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Contos-->REBELIÃO DAS ALMAS -- 29/07/2008 - 19:57 (Francisco Miguel de Moura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

REBELIÃO DAS ALMAS

Francisco Miguel de Moura*
.
A avenida era longa e larga, cortada por outras avenidas menores que se cruzavam. Postos e vendas de um lado, casas residenciais de outro. Não havia o que temer, tudo muito à vista. Mas, não sei por que, naquele dia senti um aviso. Uma espécie de emoção que chega de repente, sem nenhum motivo. O coração bateu, bateu.
Por que mudara o roteiro de minhas caminhadas vespertinas?
A vida é um vinho derramado do qual tentamos aproveitar o possível e o impossível.
Ia repensando os amigos, quem encontrara, quem não vira nos últimos tempos... Quem morrera, oh Deus! Quem não morrera...
Olavo, onde estará ele? Vivemos na mesma cidade. E ao mesmo tempo, neste último ano, tão distante como se noutra galáxia.
A caminhada fora além da conta. Fazia esforço dobrado para vencer a distância a maior que a do comum dos dias, chegar em casa ainda com forças de tomar o banho frio da manhã, antes do sol. Os passos cada vez mais devagar. Nessas horas o pensamento desliza.



“Nunca mais vira o Olavo.
Não era meu vizinho, apenas conhecido. De olhar brilhante como se a vida borbulhasse no seu rosto, muitas vezes nem parecia natural. Forçava abrir os olhos em plenitude, depois de tirar os óculos escuros, marca reiban, sobrevivência dos seus longos anos de motorista de caminhão, por distantes estradas do país. Depois que se tornou “novo rico”, aprendeu a beber vinho, gostar de festas familiares. Tornou-se, enfim, um fazedor de anos e natais com perus e uísques, no seu próprio lar, à beira da piscina, onde gostava de reunir parentes, vizinhos e amigos – dizia.
Fui-me incluindo na sua relação de amizade nem sei por quê. Os encontros eram amiúde, e as conversas, onde quer que houvesse coincidências. Nem sempre comparecia aos seus insistentes convites, depois de algum tempo quase rogativas. Por vergonha de tornar vulgar demais nossa amizade, creio. Ou, quem sabe, medo entrar na sua intimidade.
Calado é como me recebia. Não arrotava riquezas nem amores, como seria de esperar por causa de sua vida passada. Logo que o conheci, sabia possuir mulher e filhos mas não era casado nem no civil nem no religioso.
Contava piadas e não ria, deixava que os outros a desfrutassem, não sei se para pensarem que gostava de ser daquele jeito, de uns prazeres solitários... Ou porque sentisse necessidade de reprimir-se com vergonha do que fora e do que não podia ser sem voltar no tempo.
Esplêndido na sua generosidade pelos gestos e pelo silêncio.
Mas Olavo não deixava de ter uma palavra amiga, de otimismo, sem alterar a voz, o andar, o movimento dos braços...
Na rua era diferente. Minha liberdade crescia e então me desdobrava na conversa de botequim. Creio que ele já sabia quase tudo de mim.
- Nossa cerveja?
Ia longo apontando com o dedo para o barzinho de costume, o “Xixico da Sílva”, sem o aperto de mão ou mesmo o abraço costumeiro, como se dissesse:
- “Ali!...
Quantos foram nossos encontros, não sei. Quantas festas de anos, aniversários, de reis, carnavais, páscoas, também não. Houve muitos outros bares. Muitas bebidas. Cachaça era no “Xixico da Silva”. Cerveja, em qualquer esquina ou no futebol. Vinho, só nos aniversários, em sua casa.
Não era rico, na expressão da palavra. Vivia como classe média, embora possuísse bom recurso, suficiente para bancar o bom burguês. Seu passo cadenciado, leve, preguiçoso, mereceria um capítulo à parte. Nada que possa levar a segundas intenções. Justamente por isto.
Aniversários dele, da mulher, dos dois filhos, da emprega, até do cachorro. Um escândalo dos diabos. Que, por isto, jamais se repetiu.
Uma vez me chorou a fuga do “louro” de estimação. Achei uma tolice para homem tão forte. Mas, enfim... Cada pessoa tem seus próprios sentimentos, cuja medida é bem característica.
Os natais, nem se contam. Foi justamente num natal que falhou.
Carnaval, nada. Semana Santa, não apareceu. Sete de Setembro e outros fins-de-semana prolongados, nem notícia. Um ano inteiro. Pensando com o relógio de agora, foram anos.
A saudade foi crescendo, crescendo...”




