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Contos-->ALMAS GÊMEAS -- 12/09/2008 - 19:27 (JOSÉ DAS NEVES NETTO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Fora convidado para almoçar com um casal de amigos. Ele tranqüilo, sábio, sereno, comedido; ela transbordante de energia, agitada, sonhadora, talvez lhe faltando um pouco do elemento terra. Os dois juntos formando uma daquelas sonhadas parcerias, que somente se alcança ao longo de muitas e muitas passagens por esta terra de nosso Senhor. Aceitara de pronto. Eram pessoas mais que amigas, eram daquelas pessoas que irradiam, infundem uma profunda paz em tudo, em todos quantos deles se aproximem! E moravam numa dessas residências que muito poucas pessoas conseguem possuir: simples, belas, aconchegantes, sempre muito bem cuidadas. Todo esse agradável acrescido de algo indefinível, como se cada pedaço de madeira, cada porção do piso, as próprias flores, os pássaros e os animais domésticos estivessem impregnados do admirável modo de ser que eles possuíam e espalhavam ao seu redor.
Em a noite anterior ao dia do almoço, tivera dois sonhos que muito o impressionaram e ansiava por relatá-los ao amigo. Tinha certeza de que, ao trazer à luz impressões profundas, faria desaparecer de sua mente o sofrimento que essas impressões lhe causavam.
Tão logo se acomodou numa das agradáveis cadeiras espalhadas pela varanda, frente para o espaço interior, visão de beija-flores amigos da casa, foi logo dizendo:
Tive uns sonhos aborrecidos, cara!
- Já sei. Daqueles que insistem em não acabar quando a gente acorda? Como se fizessem parte da nossa própria realidade?
- Exatamente!
- Já consegue falar dele?
- Acho que sim.
- Então não se preocupe com o nexo. Vai falando na medida em que for lembrando. Facilita perceber a importância de cada fragmento no todo.
- Tudo bem. O que eu mais sentia era uma tremenda angústia, uma vontade de voltar para casa sem saber para qual casa voltar, assim como se nenhuma das tantas casas onde vivi fosse agora a minha própria casa. Foi quando a vi passando ao longe e quis dela me aproximar. Sentia a certeza de que ela saberia me conduzir de volta para casa. Eu a vi através das grades que cercavam o local onde me encontrava. Alcancei o portão. Ele estava trancado com um cadeado. Percebi que o cadeado estava destravado. Tentei removê-lo e abrir o portão, mas por mais que fizesse força, meus esforços nada conseguiam movimentar. Ela estava se afastando para cada vez mais longe. Foi quando tive a idéia de passar por entre as estreitas grades daquela cerca, o que consegui facilmente. Mas nesse esforço, nessa perda de tempo, ela desapareceu e o sonho acabou. Acordei com a angústia de querer voltar sem saber para onde e a certeza de que somente ela poderia me confortar!
- Depois você me fala dela. Agora, me diz se você, logo que se acalmou, não percebeu que se tratava da realidade de outra pessoa e não “sua” realidade?
- Percebi, sim, cara. E é isto que está pegando!
- Eu penso que pela minha mente passava a angústia de um amigo tragicamente falecido.
- Então “ela” era na realidade uma ligação forte dele, e não sua?
- Na verdade, minha também. Preciso explicar melhor: desde o primeiro momento em que dela me aproximei – e isso aconteceu há muitos anos passados – senti um encanto fora do comum, coisa que nunca antes experimentara!
- Ela era assim tão bonita, tão gostosa, tão atraente? - quis saber Val.
- Não. Não foi nada disto. Embora ela fosse, ainda é, muito bonita. Mas o que mais senti naquele primeiro momento foi encanto e temor!
- Como assim? Vocês homens são todos movidos a sexo e atração!
- Nem sempre, irmãzinha. Nem sempre. E você sabe bem disto. O fundamento principal do seu relacionamento hoje é uma profunda amizade e entendimento, além dos laços de família, não é mesmo?
- Correto. Você tem razão.
- Pois bem, o que senti naquele primeiro instante foi uma antecipação e uma certeza daquilo que você, depois de tantos anos passados, vive hoje com seu marido.
- Agora você me deixou muito curiosa. Como é que podem acontecer coisas assim?
- Pedro riu um riso gostoso. Depois justificou: interessante como as lendas às vezes se fazem tão reais! Falo da cortina de Pargod, que Enoch observou no céu de Arabot. Lembram?
