Número do Registro de Direito Autoral:131013760909399200
SUMIÇO em VÊNUS.
Era engraçado gritar na boca do poço. A profundidade fazia um eco que era a diversão de toda a garotada das redondezas. O tio Raul ficava preocupado quando via alguns dos meninos tentando subir nas pontas dos pés ou mesmo em banquinhos para gritar mais no centro do círculo, dentro da abertura. Era perigoso, e um dia... Jorge subiu numa cadeira para gritar. Aí o tio Raul fechou a boca do poço com uma rede de tela. Não que perdesse toda a graça – mas perdeu-se o encanto do escuro buraco que se via quando a gente gritava.
O Jorge era sempre o que estragava as brincadeiras. Era o primo chato, porque ficava emburrado por qualquer coisa e inventava sempre alguma besteira que acabava com o clima, com a diversão. Ele parecia diferente de todo mundo. Usava o cabelo penteado para o lado, que parecia engomado, e dava-nos vontade de rir quando fazia tempo que não o encontrávamos e aparecia daquele jeito.
A chácara do tio Raul ficava no interior. Muitas vezes passávamos os finais de ano todos lá: primos e tios próximos, primos distantes, gente muito amiga da família que tinha filhos e que apelidávamos de “nossos primos”, parentes e quase parentes (existe isso? Na nossa família existia). Nós crianças, adorávamos. Éramos mais de quinze crianças, às vezes menos- quando não ia todo mundo. Se contávamos só os que tinham entre oito e dez anos, a minha idade, a contagem descia para oito. Quatro meninas e quatro meninos. Dois éramos irmãos : eu, Marina, e meu irmão Pedro.
O lugar onde ficava a chácara do tio Raul tinha uma parte mágica. Depois de chegar, quase sempre nós todos ficávamos desesperados para ir à região escondida da clareira. Chamávamos de Vênus. Meu primo Pablo havia lido uma notícia no jornal sobre alguma coisa que mencionava Vênus – o planeta. Um dia (muito tempo depois) eu descobri, conversando com ele que na verdade havia lido um artigo no jornal que falava sobre os Maias, que haviam inventado um calendário baseado em Vênus, ou melhor : inspirado pela presença daquele planeta no céu. Não foi bem uma “notícia no jornal”, porque provavelmente não haviam muitas notícias sobre Vênus no jornal na nossa infância...
Num desses dias em que estávamos todos; corríamos entre as árvores procurando bichos e mistérios, Pablo descobrira Vênus. De repente, paramos na clareira : parecia outro mundo no meio à fechada vegetação da mata. “Parece Vênus”, disse Pablo, que era o mais velho de nós- e supostamente o que mais sabia das coisas. Todos concordamos imediatamente, e chegamos à conclusão de que havíamos descoberto Vênus. Não havia outro nome mais acertado para aquele local mágico. Era de fato Vênus.
Numa outra tarde de uma quarta feira - feriado, todos nós (os oito) havíamos ido à chácara do Raul. Ele mesmo havia dado a ideia, foi buscar-nos um por um, para passarmos na casa dele até o domingo. Iria haver emenda de feriado, nas escolas não haveria aula. Creio que era feriado de Páscoa ou algo assim, para dizer-lhes a verdade eu não lembro esse detalhe.
Que festa: quatro dias – quase cinco, se contássemos a partir de quarta, já que chegamos à chácara por volta das quatro da tarde. Já íamos rindo no carro. Apertados – meu tio pegara seis de nós, e mais tarde chegariam Rosa e Luiz Alberto, que moravam perto e não eram parentes, mas eram considerados nossos primos. Não me perguntem exatamente quem era filho de quem, porque não vem ao caso.
O tio Raul, quase careca, não tinha filhos. Mas tinha a gente. Sua mulher, Aurélia, adorava receber-nos. Agora imagino como era trabalhoso tudo o que faziam, ela cozinhava para todos nos feriados com o maior prazer sacrificando seu tempo, mas certamente não nos dávamos conta disso na época.
Naqueles quatro dias estávamos preparados para tudo. Meu irmão Pedro era insuportável às vezes : não parava de falar e me atordoava com perguntas e ideias, que tiravam meu pensamento dos sonhos fantásticos que faziam parte dos meus pensamentos de menina. Sei lá se era pensamento feminino tudo que pensava, ou era mesmo já um início da minha necessidade de inventar histórias...mas não importa.
