra caminhada fiz para me reencontrar à frente do espelho, sua ira, sem o ranço das palavras que estavam me acostumando a ouvir.
Passaram-se os quinze dias críticos. Atravessei o primeiro mês de dieta rigorosa. Meus filhos me aconselharam a procurar um endocrinologista. Não quis. Era eu contra eu e o mundo; vencer seria mil e uma conquistas contra apenas uma. Eu queria ir, solitário, firme, decidido.
Como é estranho ver-se magro sem nunca ter sido antes! Não estava ali, diante do espelho. Puseram-me. Havia outra face sobre o meu corpo. Passei a achar-me diferente de mim. A magreza me desidentificava. Estava velho. Havia desaparecido o sabor dos doces e dos salgados. Uma névoa insossa e insípida havia me encontrado. Não era mais o Juca de outrora. Mas estava magro. Assim o mundo queria, assim deveria permanecer.
- Você está doente, Juca! O que houve? Tão magro!
Caí em profundo choro de desgosto, lembrei-me do espelho em que odiava olhar-me, pensei em tudo de bom que havia deixado de comer nesses onze meses de dieta severa e nos desmaios que havia tido, em tudo. Olhei-a com pesar, mais ciente de que não estava ali o gorduchão tolo de antanho e resolvi pecar para aliviar a minha cruz.
- Dalva, deve ter sido sua AIDS que passou pra mim.
- Respeite-me!
- Só quando você lembrar-se de que eu também devo ser respeitado. Dane-se!
Saí de sua frente e apressei meus passos. Estava leve agora. Acabava de fazer o que nunca pudera outrora. Ela era o que mais me incomodava.
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