- Lembro.
- Eu também me lembro, confirmou Val.
- Isto quer dizer que ela é minha alma-gêmea?
Minha idéia de alma gêmea permanece aquele que o rabino Saltoun nos ensinou naquele curso em Curitiba: uma companheira que, alcançada sua própria perfeição, reencarna outra vez somente para nos ajudar a resgatar, na terceira e última chance, um carma ou pecado capital muito difícil de ser superado. Isto tudo na base da pressão e do castigo. A idéia de um relacionamento idílico não passa, para mim, de auto-engano. Depois de uns instantes de reflexão, Pedro continuou:
Relembrando os fios de ouro e suas composições, parece mais que vocês todos, ela e ele, inclusive, são companheiros cármicos. Ele se afastou- para compor outros desenhos com outros companheiros e companheiras. Vocês seguirão juntos, certamente que seguirão juntos, para vivenciar outras experiências, adquirir outros conhecimentos.
- Esta possibilidade me encanta e me assusta, confesso. Mas que me resta fazer, mestre?
- Nada. Apenas fazer! Diz pra mim: você tem alguma memória passada dela? Quero dizer, não memórias concretas, mas abstratas, intuitivas?
- Aí é que o bicho pega. Eu tenho, e muitas! Algo de que nunca falei para ninguém.
- Arrisca falar?
- Sim. A mais forte delas uma quase certeza de que ela já foi minha irmã mais velha.
- Imagina um nome?
- Imagino.
- Algum lugar ou época?
- Também.
- Pedro voltou a seu modo peculiar de sorrir: solto, gostoso.
- Onde a graça, mestre?
- Na sua seriedade e temores.
- Sério?
- Sim, sério!
Antes de começar a explicar ele tomou uma inspiração profunda. Fechou os olhos e começou lentamente a falar:
- Como você sabe, como ensina Jung, sonhos significativos têm componentes muito intimamente ligados à mente do sonhador. Qualquer outra mente ignorará esses componentes e a interpretação resultará incompleta. Mas nos ensinam que existem também outros sonhos que nada têm a ver com a realidade do sonhador. Apenas se expressam em outra mente que se encontre em estado receptivo. No sonho que você acabou de relatar, me parece ocorrerem as duas hipóteses: componentes que nada têm a ver com a sua realidade pessoal, como a volta para casa, e componentes muito íntimos – ela. Pensando bem, ela bem pode ser um componente comum, digo, um componente que tanto pertence à sua mente como à mente, ou consciência, que deu origem ao sonho.
Sem se importar com o resultado de sua interpretação, Pedro passou a servir o chá de ervas especiais que Val depositara sobre a mesa enquanto conversavam.
N experimentava agora um enorme alívio. Tão grande quanto a necessidade de dizer a ela que procurasse evitar que seu sofrer perturbasse ainda mais a consciência de seu falecido marido. Coisa difícil, pois desde a tragédia, seus temores e outros fatores estranhos conspiravam para que não mais se encontrassem, não mais se falassem.
Como vimos, existem sonhos e sonhos, continuou Pedro.
- Sonhos e sonhos? - quis saber, mas, nesse exato instante, a esposa do amigo trouxe o almoço e interrompeu o fluxo da conversação, comentando sobre o trabalho que tivera no cultivo dos cogumelos de sol que estava servindo.
Menos de meia hora depois de comer, N começou a sentir-se mal. Puxou um longo hausto, massageou as têmporas, tentou se acomodar melhor.
- Você não está bem?
- Não sei. Meio esquisito!
- Como esquisito? Explica melhor – disse Pedro, o amigo.
- Estranho... Sinto-me estranho! Meio distante!
- Sensação de ausência?
- Como assim?
- De repente, parece que você acabou de chegar. Chegar de não sei onde, mas chegar onde você está. Nesse lugar, nessa situação, nesse corpo... E se eu não voltar mais? Para esse lugar, essa situação, esse corpo?
- Preocupa não – disse Pedro sorrindo. O fenômeno, a sensação, não tem nada a ver com alma, cordão de prata... Aliás, fica tranqüilo que o seu cordão de prata está bem grosso e firme. Posso ver daqui!
- Mas incomoda!
- Respira profunda e lentamente. Manda prana pro cérebro que ele melhora!
- Sente-se melhor agora?
- Não, cara, acho que estou piorando.