Sei é que além de visitar Vênus, fomos descobrir um riacho que parecia novo (não havíamos visto antes). Luis Alberto teve uma magnífica ideia : “vamos cavar um buraco aqui perto do riacho e deixar todas as nossas coisas secretas”.
“Secretas?”; perguntamos : “sim, secretas, nossos tesouros que os adultos não podem ver – as coisas que a gente quiser esconder de todo mundo, e também se uma vez o mundo estiver em guerra, e que a gente possa vir aqui para buscar as coisas escondidas. O que acham?”
Pareceu-nos uma ideia brilhante e adequada. Voltaríamos à casa para buscar o que tínhamos de precioso, e mais algumas coisas que achávamos necessário guardar no esconderijo. Foi nessa época que o meu tio perdeu seu rádio de pilhas e Aurélia uma tesoura pequena de cortar unhas.
Éramos uma manada. Ser feliz era existir. Nossas experiências lúdicas transportavam-nos a outras dimensões, disso eu –hoje- tenho certeza.
Fizemos um buraco perto da beira do riacho. Todos cavamos um pouco, e o buraco ficou fundo. Escondemos um monte de coisas. Algumas embrulhadas em alumínio, já que meu tio guardava rolos de alumínio com os quais trabalhava fazendo sei lá o quê.
Até biscoitos, frutas, bolo e pão caseiro enrolamos em alumínio e guardamos numa caixa de plástico no buraco. Depois fomos seguindo o riacho, e vimos que era maior do que achávamos : perdia-se na selva, e deu-nos medo. Voltamos para casa, rodiziando quem carregava as duas pás que roubáramos do Raúl para cavar o buraco. Prometemos que não contaríamos a ninguém : era nosso segredo.
Dois dias se passaram entre uma brincadeira e outra, sempre indo todos à clareira, ao riacho e ver o buraco coberto de terra com um sinal ( uma cruz de madeira simulando algum animal enterrado- ideia de Pablo, é claro : assim ninguém escavaria nosso tesouro).
As outras duas meninas que pertenciam ao grupo dos oito, eram a Lucinha e Beatriz. Lucinha tinha por volta de sete anos e Beatriz tinha a minha idade. Primas distantes ou talvez nem eram primas, mas de alguma forma que só depois eu vim a entender, elas pertenciam à família, sem qualquer discussão sobre o assunto- já que pouco nos importava.
Era domingo pela manhã e queríamos ir à clareira. Só iríamos embora por volta das seis ou sete da tarde, tínhamos que aproveitar o dia. Não havia, como nos outros dias anteriores, um sol prometedor, mas tínhamos que aproveitar as poucas horas para inventar alguma coisa.
Quando estávamos chegando à clareira; Norton (o cachorro que sempre nos seguia, do qual Raúl tanto gostava) foi embora como se tivesse levado um susto. Nós todos gritávamos por ele mas ele foi embora sem sequer parar no caminho. “É porque deve estar sentindo algo misterioso”, disse Pablo.
Isso não mais nos assustava, talvez um pouco a Pedro, que era o menor. Mas não chegava a dizer nada. De repente, o céu nublou-se e como se alguém abrisse as torneiras, começou uma chuva torrencial sob a qual nada dava tempo de fazer : ensopou-nos, e sem mais nem menos começamos os oito a correr, cada um para um lado, tentando proteger nossas cabeças embaixo das árvores.
“Melhor a gente correr para casa”, gritou Pablo e nós todos, assustados com tanta chuva e já com frio, começamos a correr na direção do caminho que todos conhecíamos e que saía à estrada de terra, pela qual íamos à clareira. Daí, a chuva foi diminuindo até parar, quando então voltamo-nos uns aos outros sacudindo nossas roupas e rindo- todos sem fôlego pela corrida. E demo-nos conta de que faltava um de nós : o Jorge. O nosso primo esquisito ficara para atrás, perdera-se, demorara-se... O que havia acontecido? Voltamos pelo caminho entrando na mata para buscá-lo, e gritávamos seu nome. A passarada dava-nos sustos a cada metro que percorríamos, e percebemos que a chuva fora mais intensa no meio da clareira. Chegando ao local onde estávamos, percebemos que havíamos realmente nos perdido do Jorge, e gritávamos alucinadamente sem obter resposta.
