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Contos-->MARIA -- 18/08/2008 - 10:55 (JOSÉ DAS NEVES NETTO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Estávamos todos no mesmo barco. O barco da vida, fazendo água, afundando aos poucos. Em longo prazo, estaríamos todos mortos. Mas enquanto a morte espreitava de perto alguns de nós, os outros ali apenas acompanhávamos nossos enfermos. Ou melhor, acompanhávamos até o momento em que seus nomes eram chamados e sozinhos eles enfrentavam os temores e sofrimentos de seu destino.
Era sempre uma longa, quase insuportável espera naquele palco de horrores. Fumantes, muitos fumantes. Velhos esbranquiçados. Rostos jovens e idosos, homens e mulheres marcados com o estigma vermelho dos mapas radioterápicos ou com as deformidades causadas pela doença implacável. Negros, fortes ainda, embora já trouxessem estampado nas veias dos braços o branco caminho do soro quimioterápico.
E havia os enfermos desacompanhados, vítimas do preconceito que dominava seus amigos e parentes e marcava estes com um estigma talvez ainda pior que o da doença, cujo nome amaldiçoado e aterrador evitávamos pronunciar naquele hospital especializado.
E havia também as crianças. Com seus brinquedos... E com suas marcas também...
Lá fora, uma rua apinhada de pessoas em meio a automóveis e ambulâncias no seu incessante ir e vir. E o silêncio das buzinas. E a paz da mútua aceitação. E a solidariedade voluntária das mulheres com suas bancas na calçada, distribuindo alimentos aos que vinham de longe, sem dinheiro, trazidos pelas ambulâncias. Diante da presença quase visível da morte brutal e inevitável, todo aborrecimento deixava de ser tão aborrecido e todo tempo perdia sua pressa, sua urgência em simplesmente passar.
Naqueles tempos, havia dias em que ali permanecíamos desde manhã até a noite. E havia semanas em que ali comparecíamos todos os dias. Era uma rotina comum a muitos enfermos e acompanhantes. Era a vida que levavam aqueles que ainda teriam de enfrentar dias piores, em que voltar para casa não mais seria possível!
E assim passando os dias, era natural que conversássemos, chorássemos, ríssemos, ou simplesmente nos abrigássemos em nosso destroçado mundo interior.
Foi num desses dias, desses momentos, que ouvimos, eu e minha filha, a impressionante e mágica história de uma Maria e seu filho, contada por um velho caminhoneiro. Ele a contava sem perceber as metafísicas implicações que ela continha.
“Naqueles tempos eu viajava pela Bahia” – contava o homem. “Transportava frutas e verduras para um atacadista da CEASA. Eram dias ensolarados, estradas sem fim. Tempos bons aqueles! Foi numa dessas minhas viagens, exatamente numa em que meu caminhão vinha carregado de caixas e mais caixas de mamão papaia, que eu resolvi parar para comer um mamão maduro de beira de estrada. O mamão prendeu minha atenção quando eu ia subindo uma ladeira. Parei um pouco mais acima, voltei de marcha a ré e estacionei no acostamento. Tudo quanto a vista alcançava naquela região eram mamoeiros carregados. Mas mamões maduros eram raros. Os donos mandavam catar os temporões antes que amadurecessem. Se colocados por engano nalguma caixa, toda a caixa amadureceria e se estragaria antes de chegar ao mercado”.
“Eu já estava sentado numa sombra, de faca na mão, comendo o mamão, quando o diacho do dono da lavoura apareceu. Deve ter vindo no barulho do motor que a gente nunca desliga. Virou macho quando me viu com o abençoado mamão”.
“Na paz, eu tentei explicar pra ele que um mamão daqueles, naquele lugar, não valia nada! Mas o homem tava abestado. Mais eu falava menos ele me entendia. Quis pagar o mamão. O bendito me mandou um valor exagerado”.
“Por isto eu lhe entrego uma caixa inteira. Não queira me roubar” – eu falei já meio com raiva. “Não fui eu quem estava roubando aqui” – me jogou na cara o abençoado.
“Era demais pra minha paz. Levantei e limpei a faca na perna da calça. Me deu vontade de fazer uma besteira com ela”.
“Foi quando a mulher apareceu. Maria era o seu nome. Vinha gritando: valei-me minha Nossa Senhora, valei-me meu São Bom Jesus. Trazia uma criança nos braços. Um filho seu que havia acabado de cair num tacho de sabão fervente. De tão magoada, a criança nem chorava. Somente gemia”.
O caminhoneiro fez uma pausa para respirar. Nós, mesmo acostumados ao sofrimento alheio, sofríamos com a narrativa. Intimamente torcíamos por um final feliz.
“No instante seguinte – continuou o narrador – a gente já estava na estrada de novo. Na primeira cidade, fomos direto pro hospital. Enquanto a mãe e a criança sumiam lá pra dentro, eu esperava na portaria”.
“E adivinhem quem me apareceu ali? O abençoado! Tinha se agarrado na traseira da carroceria e vindo junto com a gente. Agora tava todo atrapalhado. A criança queimada era filho dele. Quis pedir desculpas, quis chorar. Quase chorei também. Depois falei pra ele: sabe meu irmão, (e só em lembrar me arrepio todo) foi pela Virgem Maria e por Nosso Senhor Jesus Cristo que eu parei ali. Foi por Nossa Senhora e Nosso Senhor que o amigo arrumou toda aquela confusão. Eles ouviram o pedido da sua mulher. Vontade de mãe é coisa muito poderosa. Vamos rezar e agradecer!”.
“Voltei lá muitas vezes, enquanto fazia aquele trabalho. Viramos compadres. A criança cresceu forte e com saúde. Ficaram apenas as marcas da queimadura” – concluiu o velho motorista.

Mais tarde naquele dia, minha filha quis ouvir minha opinião sobre a impressionante história.
- Pai, perguntou ela, que explicações o senhor pode me dar para esse caso, que me pareceu tão autêntico e verdadeiro?
- Realmente – respondi - não me restam dúvidas de que foi um acontecimento verdadeiro, narrado sem qualquer pretensão, vaidade ou ilusão. Como estudioso e admirador da ciência, eu lhe digo que não tenho nenhuma explicação. Nem do “como” nem do “por que”. Aliás, a ciência se propõe a explicar apenas o “como”, e, nesse caso, o que importa é o “por que”, é a razão pela qual a invocação de uma mãe reordena milagrosamente os eventos. Como estudioso do oculto, dos mistérios ainda não revelados pela ciência - e a comunicação mente a mente é um deles - eu lhe digo que o “como” se explica pela adição de intermediários.
- E que intermediários seriam esses?
- Anjos.
- Anjos?
- Sim, anjos - continuei. Não seres de aparência humana e asas, mas mensageiros, mensagens, motivações, inclinação para a prática do bem... Essas virtudes tornariam a mente das pessoas – especialmente aquelas a quem costumamos chamar de “um anjo de bondade” ou “uma boa alma”, receptivas à comunicação mente a mente. Voltando à ciência, experiências observam que, frações de segundos antes de se transformarem em atos conscientes, as decisões já foram tomadas, de forma inconsciente, em nossos cérebros.
- Nesse caso, o motorista, tendo captado o pedido da mãe, primeiro decidiu parar, e só depois viu o mamão maduro? – ela me perguntou.
- Sabe que eu não tinha pensado nisso? Gostei! Mas outra seria a explicação da Tradição – continuei.
- Tradição? – disto o senhor já me falou. É aquele conhecimento que vai passando de geração a geração até que a ciência transforme o mistério em verdadeiro conhecimento?
- Bem... Na prática, no interesse, a Tradição se institucionaliza sob uma denominação qualquer e permanece aferrada aos seus velhos e “consagrados” ensinamentos, ignorando as descobertas da ciência.
- Como no caso do reino fungi?
- Ótimo exemplo! Mas como eu ia te dizendo, segundo a Tradição, seres angelicais encarregados de nos auxiliar em nossa caminhada do berço ao túmulo e que, por não conseguirem mover uma palha sequer, reordenam os eventos prendendo ou distraindo nossa atenção e, assim, nos livram do mal que não merecemos ou nos conduzem a merecidas bênçãos.


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