Após refletir sobre os fatos, com a pouca razão que seu estado lhe permitia, Carlos pensou que se matar era uma boa possibilidade. Levou aproximadamente três horas para decidir por isso. Pensou, então, em qual seria a melhor forma de se matar. Pensou, depois, que não importava a forma, pois o que importava era morrer e morrer anularia toda a dor da forma escolhida. Decidiu, assim, por uma forma rápida.
Muito objetivamente, Carlos bebeu um copo d’água, deu alguns passos, abriu a porta, chamou o elevador – pensava bem em cada ato e achou que isso deveria ser comum nos suicidas. O elevador chegou vazio e ele sentiu um aperto no coração porque não estava cheio. O elevador vazio atestava que ninguém o impediria.
Saiu no último e sexto andar. Olhou o hall de entrada. Era a primeira vez que via aquele hall de entrada. Pensou no curioso de morar naquele prédio há cinco anos e nunca haver ido àquele hall de entrada. Olhou a janela que dava para o céu e sentiu saudades de seu futuro com planos realizados.
Olhou a janela do hall de saída do sexto andar. Caminhou até ela e começou o suicídio. Quando só as pernas estavam aquém da janela, abriu-se o 606. Dona Sandra viu os pés de Carlos sumindo no limiar da paisagem. Correu à janela, viu o corpo em queda livre, mergulhando rumo à terra.
Aquela imagem nunca deixou completamente de acompanhar os pensamentos de Dona Sandra. Aos setenta e dois anos, um segundo antes de morrer de câncer, com a filha chorando ao lado do leito, Dona Sandra pensava no vizinho caindo do sexto andar.
ii
Insondável
A mulher caminhava pela praia quando um violão atingiu-lhe a cabeça. Um homem usando uma camuflagem apareceu de trás de uma jangada e, enquanto fumava, disse:
— Desculpe. Não te darei cigarros. Morra sem minha ajuda.
A mulher aceitou a desculpa com resignação, porque Deus havia querido que tudo sucedesse daquele jeito. Era imperscrutável que fosse assim.
iii
Prólogo
Era compreensível o motivo pelo qual a mulher de Carlos o queria abandonar depois de seis anos de casados. Carlos, mas, não aceitava as razões da mulher. Ele ser um beberrão; ele a agredir quando bêbado; ele freqüentar prostitutas; ele cometer todos os atos dos cafajestes; para ele, o sincero amor que sentia por ela, o único e irrevogável amor da vida dele, esse amor tudo redimia. Para ela, não.
Carlos acreditava na força redentora do amor; sua mulher, justificadamente, não acreditaria nunca mais. Ter ele retirado essa crença da mulher dava a ela mais um motivo para se separar.
Carlos bebia porque não conseguia que fosse de outra forma: não bebia porque gostava. Agredia a mulher porque estava fora de si. Procurava prostitutas por uma inescapável deformidade emocional. Carlos era cafajeste porque mil acontecimentos impossíveis de serem isolados para análise o haviam posto daquele jeito.
Ele não aceitava as razões da mulher. Ele não se resignava. Achava uma insensibilidade quererem fazê-lo perder o sentido da vida, privando-lhe da presença de sua amada. Ela não poderia fazer aquilo.
Depois de beber a mesma quantidade de sempre, Carlos chegou de madrugada e matou a mulher sem auxílio de qualquer arma. Ele estava fora de si.
iv
Insondável
Ao mesmo tempo em que o garfo caía no chão, o telefone da casa de Dona Sandra começava a tocar. Eram seis da manhã e o telefone tocou seis vezes antes dela o atender. Uma voz lhe falou:
— Você acordou para um dia inesquecível. Parabéns.
Era aniversário dela, sessenta e seis anos, e havia seis cigarros na carteira. Ela morava no 606 e seu nome tinha seis letras. Tomou consciência daquele acaso envolvendo o número seis enquanto abria a porta para buscar o jornal.
Aceitou o vizinho, com as seis letras de Carlos, caindo pela janela do hall. Aceitou ser atingida na praia por um violão e encontrar um homem camuflado. Deus havia querido que tudo sucedesse daquele jeito. Não poderia haver outra razão.