- Toma um pouco desse chá, ele vai lhe fazer bem! - ofereceu Val.
- É daqueles seus chás?
- Este é o meu “sonhosbons”. Quer deitar? Eu lhe arranjo uma cama confortável.
- Quero sim, querida. Quero sim.
- Dormir lhe fará bem. Voltar a sonhar será ainda melhor. Fique calmo, não tenha medo e tudo se resolve, aconselhou Pedro.
- Está confortável agora? – ela perguntou, depois de o acomodar em uma cama no quarto de hóspedes.
- Bem...
- Bem o que? – pode dizer.
- É que eu costumo meditar sem roupa nenhuma. Sorry.
- Não seja por isso! Pode ficar a vontade. Como você bem sabe, gosto de homem peludo, não pelado!
- Mas este seu peludo é meio peludo de mais, não acha? Parece que acabou de sair das cavernas! Conta pra mim: como é que foi que ele conquistou você? Deu uma pancada na sua cabeça e lhe arrastou pra cá?
- Não, seu bobo. Foi com muito charme e muito carinho. Não foi tão simples assim! Agora relaxa. Vou lhe cobrir com um lençol e depois você se livra da roupa que tiver atrapalhando o seu relaxar. Fica frio. Se alguma saliência inconveniente acontecer, eu cuido dela com minha melhor faca – ela ameaçou. Depois, rindo gostosamente, acrescentou: vou deixar uma dezena de respeitáveis senhoras na maior solidão.
- Não exagera, não são tantas assim!
Depois que ela se afastou, iniciou sua rotina pessoal de esvaziamento da mente, produzindo mentalmente o som melodioso de seu mantra pessoal. Agradeceu tudo quanto de melhor experimentara naquela manhã. Depois agradeceu também o bom, o menos bom até conseguir encontrar recompensa e significado até mesmo no que de pior experimentara.
Como de hábito, seu metabolismo se modificou e começou a sentir frio. Puxou um cobertor. Depois percebeu quando seus pensamentos começaram a fugir e tomar um curso próprio, misturando fatos, leituras e conversas recentes com antigas memórias. Percebeu quando tudo começou a se transformar em sonho. Um agradável sonho em que as memórias afluíam em toda a sua cor e intensidade. Um sonho quase sem fim, assim como a nossa própria vida, cujo fim somente os outros percebem.
Alegrou-se ao perceber a presença de um antigo companheiro que não pode identificar de pronto. Admirou a elegância simples com que ele se vestia, seu terno impecável, as cores combinando perfeitamente com sua figura. Estendeu-lhe a mão, prazerosamente. Seus olhos lembravam os olhos de um verdadeiro mestre quando ouve atentamente um membro da sua classe.
Agora sentia um corpo. Sentia que possuía um corpo e que se expressava e se localizava através desse corpo, mas o corpo não lhe incomodava ou atrapalhava. Pelo contrário, o corpo acrescentava sensações agradáveis, como a sensação de abraçar um velho amigo.
Subiram por uma longa escadaria, acarpetada. Percebeu que estavam entrando em um cinema escuro e vazio. Há muito tempo não entrava num cinema. Acomodaram-se numa confortável poltrona. Em silêncio, sem nada dizer, o mestre lhe transmitiu algo: iam ver um esboço de filme. Um filme ainda não completamente editado. Mesmo sem nunca ter experimentado ou pelo menos acompanhado o trabalho de um editor, sabia que as seqüências deveriam ter sua aprovação para serem incorporadas ao roteiro final e se transformarem na realidade do filme.
As luzes diminuíram de intensidade e uma musica suave, arrebatadora ocupou todo o ambiente. O proscênio se iluminou.
Uma cortina lentamente se abriu e se transformou no próprio filme. Seus fios de ouro extremamente finos e brilhantes, por um breve momento, penderam soltos e separados. Logo depois se foram entrelaçando, compondo figuras de geometria simples que se tornavam cada vez mais elaboradas, mas sempre deixando perceber claramente o curso de cada fio, perceber como cada um se ajustava aos demais fios para compor uma espécie de rica e artisticamente elaborada peça de tapeçaria. Às vezes um fio se desgarrava, interrompia seu curso junto ao conjunto de fios. Sim. Era essa a impressão. Um conjunto de fios se misturando e alternando dentro do desenho. Mais longe, numa espécie de distância que não era apenas física, mas também temporal, o mesmo fio reaparecia, para se harmonizar novamente com o conjunto de fios a que pertencera e com eles formar novos desenhos. Mas a impressão dominante era de que os fios sempre se acompanhavam; de certa forma, sempre se acompanhavam. As seqüências ficaram confusas. Por um breve lapso de tempo, pareceu-lhe estar no cenário, interagindo com personagens conhecidos e familiares, mas não conseguia lembrar nem de onde nem de quando os conhecia. Tinha, porém, uma absoluta certeza: de algum lugar, de algum ponto comum os conhecia a todos.