“Ele deve Ter ido para casa, o medroso”, disse Rosa arriscando um palpite.
“Não, ele é tão medroso que não iria sozinho”, retrucou o sabedor das coisas.
Convencemo-nos de que talvez a Rosa tinha razão, e então, suspeitando que também ele poderia ter-se perdido, dois foram buscá-lo em casa : caso ele estivesse lá, eles ficariam aguardando por nós.
Ficamos eu, Pedro, Pablo, Rosa e Lucinha. Foram Beatriz e Luis Alberto, e voltaram mais rápido do que imaginávamos : Jorge não estava em casa.
Começou nosso sufoco: aonde poderia estar, tão perdido que não ouvia nossa gritaria absurda, quase tão alucinada que parecíamos querer colocar para fora os pulmões?
O tempo começava a acelerar – essa era a nossa sensação – e todos íamos ficando com rostos assustados, até que Pedro começou a chorar. Eu abracei-o, mas isso só resolveu uma parte do nosso drama : como faríamos agora? Teríamos que contar ao Raúl e à Aurélia o que estava acontecendo- isso dizíamos eu e a Lucinha, mas todos os demais eram contra a nossa ideia. Combinamos então de sair “em raios ao círculo”, como dizia Pablo bajulado por Rosa, que já me parecia ser sua futura mulher- pois além de olhá-lo o tempo todo sempre concordava incondicionalmente com as suas colocações.
Lá fomos nós : o Pedro comigo, é claro. Rosa e Pablo para outra direção- separadamente. Lucinha e Bia; e Luis Alberto separados, seguindo as mesmas instruções. A ideia era irmos em linha reta afastando-nos do círculo da clareira, e voltarmos em linha reta até chegar à clareira. Quando contássemos sessenta passos em linha reta, gritaríamos todos o nome do Jorge, e depois voltaríamos gritando de vez em quando.
Pedro não parava de me perguntar o que aconteceria com o coitado do Jorge : “ele vai morrer de fome e passar frio de noite se não o encontramos? Vai sofrer muito? Vai morrer no bosque?” Eu só respondia : “não. Vamos encontrá-lo, você vai ver”.
Na verdade as coisas complicaram-se. Voltamos todos à clareira e embora uns ouvissem os gritos distantes dos outros, ninguém tivera a sorte de encontrar o Jorge, ou ao menos escutar sua voz. Estávamos já apavorados, e resolvemos voltar a casa para contar aos tios. Foi uma loucura.
Meu tio Raúl pegou a espingarda- e acompanhado da tia Aurélia e de Pablo e Beatriz, foram à clareira. Eu fiquei responsável por manter os demais em casa, esperando até os tios voltarem
Era já de noite, quando voltaram sem o Jorge, e com o choro de todos, no meio às nossas histórias mal contadas de um para o outro, suposições malucas (como “talvez ele tenha ido para o espaço numa nave de Vênus”, como dizia o Luis Alberto agora) e todo tipo de invenção sobre o paradeiro do nosso primo esquisito...apareceram a polícia e o corpo de bombeiros já bem de noite.
Enquanto a tia Aurélia explicava a um senhor da chácara vizinha; amigo do meu tio, como iria à casa de cada um de nós para deixar-nos na cidade, o Pablo foi levado pelo tio Raul à clareira novamente em companhia dos homens para mostrar o lugar onde estávamos quando vimos o Jorge pela última vez.
Aqueles homens uniformizados, acompanhados de vários vizinhos com lanternas, cordas e um jipe, foram mata adentro em busca do menino.
Lembro-me de ter chegado a casa sob os suspiros assustados de minha avó, que embebida de seu espírito dramático, agarrava sua cabeça e expressava-se “italicamente” : “minha nossa mãezinha de Deus, o que vai acontecer? Como deixaram esse menino sozinho? O que será dele agora, e minha irmão e a Lina -mãe do Jorge -como vão fazer meu Pai do Céu”....
Expressões como essa só eram usadas pela minha avó quando as coisas saíam das estribeiras, e eu tinha perfeita noção do que acontecera.
Era uma tragédia. Uma misteriosa tragédia.