A caminhada tinha mesmo passado da conta. Movido pela curiosidade, rodeei o quarteirão e passei pela frente de seu palacete. Fechado. Senti um frio correr na espinha. O que teria havido? Bati, ninguém atendeu. Nenhum cachorro latiu. Senti o abandono por restos de cinza fresca voando pelo que fora o terraço. Um destroço. E depois de mais escutar, um leve bater de janelas. Uma folha aberta. Agitado, ansioso, não vi mais nada. Saltei a mureta toda encarvoada. Procurei o cômodo onde tantas vezes me sentara fumando, proseando com o Olavo. Era justo sua biblioteca. Mais parecia com uma instituição pública, tantas pastas e fichários se viam, além dos livros encadernados, dos jornais empacotados. Certa vez, sem pabulagem, me falara que eram mais de dez mil volumes. Iriam dar trabalho aos herdeiros, quando morresse.
E o que encontro daquele colosso?
Cinzas.
Não tive mais o que esperar. Cuidei que a casa toda havia incendiado, ou ainda estava ardendo. E estava. As cinzas dos papéis eram vivas, frescas. De dentro vinha aquele cheiro horrível de combustão. De vez em quando, uma lufada de fumaça invadia os cômodos da frente, saía pela rua.
Falei com o primeiro passante.
De nada sabia.
Bati na porta do vizinho, pois a campainha não atendia.
Saiu uma senhora gorda, com vassoura e balde na mão.
- Sou amigo do Olavo de muito tempo, quero uma informação.
- Ele foi embora.
- Para onde? Por quê? Tem o seu novo endereço?
- Não. Ele tocou fogo na biblioteca depois que a mulher... Dizem, eu não vi.
- Morreu?
- Foi embora.
- Assim, sem mais nem menos?
- Não, o senhor não sabia? Seu Olavo foi sorteado na loteria. Um prêmio de milhões. Não sabia onde botar tanto dinheiro. Depositou tudo em nome de d. Teresinha, na Caixa Econômica Federal. E ela desapareceu com os filhos.
- Foi seqüestrada, então?
- Nada, sem-vergonhice!
- E ele?
- Que fazer? Contratou advogado. Juntou-se com a empregada da casa, alugou um quarto-e-sala e espera ganhar tudo de volta. Continua jogando na loteria.
- E por que Olavo fez aquilo com os livros?
- Ele saiu dizendo que ia aproveitar seus últimos dias...






Desci a rua sem esperanças. Caminhei atoa, querendo colocar os pensamentos em ordem.
Lá embaixo, já pertinho da praia, avistei um homem em maus trajes, com a cara vincada de tristeza e solidão. Era ele. Fomos nos aproximando....
Ele falou primeiro:
- Rodrigues! Reconheci pelo topete. Aceita um copo de cerveja, como antigamente? Ah, meu velho, quanto tenho sofrido!
Cumprimentei-o como pude. Quase calado no início, como se tivesse caído e perdido a fala. Depois com palavras compassadas, efusivas, embargadas pela emoção, pelo afeto e pela saudade. Ele jamais poderia entender ou sentir, naquele momento, aquelas coisas tão estranhas.
Sentamos.
Enquanto revíamos nossas vidas através de histórias (inventadas, sonhadas ou mesmo remendadas), ele olhava fixo para a janelinha de um quitinete em frente e fixava sua nova mulher, que ia de vez em quando botando a cara de fora.
Eu, por vício ou por vaidade, desfrutava o perfil das menininhas que passavam pelas calçadas, sem pressentir que estávamos no mundo. Nunca tinha bebido tanto em minha vida. Continuava de camiseta e tênis, como saíra de manhã.
E continuei. E continuamos.
Até que a noite caiu. E bebemos... E brindamos, por todos aqueles anos, o vinho que faltava ser bebido.
Depois de uma longa conversa, quando os espaços se alongam por falta de assunto, ia-se estabelecendo o silêncio entre os dois como metáfora daqueles anos todos. Felizmente formos cutucados pelo canto de um galo solitário, num quintal distante.
E então Olavo me perguntou:
- Mas você não me disse, Germano, o que faz de sua vida, agora.
- Disse, Olavo. É que você não teve ouvidos para mim. Eu vivo como sempre. Vivo a vida.
- Eu também – ele me disse.
- Pois então choremos o vinho não bebido.
- Choremos.
E os dois caíram numa ruidosa gargalhada, daquelas que assustam até os cachorros vadios.
- Que loucura?!

_______________
*Francisco Miguel de Moura, contista, cronista, romancista, poeta e crítico literário, com 32 livros publicados, mora em Teresina – PI, e-mail: franciscomigueldemoura@superig.com.br
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