Perdido em lembranças da lenda de Enoch diante do trono, não percebeu quando sua percepção alterada o fundiu com as cenas que se projetavam diante de seus olhos. Desaparecera agora a tela de projeção, o feixe luminoso e colorido, a sensação de estar em um local fechado e escuro. Permanecia apenas a agradável e tranqüilizadora sensação de estar bem acompanhado e protegido por um guia e mestre.
- Posso ver de novo o começo, mestre? - perguntou respeitosamente. Perdoe, mas não prestei muita atenção na abertura!
- Ó sim. Não se aborreça com coisas assim tão simples. Você é o dono deste filme. Pode vê-lo e revê-lo quantas vezes quiser!
As imagens correram rapidamente para trás. Houve um ajuste de foco e lentamente tudo começou a fluir novamente em sua ordem natural. A abertura, agora que ele se acostumara a essa nova realidade, parecia ser mostrada bem lentamente.
Viu uma aldeia de casas brancas, linhas retas. Percorreu ruas estreitas. Sentiu a proximidade do mar, a brisa úmida, o cheiro forte de peixe, viu a muralha de pedras que quase circundava a pequena aldeia. Escalou o obstáculo e contemplou o mar azul lá embaixo, a espuma branca malhando a base dos rochedos. Sabia que naquela direção jamais alcançaria chegar ao mar. Seguiu margeando a muralha ladeira abaixo até encontrar o ancoradouro de onde partiam, mas de onde nem sempre voltavam, os pescadores. Uma imensa onda de saudade e nostalgia o acometeu. Trazida pelo vento, um sopro de flauta pan reproduzia antiga canção. A dor de alma era agora quase insuportável. Sentiu suas forças se esgotarem na luta contra ondas enlouquecidas. Depois a embriaguez, o torpor, a estranha leveza e mobilidade de quem não mais carrega consigo o peso do próprio corpo. Mas o incomodo de imensa saudade e ausência continuavam iguais.
- Mestre, quem sente tamanha dor? - perguntou. - - Alguém que muito lhe ama, certamente!
Ficou refletindo, enquanto outras cenas desfilavam diante dos seus olhos. Um olhar e um sorriso prenderam sua atenção.
- Mestre, é ela?
- Eu sabia – alegrou-se o mestre - que você a reconheceria sempre que novamente a reencontrasse!
Somente agora percebia quantas vezes a reencontrara e novamente a perdera! Ela a mãe, a irmã, a mulher, a namorada! Ela sempre amiga e companheira. Somente agora entendia como companheiros cármicos vivenciam situações e conflitos diversos ao longo de várias existências. Somente agora sabia a razão do enorme encanto que sentia por ela!
Ao final, as cenas desapareceram. Um instante de total escuridão e uma luz incidiu diretamente em seus olhos como os primeiros raios de uma nova manhã. Ainda pode formular uma ultima pergunta:
- Mestre poderia ver também o futuro?
- O futuro será como você o imaginar. Bem... Dependerá de suas futuras escolhas combinadas com as escolhas de todos aqueles que mais diretamente convivem ou conviverão com você, além dos desígnios da Providência em benefício de todos, é claro.
- Não. Não é claro! - retrucou. Mas que assim seja!
- Assim seja!
......................................
Despertou. Reconheceu o lugar onde se encontrava. Depois ficou um longo tempo refletindo sobre como sua vida alcançara um ponto de não retorno e como tudo nela se transformaria a partir daí!
Levantou-se em ótimo estado. Despediu-se dos amigos e, rompendo um longo tempo de medo e hesitação, foi direto ao encontro dela.
Quando a encontrou, cumprimentou-a com palavras simples, comuns para aquela circunstância. Ela respondeu com um sorriso que iluminou seu rosto bonito. Seus olhares se perderam um no outro. E depois, por um instante quase eterno, no fundo dos olhos dela, suas almas se reencontraram!








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