Número do Registro de Direito Autoral:131013760047719200
1. O Culpado
I
Nos meus seis anos, nunca imaginaria que me tornaria o protagonista de um escândalo familiar. Às vezes eu ficava sentado à sombra da árvore de pitanga, no jardim da nossa casa, pensando muitas coisas. Vivíamos numa casa antiga; num bairro meio afastado do centro da cidade. Tínhamos um jardim com árvores enormes, algumas que davam frutos; como a de pitanga,. Até um pé de abacaxi meu avô plantara; e comíamos abacaxi do jardim no verão.
A falta dos meus pais acompanhava-me sempre. Não era fácil suportar o dia das mães uma vez por ano, nem o dia dos pais. As datas de aniversário dos dois, quando minha avó ia ao cemitério levando flores, e voltava assoando o nariz com os olhos vermelhos e um lenço na mão, querendo dissimular que havia chorado, eram datas insuportáveis. Eu ficava triste : por tudo. Por meus avós, que recordavam os acontecimentos e ficavam calados o resto do dia, e porque não me lembrava dos meus pais, além de não ter como fazer o tempo voltar.
Confesso que eu não entendia por quê logo comigo havia acontecido tudo que acontecera. Eu estava com menos de sete anos mas já não tinha mais os meus pais e era criado por meus avós. Não que eu não gostasse deles, ao contrário, considerava-os meus pais. Meu avô Lúcio era pai da minha mãe, que morrera num acidente de carro junto com meu pai, quando eu tinha dois anos. A minha avó era filha de espanhóis. Havia passado vários anos de sua vida na Espanha, antes de casar com meu avô. De vez em quando saía resmungando em espanhol coisas que nem sempre eu entendia.
O que eu achava pior, era que não havia saída. Nada podia ser feito para mudar as coisas: a culpa não era de ninguém, as coisas eram assim e ponto final. Meus colegas na escola e alguns adultos amigos da família, como o médico ao qual tinha que ir com o meu vô pelo menos uma vez ao ano; tratavam-me diferente de como –normalmente- tratam-se os meninos da minha idade. Meus colegas de classe às vezes lembravam o fato de haver um órfão na turma, e olhavam-me com o olhar parado, de boca aberta, como se eu fosse um extraterrestre. E eu ficava na saída –enquanto esperava a minha avó ou a Salete virem-me buscar- vendo as mães ou os pais deles. Observava o jeito como falavam com meus amigos e então imaginava a minha mãe com as roupas que a vira numa foto que uma vez encontrei numa gaveta da sala,, chegando à calçada e procurando-me com o olhar, sorrindo quando me via e eu indo ao seu encontro. Copiava no meu pensamento algum gesto materno das outras; dos meus amigos, e passava a vê-lo nela. Na verdade era mais fácil fazer isso imaginando minha mãe do que o meu pai. Em compensação, quando vinha a avó de alguém eu ficava feliz: a minha avó; até hoje, era a mais bonita. Nenhuma avó das que eu vira ali chegava nem mesmo perto da minha- pelo menos era assim que eu via. A minha era decididamente a mais bonita. Talvez também uma das mais gordinhas, mas era minha - e era bonita. Era também muito legal. Ninguém a poderia chamar de “velha”, ou “velhinha”, porque não parecia muito ser uma avó. Eu adorava as brincadeiras dela, riamos muito imaginando coisas que poderiam acontecer com outras pessoas ou até conosco.
Um dia, a minha avó havia saído. Eram umas três ou quatro da tarde, hora do pior calor –na nossa cidade em janeiro, a essa hora, o calor é absurdo e as pessoas dormem a “siesta”, como dizia a minha avó Violeta. Ainda bem que nesse mês não havia aula, a gente podia se molhar com mangueira no jardim, ou mesmo na casa de algum amigo que tinha piscina. Era divertido, mas os adultos que trabalhavam pouco, como meu avô, dormiam.
Meu avô, naquela tarde, levantou-se da “siesta” e foi ao telefone. Lembro bem que eu estava brincando de esconder-me do Tronco, o nosso cachorro, e vi meu avô ao telefone, falando por bastante tempo e de um jeito que eu nunca vira antes. Ele ria, gesticulava como se fosse a pessoa mais feliz do mundo, e quando me viu virou como se eu não existisse, puxou uma cadeira de vime e sentou-se de costas para o corredor onde eu brincava com Tronco.