Pablo pediu aos pais que o deixassem telefonar. Eu recebi a ligação com surpresa, achando que ele ia dizer que sabia onde estava o Jorge. Mas não. Era a necessidade de falar conosco, e as suposições, de novo, como fruto de imaginação infantil que necessitava extravasamento.
“Marina, eu acho que o Jorge foi embora para outro planeta. Eu acho que uma nave espacial o levou, pois estávamos em Vênus e ele é muito estranho : tem a testa grande e avultada, eu penso que ele é de outro planeta.”
Tive que concordar com ele que a ideia era bastante plausível : ele sempre fora estranho, não queria falar nem rir muito, e embora gostasse de estar conosco, sempre havia algum acontecimento envolvendo-o.
E se o nosso primo fosse um ser de outro planeta, e pelo fato da gente estar em Vênus (porque esse lugar na clareira tinha mesmo tudo a ver com Vênus) eles resolveram vir buscá-lo? Essas foram as minhas conclusões e dúvidas, levadas a conhecimento do nosso primo que sabia de tudo.
Aquela Páscoa foi um inferno para toda a família e amigos. Meus tios quase enlouqueceram, pois achavam-se responsáveis pelo desaparecimento de Jorge, que já fazia uma semana que era procurado. Nós, os primos que estávamos com ele, não conseguíamos nos concentrar muito na escola, e todos começávamos a Ter reações estranhas ou inesperadas nas situações mais absurdas.
Beatriz tentou sair da sua casa no meio da noite, por achar que se ela ficasse esperando no jardim alguma nave de Vênus viria buscá-la. Ela estava convencida de que o primo tinha ido para outro planeta. Meus pais haviam conversado muito conosco. Pedro e eu achávamos que, mesmo não acreditando na nossa história, algo acontecera que os adultos nunca entenderiam, e que envolvia a viagem de Jorge para outro lugar distante, quem sabe até...Vênus. Mas sabíamos que seria nosso segredo para o resto da vida, pois ninguém acreditava (nenhum adulto) mas, obviamente, era difícil entender o sumiço do Jorge esquisito.
Todos os outros (Pablo, Lucinha, Rosa, Luis Alberto) achavam, também, que algo que envolvia naves e alienígenas havia acontecido com Jorge.
Os pais de Jorge, que não conseguiam desistir de ir todos os dias à chácara do tio, procuravam sem acreditar ainda que haviam perdido o filho de forma tão inconsequente...
Mas nós, crianças, convencidos de que a dor de perder alguém do grupo era insuportável, ainda achávamos que era mais provável encontrá-lo se algo fantasioso tivesse acontecido: com receio de que coisa grave tivesse acontecido (se ele tivesse se perdido, tivesse sido atacado por algum animal, tivesse caído nalgum buraco e morrido de fome, enfim : todas essas coisas terrestres bastante mais prováveis do que uma nave ter vindo buscá-lo, se qualquer coisa dessas fosse provável... então seria pior, porque a probabilidade de não vê-lo mais era “maior”. Pelo menos para nossa mente criativa.
Havia-se passado um pouco mais de uma semana, quando o tio Raul voltou sozinho à clareira, e foi caminhando próximo ao riacho. As buscas eram feitas em helicóptero, pelos bombeiros e pela polícia, e tinham horários determinados. Mas Raul, amargurado e inconformado, resolveu aparecer na clareira sozinho às três da tarde da quinta feira – semana depois do sumiço.
Lá estava ele: semi deitado no chão, próximo ao buraco do tesouro. Comendo –parecia um bicho esfomeado, todo coberto de lama- lá estava o Jorge devorando a comida guardada por nós para o caso de uma guerra...
Lembro-me da alegria de todos quando a notícia familiar chegou. Em casa todo mundo festejou, na verdade acho que foi no dia seguinte que houve um almoço na casa do tio, todos nós- e o Jorge, que a essa altura fora chamado pelos médicos e psicólogos de autista (ou “semi autista”, se isso existe)- todos na chácara festejando num almoço de mais de trinta pessoas...
Quase quinze anos passaram-se. Jorge nunca conseguiu contar o que aconteceu com ele. Nem mesmo sob hipnose, ele disse algo que fizera sentido.
Vamos aos fatos logo após seu aparecimento.
Era dezembro- mês de férias- e nós quatro (Lucinha, Beatriz, Luis Alberto e eu; agora com onze anos) estávamos na chácara. Ao dizer que iríamos dar uma caminhada, a primeira coisa que ouvimos foi : “de jeito nenhum sozinhos!”. Não conseguimos convencer a tia Aurélia nem o tio Raúl de que sairíamos para caminhar e não iríamos à clareira. Era proibido irmos lá sem adultos. E para falar a verdade, era o que mais queríamos. Não deixaram-nos voltar depois do acontecido, e estávamos morrendo de vontade de aparecer por lá. No fim das contas, nunca acontecera nada- apenas o desorientado de nosso primo teria se perdido- como poderia Ter-se perdido em qualquer outro lugar.
Então, convencemos a Dona Eulália – senhora de idade que ajudava a tia Aurélia desde junho desse ano, em casa, já que a tia Aurélia havia quebrado um pé e tivera que fazer uma cirurgia- convencemos a doce senhora a acompanharmo-nos ao centro da cidade próxima- e foi-nos permitido por estarmos com ela.
Lá fomos nós, e depois de chegar do centro (a ida ao centro até a volta descendo do ônibus na estrada de terra próxima à chácara durou mais ou menos uma hora e meia) quando descemos do ônibus, a dona Eulália foi para sua casa, pela estrada e nós... ao invés de entrar na casa, continuamos pela estrada “em direção a Vênus”.
Não sabíamos que antes da nossa chegada à clareira, Pablo e um amigo já se encontravam lá. Entusiasmado com a ideia de que a clareira era um lugar misterioso, Pablo, que agora tinha doze anos, fizera tudo para que os pais o levassem à chácara do tio, e chegando lá, deu um jeito de fugir para a mata- enrolando os tios, que achavam que visitara um vizinho. No fim das contas, os tios achavam que nós todos morríamos de medo de visitar aquele lugar de lembranças de medo (para eles).
Chegamos à clareira já no fim da tarde, e lá estava Pablo e Víctor, como chamava o seu amigo, que apresentou-nos.
Alguma coisa arrebatadora apoderou-se de mim. Minha fome sumira, e meu coração parecia querer sair pela boca: Victor era realmente lindo. Alguém de quem nunca mais eu poderia pensar em me separar...mas...como?
Essa era a minha sensação. Seus olhares pareciam me levar a Vênus- pelo menos isso eu imaginava que seria ir a Vênus: visitar um planeta antes nunca conhecido- e eu, tímida e desajeitada, só queria saber de olhá-lo, embora estivesse morrendo de medo de que alguém descobrisse.
Tanto as meninas, quanto o Pablo, não repararam, mas a Beatriz, eu creio; teve a mesma sensação que eu havia experimentado. Eu achava que isso acontecera, embora não tivesse total certeza. E a minha vontade na hora, foi fazer com que uma nave levasse a Beatriz daí. Mas não: no fundo eu não queria que ela sumisse, apenas que o Victor e ela não se olhassem como nós dois o fazíamos...
Assim, a história do Jorge foi quase que esquecida. Passaram-se alguns meses, e depois alguns anos.
Nunca mais eu vira o Víctor, embora meu primo Pablo tivesse uma vez me perguntado se eu não estava com vontade de revê-lo, pois ele perguntou-lhe uma vez se poderia voltar a me ver.
Mas isso, nunca aconteceu.
Estávamos com dezoito anos ou perto disso (eu, Beatriz e Pablo) e conversando numa reunião familiar de Nata, lembrávamo-nos das coisas que aconteceram. Nosso primo Jorge mostrava absurda habilidade para as matemáticas, e quase tido como um gênio, estava se preparando para sair do país. Frequentava escolas especiais, e descobriram que tudo o que antes tinha sido quase que diagnosticado como “autismo”, era apenas esquisitice de gênio- e creio que agora nào mais o perturbavam querendo saber o que acontecera naquela semana em que havia sumido na clareira. Para nós, ele havia sumido em Vênus.
Fazia um tempo que a família não se reunia, e o tio Raul, agora viúvo de Aurélia, estava conosco naquela data.
Chegaram os pais de Jorge, com seu gênio a tiracolo. Cabelo repartido de lado, jeito de meninão bobo, ele era agora alguém que merecia muito mais respeito da família do que antes.
E logo depois, chegou o Víctor, convidado especial do meu primo Pablo.
Eu senti minhas pernas tremendo, meu coração disparando, e me perguntei se realmente queria passar por aquilo. Era muito nervosismo para mim. Eu era tímida, pacata para dizer melhor : adorava minha comodidade de moça tranquila, e não estava planejando me apaixonar enquanto não entrasse ou saísse da faculdade. Mas a vida prega-nos surpresas, e tudo aconteceu de forma não planejada. Naquela noite conversamos por algumas horas, mesmo na presença da família inteira, e dos olhares dos meus primos, que não paravam de fazer gracinhas e piadas ridículas.
Jorge, sentado num canto da sala, de repente levantou-se e foi em direção à mesa – que maravilhosamente arrumada pela mãe de Beatriz, aguardava a nossa ceia de Natal-. Afastou algumas coisas que se encontravam na cabeceira e apoiou-se com as duas mãos, e disse –à maneira de quem quer discursar, em voz alta como nunca antes havia falado -.
“Quero dizer a todas as pessoas desta minha nobre família, que eu tenho alguns poderes. O poder mais estranho que tenho, é o de perceber o futuro de cada um de vocês, embora nunca tenha dito nada. Eu acho muito ruim este negócio de predizer, porque me faz muito infeliz. Nada fácil olhar para vocês, como para outros amigos, e saber o que vai acontecer. Creiam-me : eu sei o que vai acontecer com todos aqui.”
Os pais de Jorge, de mãos dadas e com olhar de espanto, seguravam-se um ao outro num canto da sala. Todos, entre parentes e amigos, silenciavam surpresos sem imaginar como tudo isso terminaria. O gênio continuou a falar :
“Vocês podem achar que sou louco, e talvez eu seja. Mas desde aquela vez em que eu sumi em Vênus, senti que muitas vezes é melhor calar a boca do que contar o que sabemos- já que as pessoas nem sempre estão preparadas para ouvir algumas coisas... Eu sumi aquela vez, em Vênus. Sobrevivi andando pelas redondezas e pedindo comida em casas distantes de lá, e depois não sei exatamente o que houve: sei é que apareci perto de Vênus de novo, e lembrei que lá havia um tesouro deixado para os tempos de guerra, que salvou-me, porque a dor de barriga de fome estava insuportável. Daí por diante, eu comecei a olhar para as pessoas e saber delas o futuro. É muito difícil conviver com isso, acreditem. Minha capacidade para os números deve Ter a ver com a minha loucura: eles me são familiares e com eles sinto-me à vontade, muito mais do que com as pessoas. Mas eu quero bem a vocês. Desde o dia em que sumi em Vênus, eu percebi que vocês gostam de mim, o que me deixou feliz. Por isso, resulta-me esquisito Ter que saber sobre o futuro de cada um de vocês, é muito ruim : de nada adiantaria que eu falasse o que vai acontecer, porque vocês não acreditariam- caso lhes fosse desagradável- o que na maioria das vezes aconteceria.
E como resulta-me insuportável conviver com isso tudo, eu resolverei hoje meu problema. Só um minuto eu lhes peço, aguardem o que vou trazer...
Estávamos todos na casa da família de Beatriz, e o apartamento era conhecido de todos nós. Amplo, muitos cómodos – o pai de Beatriz era militar aposentado, e guardava armas em casa. Quando Jorge entrou sozinho aos quartos, o pai de Beatriz, meu tio Aderbaldo, correu : “as armas!”, gritou.
Todos saímos atrás dele, entendendo num lampejo o que ele teria insinuado, mas não encontramos o Jorge. Ele não usou as armas do tio, apenas atirou-se do décimo oitavo andar pela janela do quarto da Beatriz.
Lá se fora mais um vez o nosso primo, levando consigo as boas lembranças do Natal.
Na noite da tragédia, encontramos um envelope pardo, fechado com fita “durex”, que guardava em seu interior uma espécie de caderno de umas oitenta páginas escritas a mão. Eram os relatos de Jorge, deixados para seu pai e sua mãe.
Quatro anos depois do acontecido, eu cursava a universidade – estava no último ano de arquitetura, e planejava casar com Víctor e ir embora para curso no exterior.
