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Contos-->DOIS ESPECTROS -- 09/08/2008 - 17:07 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
DOIS ESPECTROS

Francisco Miguel de Moura*




Ontem, quando eu ia saindo de casa, vi um homem sujo, maltrapilho, puxando um cachorrinho magro que fazia dó, tal como seu dono, ou presumível dono.
Até aí nada de mais, é comum que os magros se acompanhem com os magros, os desvalidos com os desvalidos, os famintos com os famintos. É comum ver-se esmoleres ou pessoas outras batem às portas de residências pedindo comida, inteirar dinheiro de passagem, comprar um remédio... Normalmente levam um papel na mão.
Este, não. Olhou-me bem nos olhos quando saí, talvez porque estivesse perto do lixo de minha residência, não tão importante quanto ele pensava que fosse. Parece-me que nada encontrou de bom que pudesse apanhar.
E saiu desconfiado como se não fosse nenhum caçador de lixo, puxando seu cachorro. Eu já ia bem avançado e resolvi olhar para trás. E vi-o acercando-se dos sacos de lixo de outra residência – mais bojudos, maiores e um pouco mais fedorentos.
Deve ter pensado:
- “É aqui que eu vou encontrar minha comida de hoje.”
Mas não tirou-me os olhos enquanto eu não reencetei caminhada, virando-me para o outro lado. Não me deu às costas nem tratou de apanhar o que desejava, conquanto ficasse rodeando, nervoso, o que seria seu apetitoso almoço (ou jantar) daquele dia.
Inesperadamente, já um pouco distante, virei-me novamente e ele, o homem acocorava-se diante dos pacotes e tirava não sei bem o quê de dentro. Ao invés de ensacar no seu saco que trazia a tiracolo o que encontrou de importante, carinhosamente chamou o cachorro por um nome que não mais conseguia captar e deu todo o conteúdo adquirido.
O homem mais ama o cão do que o cão ao homem.
O que seria? Tive que ficar na dúvida.
Também não importa muito. Embora houvesse deixado a porta entreaberta, pois ia apenas comprar pão da padaria da esquina, não voltei para fechá-la bem, botar o cadeado. O que me importou foi pensar que a amizade entre aquele homem e aquele cão era uma verdadeira amizade. Mas ao mesmo tempo refleti:
Por que o traz jungido à corda?
Apressei o passo para que, na voltar, pudesse acudi-lo com um pão cheiroso, dentre os que traria para minha ceia.
No momento, a imaginação me foi tomando conta e pensei mesmo que cachorro é um bicho vadio, principalmente esses cães que vagam pelas ruas, chamados de vira-lata, sem “pedigri” nem história de pertencer a alguma raça melhor que a comum. E, para que ele não fosse embora, até mesmo pelo mal passadio, o homem o prendia. E assim conservava “alguém” que lhe fizesse companhia durante sua solidão. Quem pensa que uma criatura como aquele homem não sente solidão, pensa mal. Ele sente muito mais. Às vezes revolta. Outras vezes é um conformado. Nem fala direito porque já esqueceu tudo, se é que um dia aprendeu. Nem o homem nem o cão que o acompanham têm a dignidade que a vida devia oferecer. Mas a vida? O que é a vida. Ninguém sabe de onde vem nem para onde vai. E ainda, ninguém sabe como levá-la para frente. Ainda bem que o cão não chega a pensar isto. Mas sente. O homem quase só sente. Porque seu pensamento limitou-se a escapar da morte por fome. É tudo o que faz no mundo. E mal, porque ainda tem vergonha de fazer o que faz. Ou tem vergonha de si ou do lixo, como se não fosse do mesmo estofo, porque não lhe dá uma moeda ou algo que possa transformar em moeda.
Para ele, viver ou morrer tanto faz. E no entanto, vive. Sem prazer, sem nenhum alegria. E ainda se diz que não há inferno. “Pode haver quando se morre”. Mas não sei”. O “eu” já sumiu. Por isto quer morrer. E não quer. Não tem alma. E bebe. E ainda há alguém que lhe negue uma moeda para beber e esquecer, dormir.
Xinga pra dentro e às vezes pra fora, quando lhe vem a ira divina de que todo ser possui um pouco.
Um homem sem “pedigri” como o seu cão. Não faz mal a ninguém. Somente à nossa consciência de humanidade.
– Um verdadeiro homem?
– Um espectro!

***

Quando voltei, o homem não estava mais. Tinha-se ido com o seu animal.

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*Francisco Miguel de Moura é escritor, mora em Teresina.
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