Depois, perguntei a ele com quem estava falando, e ele respondeu “que menino enxerido, estava falando com o pessoal da oficina, coisas de negócios, ora essa, ora...” Não nego : eu achei muito esquisito, porque ele nunca falava assim comigo, mas como depois (parece até que ele percebeu que eu fiquei chateado) veio e disse, passando a mão no meu cabelo e despenteando-me, coisa que eu não gostava que fizessem: “era o pessoal do escritório, pirralho. Nada mais, só negócios ...” eu vi que ele estava preocupado achando que eu não tinha acreditado. E eu não havia acreditado.
Mas por quê meu avô fazia isso? Então sim : eu fiquei curioso, mas nada poderia fazer. Meu avô tinha uma oficina com vários empregados, que cuidavam dos negócios para ele. Ele tinha uma pequena empresa que fazia fretes com caminhões para as cidades vizinhas, mas raramente ele ficava mais do que umas horas na “oficina”, como chamavam ele e minha avó àquele lugar com cheiro de tinta e papéis, e com umas moças sérias que trabalhavam lá (parecia que nunca riam).
Eu acabei esquecendo esse assunto, mas não esqueci a expressão do meu avô, pois naquele momento, falando ao telefone ele me parecera uma pessoa que eu não conhecia. Sua boca, seu olhar, tudo parecia com alguém que eu nunca vira. Mas eu tinha uma certeza : era algo bom, porque ele parecia muito feliz. Quem sabe? De repente era um bom negócio que havia surgido, alguma coisa legal da “oficina” que traria mais dinheiro para a família...mas a sua risada era diferente de todas as outras vezes. Só não dava para entender por quê ele não disse “fulano, estou falando com fulano”...
Logo depois que falou ao telefone, ele foi tomar banho e saiu. Ele mesmo dirigindo, já que o Seu Pedro, o motorista; não havia conseguido convencê-lo a deixá-lo dirigir. “Fique aí e espere a Violeta, quem sabe ela precisa ir ao mercado com o outro carro”, disse-lhe.
Meu vô sentia dor na perna esquerda, que os médicos não sabiam de onde vinha. Ele já fizera mil exames, mas nada. Por isso ele não dirigia e havia contratado Seu Pedro uns anos atrás.
A minha avó demorou bastante, e quando chegou, mandou-me tomar banho para jantar, pois as suas amigas que jogavam baralho com ela viriam naquela noite.
“E o vovô, vai ficar aqui, Vó?” perguntei antes de entrar no banheiro.
“Não sei, meu anjo. Acho que sim, ele não deve se encontrar com nenhum amigo hoje, acredito que sim...”
Eu ficara com aquele olhar do meu vô gravado no pensamento, e quanto mais eu parava para tentar lembrá-lo, mais estranho me parecia. “Vai ver, eu já mudei esse olhar e o piorei”, pensava eu. Nos meus pensamentos o olhar dele ficava ainda mais sinistro: com a pupila enorme e parecendo atirar fogo, acompanhado por aquela boca risonha esquisita, com umas covinhas que meu avô não tinha...era esquisito e dava calafrio pensar nisso...
Sei é que, naquela noite, enquanto minha avó jogava baralho na sala com as suas amigas (eram cinco senhoras contando com ela, todas bastante gordinhas e muito faladeiras, traziam bolos e doces e sentavam para jogar comendo até irem embora) meu avô chegou da rua, pendurou seu chapéu e o paletó na chapeleira da entrada, disse “boa noite senhoras”, ao que elas responderam todas em uníssono, e foi embora para o seu quarto dormir, fazendo apenas um sinal de adeus com os dedos para mim.
Minha avó também preparava para essas ocasiões; através das orientações a Santina - a nossa cozinheira- umas coisas muito gostosas que eu comia até ir dormir. Geralmente esqueciam-se de mim e eu acabava dormindo no sofá grande da sala. Depois alguém me carregava até o quarto, geralmente meu avô, se estivesse acordado, ou então a minha vó trazia um cobertor e me deixava dormir ali mesmo, o que era para mim muito bom.
Naquela noite, não sei porque, eu quis matar parte da minha curiosidade sobre as coisas de negócios do meu avô, e sem muita lógica (ou melhor, nenhuma) enfiei a minha mão no bolso do paletó pendurado na entrada, e encontrei uma foto. Eu não conhecia a pessoa que sorria – era uma mulher bastante nova e bonita, de longos cabelos loiros e com brincos enormes. Atrás da foto havia algo escrito mas eu não entendia, e tinha também uma assinatura. Parecia que era outra língua, não era português. O que o meu avô fazia com aquilo no bolso? Eu achei que tinha que compartir a minha dúvida, e fui até a minha avó : “quem é esta, Vó?”, perguntei.
A gente, quando é criança; ignora muitas coisas do mundo dos adultos. Até que eu conhecia (ou pelo menos achava) muitas coisas do mundo adulto : era só eu- criança na casa- e convivia com muitos segredos entre eles. Não apenas dos meus avós, mas dos empregados, que eram ao todo cinco e muito legais, e me conheciam desde que era recém nascido, segundo as conversas da minha avó Violeta...
Mesmo assim, achando que conhecia o mundo adulto, eu acabara de cometer a pior dos meus atos até então. Primeiramente, a minha avó perguntou de onde eu tirara aquilo, e quando respondi, ela transformou-se num instante.
Rapidamente, virou a foto e léu o verso. Pararam a conversa e os barulhos de risadas entre as amigas, e um silêncio absurdo tomou conta da sala, com a minha avó em tremores de queixo e com o olhar fixo para a frente, deixou as cartas com a mão direita na mesa – como se já não importassem mais- e passou a foto com a mão esquerda para a amiga que estava ao lado. Cada uma delas olhava para a foto seriamente, virava e lia o verso, e fazia um gesto. A primeira tampou a boca com a mão e passou a foto, a outra abriu a boca e assim ficou, passando adiante o que para mim, naquele instante passou definitivamente a ser “o papelão endiabrado”, e assim a foto rodou até completar o círculo com a minha vó. “Você tem certeza de que encontrou isso aí, querido?”, perguntou, com tremores na voz e numa altura tão baixa que não parecia vir dela. “Tenho”, eu disse. “Agora, vó”. O silêncio foi mudando o rosto da minha avó, que só dizia “não”, baixinho, e mexia a cabeça em negativa a todas as coisas que suas amigas diziam, também baixinho, somente para ela...
As mulheres levantaram-se uma a uma, e repetiam as mesmas perguntas em tom baixo, recolhendo as coisas da mesa : “você quer algo, Violeta? Quer que a gente fique?”, “O que vai fazer”, “Não faça nenhuma loucura, olhe só que isso não parece ser coisa assim...” Minha avó parou de novo e disse, olhando para esta última : “assim como?” “Assim séria? É isso que quer dizer?”, perguntou ela. “Não fique assim”, repetiam elas, e recolhiam as coisas. Como se tivessem recebido a pior notícia do mundo, foram até a porta, sempre repetindo “ligue logo, agente vem aqui se precisar”. Uma delas, a mais velha eu acho, trouxe-lhe um copo de água com açúcar da cozinha, e obrigou-a a sentar-se. “Beba isto, e lembre-se de que tem pressão alta, não pode abusar e ficar nervosa”. “Abusar, eu, sim...abusar. Ele é que está abusando de mim, o que “soy yo”, “Soy un “títere”, que só serve para fazer o que ele precisa, é isso que soy eu”, dizia ela agora disparada no “portunhol”...E chorava.
As amigas saíram e deixaram minha avó, que agora parecia hipnotizada. Sentada no sofá pequeno e com o olhar perdido, ela não me respondia. Eu puxava-lhe a manga da blusa, e perguntava : “vó, vó Violeta, o que você tem? Responde, vó, o que aconteceu?” Mas ela não respondia. Ficava parada como se não estivesse mais aí, e eu comecei a ficar assustado. A saída das amigas dela assim, dessa forma, parecia ser um sinal de querer que ela pensasse sozinha. Aquilo começava a me dar muito medo. O que eu teria feito pegando aquela foto e mostrando a ela? O que aconteceria com meu avô quando ela falasse a respeito do que eu lhe mostrara? Eu puxava sua blusa cada vez mais forte e ela não respondia. Continuava com o olhar fixo, caindo lágrimas de vez em quando, e eu a essa altura abracei a sua perna gorda sentado no chão, e chorava junto com ela. Eu não sabia bem por quê, mas chorava. Chorava por pena de ver a minha avó Violeta, tão legal e amiga de todos, chorando por minha culpa, de alguma forma eu tinha a culpa daquilo.
Não faço ideia de quanto tempo nós dois ficamos assim, eu sentado no chão abraçado à perna dela, e ela chorando daquele jeito. Parava e depois começava de novo, mas não respondia nada.
De repente, levantei-me do chão pois as minhas pernas estavam começando a ficar dormentes. Fui até a mesa, onde as cartas do baralho e diversos pratos com pedaços de bolo e outras coisas estavam espalhados, e onde estava, bem no meio; o que eu apelidara de “foto endiabrada”. Para mim, aquilo agora era uma foto indesejável.
Lembro-me de que peguei a foto ainda, e olhei bem para aquela moça loira, pensando : “como eu gostaria de poder esquecer que fiz isso de tirar você do bolso do meu avô”. Se eu pudesse, juro que voltaria no tempo e; depois de ver a moça na foto, guardaria no mesmo lugar e ficaria bem calado e quieto. Mas agora não dava mais.
Guardei a foto no meu bolso da calça, não sem antes dar mais uma olhada (ela era bem bonita) e não sem antes virar do avesso de novo para tentar descobrir o que dizia. Vi, sim, o nome do meu vô bem num canto , no lado de cima. A foto era mesmo para ele, e ainda que eu não entendesse o que estava escrito (uma das amigas da minha avó, ao olhar a foto e virá-la, exclamou : “em inglês! Que cara de pau!”) – no fim das contas minhas aulas de inglês na escola só começavam na próxima série- o nome do meu vô estava legível: Lúcio. Essa foto havia sido dedicada a ele. Obviamente algo mais acontecia que eu não conseguia entender, e minha avó não estava gostando nada disso.
II
Ainda bem que eu não sabia ainda, naquela noite, o tamanho do estrago que isso tudo faria em nossas vidas. A minha avó ficou no sofá do jeito que estava, com o olhar fixo no nada, e fui tentar acordar o meu avô. Não consegui, então voltei para a sala e fiquei de novo grudado na perna da avó. Provavelmente eu dormi e alguém, de algum jeito, me deixou no sofá maior, deitado e com um acolchoado por cima.
No dia seguinte, acordei com uma gritaria na cozinha. A minha avó tinha ido embora de casa. Meu avô não parava de andar de um lado para outro, e a irmã da vó Violeta, a Paulina, viera para tentar ajudar. Ela falava muito alto, e ligava para um lugar e para outro. Quando me viu acordado, olhou-me com a sua cara esquilo (havia um desenho animado de um esquilo que tinha a mesma cara dela, mas ela nem sabia disso). Pediu-me para lavar o rosto, levar a roupa de cama para o quarto e voltar para tomar o desjejum. Eu quis saber, lembrando de tudo que acontecera: “cadê a minha vó?”
Nem preciso dizer a reação das pessoas da casa. Olharam-me como se eu estivesse sobrando. E levei algumas horas para entender o que estava acontecendo: a minha avó levantou-se e fez uma mala com roupas. Escreveu um bilhete e deixou ao meu avô, dizendo que vira a foto da sua amante, que o tratava de “meu grande amor” em inglês, e que ela não era “títere”, que mesmo velha tinha sua dignidade, e que não voltaria mais para ficar ao lado dele. Quem contou-me tudo foi a Salete, que não parava de choramingar. Ela explicou que o meu avô dizia “não saber onde estava essa tal dessa foto”, que ficava querendo encontrar “a foto”, mas que ninguém a achara, e que provavelmente a Violeta teria levado consigo. Disse que meu avô estava furioso, que já havia telefonado a todos os conhecidos e que ninguém vira a minha avó.
Ao saber disso, eu senti que um fogo subia-me pelo pescoço e atingia até as minhas sobrancelhas, ou até mais : ele passava para cima delas, queimando tudo a minha cabeça. Então eu pensei : se mostrar a foto deu no que deu, o que faço agora? Como poderia meu avô não saber da foto? Não, não era possível, estava no seu bolso. Com o seu nome. Como poderia não saber?
Mas avaliei, na minha atual condição de não menos do que causador de tudo aquilo, que seria conveniente entregar a foto ao meu avô.
E assim o fiz. Quando a entreguei, só estávamos nós dois no quarto dele, entrei devagar e a mostrei. Ele deu um pulo na cama, onde estava sentado com ar de tristeza. Virou a foto rapidamente, foi atrás dos óculos e leu. Percebi assim, que realmente ele não havia visto antes a foto.
Expliquei como eu tinha chegado até a foto. Os olhos dele encheram-se de lágrimas, e no momento em que elas caíram puxou um lenço e enxugou-as desajeitadamente. Colocava as duas mãos na cabeça, andava para um lado e para outro, e exclamava de vez em quando : “que coisa. Como isto foi acontecer. Que coisa.”
Eu enfiei meu rosto no travesseiro dele, e chorei. Chorava soluçando e não conseguia parar. Meu avô veio me consolar. Disse-me : “não fique assim, pirralho. Não foi culpa sua. Um dia você vai entender tudo isto, ou talvez não- mas não foi culpa sua. Não chore, menino...”
III.
A minha avó estava na casa de uma amiga, no interior. Com dois dias do acontecido, ela deu notícias. Mas não falou com o meu avô. Ele bem que tentou, mas ela não falou com ele. Só falou com a irmã, que ainda estava em casa e tentava organizar a nossa vida, que virara uma loucura. Eu não tinha mais horários para almoçar, tomar banho ou fazer qualquer coisa, que antes minha avó determinava. Fazia um pouco do jeito que eu mesmo achava melhor, mas enfim...estava muito ruim. Às vezes a minha culpa ficava muito grande. Meu avô tentava conversar de vez em quando sem tocar no assunto, falando que a minha avó não iria aguentar muito tempo e voltaria, “você vai ver”, dizia. Mas notava-se no rosto dele, sempre com a barba mal feita, a tristeza e a falta de vontade de fazer as coisas. Haviam-se passado três semanas, e nada da minha avó. Ela ligava de vez em quando, em horários diferentes, para não criar uma rotina e meu avô atender o telefone, segundo os demais já haviam dito.
Eu ficava sabendo das coisas por acaso. As minhas férias haviam sido péssimas, e agora eu tinha mais uma coisa ruim na vida: o que eu fizera, que mesmo todo mundo dizendo que não foi a minha culpa, eu sei que foi. E a ausência da minha vó Violeta, que eu tanto amava.
Quando as aulas voltaram, pediram-nos para fazer uma redação sobre as nossas férias. Não preciso dizer que enquanto todos tinham coisas alegres para contar, eu só tinha o acontecido. Não aguentei e comecei a chorar baixinho, mas a professora viu e me chamou. Foi comigo para fora da sala, e perguntou o que havia acontecido. Vocês contariam?
Eu acabei contando na sala da diretora, para o psicólogo, que era muito legal e com quem eu já conversara outras vezes. Depois que conversei com ele,
Chamaram meu avô à escola. Eu sei que mesmo que eu pedi para não fazer isso, e eles tenham me garantido que não, eles chamaram e o meu vô foi. Não sei o que falaram, mas depois dessa conversa, todas as noites, meu avô me chama para ver televisão com ele e acabo dormindo do seu lado. É bem melhor do que antes, porque agora; embora sinta a falta da vó Violeta mais do que nunca, eu estou curtindo mais o meu avô, e não fico com medo de noite. Nem pesadelos eu tenho tido. Acabei pedindo à professora para que me deixasse fazer a redação em casa, e deixou.
IV
A Minha Redação de Férias
O sumiço de minha avó.
Estas férias foram muito, muito ruins. Como todo mundo já sabe, meus pais morreram quando eu era bem pequeno, e eu não lembro deles. Mas eu tenho o meu avô Lúcio, e a minha avó Violeta, que cuidam de mim. Eu os amo de verdade.
Só que desta vez, as férias foram ruins não porque eu não estou com os meus pais, mas porque houve uma briga entre meus avós e a minha avó foi embora de casa. Ela não permitiu que a víssemos, até a semana passada, quando eu fui com a irmã dela para encontrá-la na estação de trens. Eu chorei muito, porque estava com bastante saudades dela. Mas mesmo ela chorando também, não quis voltar para casa, e nós voltamos sem ela.
A briga toda foi por causa de outra mulher que ficou com meu avô. Eu imagino que eles não moravam juntos, porque meu avô morava com a gente. Então : como pode um avô ter duas casas? Claro que não, que eles só ficariam namorando mas sem casa, porque meu avô sempre continuou na casa, nunca foi embora.
O pior de tudo, vocês nem imaginam : eu é que acabei deixando a minha vó descobrir que meu avô tinha essa mulher, sem querer. Encontrei uma foto no bolso do meu vô e fui perguntar à minha avó quem era ela.
Depois eu percebi que meu vô não sabia que a Lídia, como a chamava, tinha colocado a foto no bolso dele. Foi “para fazer uma surpresa”, dizia com raiva meu avô quando falava no assunto. Mas na verdade eu quis fazer esta redação para pensar nas coisas.
Não entendo algumas coisas mesmo. Por quê meu avô não contou para a minha avó que ele estava namorando esta mulher? Se ele mesmo tivesse contado eu acho que não teria acontecido nada disso. Talvez a minha avó ficasse triste um pouco, mas certamente ela não teria ido embora de casa, porque meu avô estaria sendo sincero com ela.
Outra coisa que não entendo, é por quê a minha avó não foi falar com a mulher que ele namorava e pedir a ela que se afastasse do meu vô. Ou então, que ela e a mulher decidissem quem ficaria morando com ele, e a minha avó não iria embora de casa.
Porque minha avó também estava sofrendo por estar longe de nós e fora da sua casa. E no fim das contas, a minha avó um dia me disse que ela e meu vô “já haviam sido namorados e muito apaixonados”, mas que fazia tempo que não eram mais. Por quê, então, a minha avó se chateou porque ele arrumou outra namorada? Eu creio que foi mesmo porque ele não contou a ela.
Para tentar ajudar meu avô, como eu tinha ouvido minha avó dizer aquelas últimas palavras : “eu não sou um “títere”, e eu guardara...fui ao dicionário em Espanhol. Procurei a palavra “títere”, que quer dizer “marionete”.
Fui e falei isso tudo com meu avô, ontem mesmo. Contei o que ela havia dito, e falei para que ele mostrasse a ela que ela nunca seria uma marionete para ele, já que ele mesmo havia dito que era a mulher de sua vida. Insisti para que ele fosse falar isso com ela, mas eu não sei se ele foi, porque depois que eu falei ele fechou-se no banheiro por muito tempo e eu acabei dormindo.
Um dia a minha avó me disse que assim como o tempo passa e as coisas mudam para todos os seres vivos, nós pessoas também mudamos. Disse-me que se meus pais haviam morrido, isso foi um acidente – e que não perguntasse sobre Deus e a vontade Dele porque isso era muito complicado de explicar, e que ela também não entendia por quê, se Ele existia, deixava acontecer coisas desse tipo, então : que eu não pensasse mal Dele, mas que eu soubesse que acidentes acontecem. E que de todos os jeitos, todos nós iríamos morrer um dia e que é bom se acostumar a que não teremos tudo para sempre. Então, eu queria agora perguntar a ela: se algum dia vem a morte, porque quando estamos vivos não aproveitamos para ficar todos juntos, e não evitamos de sumir uns dos outros? Por quê não aproveitamos o tempo em que estamos vivos para não nos afastarmos e ficamos sendo felizes na mesma casa? Eu não consigo entender essas contradições das pessoas.
E por último, eu mesmo pensei muito em todas as vezes que eu me queixei porque a minha avó chegara para me pegar na casa dos meus amigos, e que eu queria ficar mais tempo, e fiquei bravo porque ela havia chegado...Agora ela não mais ia me buscar porque não estava conosco.
Também, eu muitas vezes fiquei pensando por que todos tinham mãe e pai, e eu tinha que ter somente avós. Por quê, o que eu teria feito ao nascer, que era obrigado a ter avós ao invés de pais... Mas agora que a minha avó não está com a gente, eu penso muito em duas coisas: eu tenho meu avô. Não posso só ficar chorando por causa da falta da minha avó. Tenho que aproveitar os minutos, as horas e todos os dias que fico com ele, porque nunca sabemos o que pode acontecer com quem gostamos. Ele um dia pode morrer, ou ir embora, ou sei lá acontecer o quê, e então não vai dar para fazer nada, como o caso da minha avó hoje.
Meu avô e eu hoje somos muito mais amigos que antes. Ele até joga futebol comigo. Claro que ele fica triste por causa da minha avó, porque embora ele não mais namorasse com ela, “a Violeta é a mulher mais encantadora do mundo, a mulher de minha vida”, nas palavras dele. “E eu fui um burro, pirralho : fui burro por ter deixado de lado uma árvore com raízes enormes, para plantar um capim”. Essa é a idéia hoje do meu avô, que como eu aprendeu que não se pode voltar no tempo. O que fazemos, é quase que para sempre.
Não entendo por quê a minha avó não volta, já que ela também está sofrendo. Eu vi no dia do trem : ela chorou muito.
Outra coisa que eu aprendi foi que não devemos perder a esperança. Porque como não conhecemos o futuro, não podemos ter certeza de que sempre será ruim”. Eu assinei e entreguei a redação no dia seguinte.
Quando saí da escola, à tarde, não acreditei no que via na porta, no meio de todos os pais, e adultos que pegam as crianças à saída.
Lá estavam eles, juntos e esperando por mim : a minha avó Violeta e meu vô Lúcio. De braço dado, felizes de tal modo que eu corri para dar-lhes um abraço, e chorei muito.