Eu e Víctor dávamo-nos muito bem. Tínhamos uma relação que eu considerava madura, e ele, que estudara Direito, havia se tornado um brilhante advogado. Às vezes eu passava os fins de semana na chácara do tio Raul, que agora ficara para meus pais e para os pais de Beatriz, que haviam comprado de todo o resto dos familiares após o falecimento (previsto no tal caderno com data exata por Jorge, e somente depois revelado pelos seus pais, que guardavam –embora dissessem que não- o tal livro que eu apelidara de “O Nefasto”-. Eles diziam ter lido somente algumas partes, e tê-lo queimado, mas a gente acreditava que ainda o tinham.
Tivemos (nós todos, os primos da clareira) que explicar uns tempos depois da morte de Jorge, o que significava “Vênus”, já que tinham todos interpretado que realmente o Jorge acreditara que viajara a outro planeta.
Entre as coisas que dissera, parece- segundo a minha tia- que havia pedido que quando eu estivesse para casar, me alertassem sobre uma grande traição. Que eu, segundo as predições do meu falecido primo, não deveria acreditar em que tudo estava bem- mesmo quando tudo parecesse maravilhoso.
Nós nos casaríamos em dezembro, e estávamos em outubro. Continuávamos viajando de vez em quando alguns quilômetros, pois Víctor morava ainda no apartamento no interior, e meus pais na capital, onde eu ficava durante a semana.
Eu confesso que as palavras cuidadosamente trazidas pelos meus tios (os pais de Jorge) às vezes ressoavam na minha mente como um alarme. Eu procurava seguir meus instintos na relação com Víctor, e parecia-me que éramos realmente apaixonados, e que não havia necessidade de mentiras entre nós. Uns dois anos atrás, Víctor contou-me que tivera uma relação com uma moça que trabalhava no escritório onde fazia trabalhos de advocacia como “free-lancer”. Fazia dois anos disso, e nós termináramos. Quando eu imaginava, lá estava ele pedindo para voltar. Uns meses depois do acontecido, e pelo fato dele Ter me contado por conta própria sobre o seu “pulo”, acabei abrindo mão do meu orgulho, pois sentia que o amava – e que seria a pessoa mais importante na minha vida sentimental.
Casámo-nos em dezembro. A minha tia Ângela, mãe do Jorge, veio me visitar na véspera do casamento, e conversamos por longas horas (eu, ela e minha mãe). Ela não tocara no assunto das “previsões” do caderno “nefasto”, e quando tentei me justificar contando-lhe que a traição já acontecera, e que Jorge estava certo, mas que nós tínhamos superado, ela pediu-me para não falar a respeito, já que aquilo tudo era melhor que fosse esquecido- e embora tivesse ouvido o que contei, ficou com os olhos cheios de lágrimas dizendo que sabia que seria feliz com Víctor- e que estaria sempre torcendo para que tudo desse certo.
Fazia uma semana que estávamos casados, e havíamo-nos mudado para uma casa da qual os dois gostávamos. Eu –todas as sextas feiras- dirigia na estrada para ver meus pais, às vezes com Víctor, às vezes sozinha: dava uma aula numa universidade na capital, dormia na casa dos meus pais, e voltava para nossa cidade aos sábados de manhã. Quando íamos os dois, ficávamos em casa dos meus pais, na chácara. Às vezes visitávamos a clareira aos sábados, numas caminhadas que gostávamos de fazer, eu e Víctor- no fim das contas, havia sido lá que havíamo-nos conhecido.
A pesar da nossa tranquilidade, de praticamente todos os primos- já casados uns, felizes outros de outras formas, com filhos alguns (Pablo tinha dois e era muito feliz com sua mulher); o “caderno” do Jorge era uma sombra oculta para todos. Perguntávamo-nos o que os nossos tios sabiam a respeito dos nossos futuros- nas letras de Jorge- que não diziam. Algumas coisas –como mortes de alguns idosos da família com data e ano, já haviam sido testemunhadas por outros parentes : as previsões eram reais e acertadas.
Mas eu preferia não mais pensar naquilo tudo, embora às vezes os fantasmas viessem à tona.
Uma Sexta feira em que acabei o trabalho no escritório, atendi a ligação costumeira de Víctor antes de pegar a estrada para a minha aula, e fui embora.
Era setembro, a seca da estrada fazia com eu a viagem fosse bastante chata, porque a poeira e o sol esquentavam a estrada que tinha uma parte de terra, da qual eu não gostava. Sempre, antes de ir embora, eu ligava para a minha mãe ou recebia uma ligação dela, pedindo para ir devagar e tomar cuidado, e dizer que me esperaria depois da aula com um jantar.
Saí do escritório (tinha acabado um projeto de um prédio que me solicitara uma grande firma, e estava orgulhosa com isso- haviam sido meses de trabalho árduo); e após Ter colocado combustível no carro, e pegar o início da estrada, lembrei-me que trocara de bolsa e esquecera os documentos do carro na bolsa preta.
Não poderia pegar a estrada sem os documentos, mesmo que me atrasara para a aula. Voltei o mais rápido que consegui para casa, e entrei – subindo rápido as escadas da entrada. Vi que Víctor estava em casa, já havia chegado, e ao abrir a porta do quarto, lá estava ela : a Beatriz, enrolada no lençol, de pé junto à cama- dirigindo-se ao banheiro. Ela não havia escutado meus passos, pois havia carpete. Víctor estava no banheiro (provavelmente no chuveiro esperando por ela, já que estava aberto e ouvia-se o barulho da água).
Ouvi a voz dos dois conversando – chamavam-se de “tesão, queridona, gatão...”...
Aquilo provocara-me náusea repentina. Eu Lembrei-me da minha tia Ângela, do Jorge, de Vênus, onde conhecera- na minha adolescência- aquele homem. Onde vira os olhares que trocava também com a minha prima- que nunca fora a minha amiga de verdade...
Meu estômago embrulhou-se, mas mandei-o ficar quieto, porque a vida estava apenas começando. Não era a primeira vez que eu enfrentava uma traição.
Fiquei escondida atrás da porta do quarto, até me recompor. Não queria que os dois me vissem : o que faríamos? Teria que ser obrigada me expor a aquela situação? Não, eu não era obrigada a isso. Respirava meio ofegante e sentia meu coração sair de novo pela boca. Escutava os gemidos de Beatriz...
Lembrei-me que tínhamos um cofre na sala, cheio de dinheiro que guardávamos.
Desci as escadas. Abri o cofre e retirei o dinheiro todo. Peguei um batom que guardava na bolsa, e escrevi no vidro da janela da sala : “lamento Ter sabido desta forma. Desculpe, Víctor: mas eu acho que agora mereço ser feliz...Boa sorte aos dois”, “Má”.
Não dei aula naquela noite. Fui embora para a capital e uma semana depois, desaparecida (somente minha mãe sabia onde me encontrar, em que telefone de que hotel)- eu estava viajando para Paris.
Moro atualmente nesta cidade encantadora, faz apenas um mês. Já dei entrada em papéis que me garantem uma pós graduação aqui- e por incrível que pareça, eu estou bem- e já arrumei trabalho (provavelmente obterei a cidadania francesa).
Minha tia Ângela me escreveu, e contou-me que deu a minha mãe as datas em que tudo aconteceu. E pôs fogo no caderno, na frente dela, na clareira. Antes disso, contou que lera que terei dois filhos lindos, num país estrangeiro- e que serei muito feliz.
Confesso a vocês que até acredito que possa acontecer, mas não tenho planos de casar novamente...Lembro-me do nosso primo de Vênus, de como ele não teria condições de ser feliz, e de como nós todos nunca teríamos tido condições de entender sua “esquisitice”...
Quanto ao Víctor, e mesmo à minha prima Beatriz...contaram-me que ele ficou desesperado com o recado- não se importou com o dinheiro. Tentou me encontrar mesmo, mas minha mãe não está autorizada a dar meu endereço. Não ficaram juntos, parece, mas...o que importa agora isso?
Eu conheci Pièrre – um jornalista daqui da cidade, e às vezes passamos a noite juntos. Não vou negar : é muito bom estar com ele.
As árvores soltam as folhas nesta rua em que moro, e ficam em tapete no chão, deixando uma cor e um cheiro ocre no ar. Às vezes olho para a rua ao longe, com seus bancos de praça na calçada e as pessoas desconhecidas que passam, cada uma no seu mundo. Sinto-me inclinada a pensar que vim de Vênus, e que estou num planeta estranho, chamado Terra...