Usina de Letras
Usina de Letras
142 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62219 )

Cartas ( 21334)

Contos (13262)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10362)

Erótico (13569)

Frases (50612)

Humor (20031)

Infantil (5431)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140800)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6189)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
cronicas-->Suicídio com Hora Marcada -- 20/07/2005 - 01:32 (Carlos Eduardo Canhameiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Suicídio com Hora Marcada

Carlos Canhameiro

Ele olhou para o relógio na mão direita. Tinha fascínio por relógio na mão direita. Ainda não era chegada a hora. Diminuiu o volume da televisão. O programa não tinha nada de especial. Abriu a janela. O sol oferecia o melhor das tardes de inverno. No recorte da vidraça, uma complexa floresta de cimento e ferro. Macacos dependurados em elevadores com suas caldas feitas de gravatas. Prédios, centenas deles, cinzas, imortais, inanimados pulsando vida em seus interiores. Olhou, olhou mais uma vez com olhos insaciáveis. Sorriu. Iria se matar, sabia disso, havia decido e nada mais lhe dava tanta certeza da ação do que o quadro vivo pintado pela janela de seu apartamento. Puxou uma cadeira, desgastada pelas inúmeras nádegas, de todas as formas e desejos, que por ela haviam sentado. A folha deixada sobre a mesa com uma caneta por cima. Escreveria suas últimas palavras, apenas não havia escolhido quais delas, do infinito das sensações, iriam preencher o papel em branco. Caneta entre os dedos, num balanço incerto completado com a pausa entre os lábios. Hora na mão direita. Tinha tempo, muito, todo. O tempo sempre fora conservador, não deixaria de sê-lo naquele momento. Uma olhada por sobre os ombros, a cidade mais uma vez em quadro, as primeiras das últimas palavras.
"Não planejei um fim; ele me foi apresentado no decorrer dos dias. Tornou-se conhecido, depois necessário, um amigo imprescindível."
Não tinha certeza da primeira frase. Rabiscou no cabeçalho o destinatário. "Amados". Sorriu do excesso de cristianismo. Desviou a atenção para a televisão. Amaldiçoou o poder que ela exercia, mesmo nos momentos cabais. No enterro do pai, ficara com os primos, na sala, assistindo desenho animado e sequer concedeu, a ele e ao pai falecido, o direito de um último adeus. Mesmo assim, não se permitiu desligar a TV.
"Não tenho mais lugar no mundo real. Na verdade, fui derrotado pela realidade. Não sei se compreenderão isso, talvez não, porque estejam contaminados demais por ela: a realidade".
Puxou o cigarro do bolso. Fumou com um prazer de outrora. Não pelo vício já estabelecido e enraizado. Pela sensação inexplicável do saber o mal causado e se permitir causá-lo. Bateu as cinzas no chão. Uma liberdade até então renegada.
"Seria ingênuo pedir para não chorarem. Num mundo como o nosso, o choro parece a única arma possível. Chorem por si mesmos, não por mim. Jamais precisei, quis ou glorifiquei o choro ou quem quer que chorasse. Sou alimentado pelo sorriso, pela descontração, pelo inédito mesmo que velho, pela felicidade parca, pueril, inocente. Pelo abraço, afeto, aperto de mão, pelo coletivo. O choro me consome. Não chorem. Eu sou ingênuo."
Teve receio das palavras. Nelas não seria possível identificar o tom, a melodia, seu sorriso maroto, sincero. Se fosse lido preto no branco, seria mal interpretado. Pensou em riscar. Desistiu. A preocupação era infundada à luz do acontecimento planejado. Desligou a Tv. Escolheu um CD. Olhou o relógio. O tempo ainda era uma entidade confiável. Escorregou na cadeira, deixou-se embalar pela canção fácil. Nada mais lhe dava tanta certeza de que o mundo havia sucumbido. Os edifícios mais altos tiravam o homem do seu patamar. A necessidade de sair do chão, de se afastar de sua natureza terrena. Queriam Torres de Babel, muito mais para fugirem do inferno do que para falarem com deus.
"Não busquem explicações porque de certo que chegariam a alguma equação simples: a ausência do pai. A falta de atenção. O rompimento do namoro. Bobagens. Não há explicações necessárias e suficientes. Encarem como é: uma morte. Poderia ser acidental. Nada mudaria, porque no final das contas, nada muda por mais que o mundo gire para frente. Não me faltou carinho, pelo menos não que eu não pudesse remediar. Os motivos não são claros, não são palpáveis, não são concretos. Talvez o desejo pela explicação seja o melhor motivo para se matar. Talvez essa fúria irracional pelo racional é que seja a exterminadora da vida. Abstrato, faltou o abstrato."
Pegou uma maçã na cozinha. Mordeu e sorriu. Estava provando do fruto proibido da mitologia cristã. Procurou pela serpente maligna pela sala. Encontrou apenas a cidade recortada. Cuspiu as sementes pela janela, numa esperança de semear a queda do paraíso. Sorriu mais uma vez dos desejos infantis.
"A realidade me matou. Ela mais do que ninguém. Não há culpados como gostariam os catequistas. Encará-la foi um desafio maior que a própria vida. Morro eu ou morre a realidade? Morro eu, como vocês já sabem. Me esqueçam. Único desejo em que serei atendido. Não por vontade, mas por imposição do tempo, do mundo real. De fato, vocês já me esqueceram. Talvez fosse melhor que vocês sentissem a minha falta. Quem sabe assim eu teria um novo lugar no mundo. Não acredito em tamanha reviravolta, se no fundo acreditasse, não partiria. Parto, todo, sem deixar parte minha em lugar nenhum. Parto para o local onde a realidade não pode alcançar."
O relógio anunciava a hora. Colocou-o sobre suas últimas palavras. Travou o horário. O tempo chegara no seu limite. Desligou o som. Levantou-se da cadeira e num ato jogou-se de braços abertos pela janela. Voou por sobre a cidade, o sol enamorando-se cada vez mais pelo horizonte, caía lentamente. Os faróis dos automóveis começavam a brilhar. Ele desapareceu. Naquele dia a fantasia havia morrido.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui