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cronicas-->Guiomar -- 02/06/2005 - 17:17 (Paulo Maciel) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
GUIOMAR

Guiomar era uma força da natureza,
com sua fé sem limites em Nossa Senhora das Grotas e seu amor a Juazeiro.


Quando eu era menino, ai por volta dos nove anos, costumava fugir dela, principalmente às vésperas de festas.
Em setembro, então, era um "Deus nos acuda", trabalhávamos dobrado e não tinha jeito de escapar.
No início do mês havia a grande festa da padroeira, Nossa Senhora das Grotas, comemorado no dia 8.
Pelo fim do mês a comemoração era profana: o grande baile anual da "28 de Setembro", o clube aristocrático da cidade, fundado e dirigido por nossa família durante décadas.
Guiomar era a organizadora desses eventos, a "Joãozinho Trinta" de Juazeiro daquele tempo, que tanto preparava a catedral para a grandiosa festa religiosa, quanto elaborava o projeto e dirigia os trabalhos de ornamentação dos salões da "28" para o tradicional baile de aniversário.
Para o carnaval, além da decoração do clube, desenhava os estandartes, preparava os carros alegóricos e as principais fantasias dos foliões da família.
Nós, os meninos da grei, éramos seus operários favoritos, recortando e colando papel crepom, pintando cartolinas, levando recados e fazendo mandados.
Que eu me lembre, Guiomar era a maior artista de Juazeiro, cuja alma vibrava de felicidade pelo prazer de embelezar sua cidade.
E era uma artista por inteiro: tanto pela sensibilidade e capacidade criadora como pelo temperamento.
Autoritária, franca, direta, desassombrada e desabusada, ela assumia o papel de líder com a maior naturalidade, comandando com firmeza um batalhão de auxiliares, a maioria formada por mulheres e crianças.
Já não me lembro hoje se, àquela época, eu a admirava ou a temia, mas o fato é que nenhuma outra mulher, além de minha avó, me impressionava tanto quanto ela, por sua força e independência.
Além de tudo, ela me parecia então u´a mulher muito alta, talvez pelo contraste com o marido - Meira - que, caladão e sisudo, era mais baixo do que ela.
Sua figura era portentosa, intimidadora. De tudo participava e opinava sobre tudo.
Guiomar Barreto Meira, prima carnal de minha mãe, é uma parenta queridíssima de todos nós.
Quero recordá-la aqui, nessa perspectiva do tempo, para mostrá-la na sua dimensão atual, u´a mulher que agora, aos 89 anos de idade, continua a agir do mesmo modo apaixonado e corajoso.
Como figura humana ela parece-se muito com Cora Coralina: olhos eloquentes e curiosos, a mesma voz firme e sedutora, a mente lúcida, a visão otimista da vida, a bondosa fisionomia de quem está feliz consigo própria e u´a imensa vontade de viver, que se expressa, sobretudo, pelos planos que faz para o futuro.
Quase todo ano eu vou a Juazeiro para rever meus fantasmas e minhas velhinhas: Tia Lélia, que tem 83 anos e Guiomar, com quem ela almoço aos domingos.
Tia Lélia é aquela pessoa suave, tímida, reservada, franzina, discreta, que se torna ainda mais frágil diante de Guiomar.
Nas minhas visitas, passo horas falando com elas mas, principalmente, ouvindo Guiomar, a maneira mais eficaz que descobri de animar meu espírito para encarar com serenidade e alegria os anos de velhice que me aguardam - e que espero possam vir a ser as mais felizes quadras de minha vida.
Ninguém me ajuda mais a encarar essa perspectiva do que Guiomar.
Essa admirável anciã (ela não me perdoará por essa palavra) é "carlista" doente ("ainda vou ver ele no governo da Bahia outra vez"), bairrista fanática, não admite a supremacia de Petrolina ("uma bosta") sobre Juazeiro e só acha é que foi uma besteira terem construído lá a belíssima catedral, torce apaixonadamente pelo Bahia ("não morro sem vê-lo campeão brasileiro mais uma vez") e não deixa de ler " A Tarde",diariamente, assiste ao "Jornal Nacional" e não resiste a uma boa discussão política.
Da última vez em que estive com ela, nas minhas recentes férias de julho, recolhi algumas pérolas de seu inesgotável alforje cheio de sabedoria e de ditos espirituosos.
Ao ver-me chegar de braços dados com tia Lélia, disse-me logo num rompante:
- Paulinho, a Lélia está ficando broca!
- Porque você diz isso, Guiomar? perguntei curioso.
- A Lélia acha que está ficando velha, Paulinho. Imagine! Já disse a ela que quando a gente pensa que está velha, na verdade está chamando a morte! Graças a Deus vou morrer de alguma doença incurável, mas não de velhice!
Nessa mesma ocasião, depois de me servir sua famosa coalhada adoçada com rapadura ralada e acompanhada de petas e fofões, ela me explicou como sua vida vem sendo facilitada pela presença de Dida, sua filha, freira e vice-diretora do colégio em Petrolina, com quem vive sozinha desde a morte de Meira, muitos anos atrás.
Ela me disse que Dida é a gerente da casa, resolve todos os seus problemas, toma conta de tudo que é dela.
- Só não toma conta da minha vontade, Paulinho. Nem ela e nem ninguém. Na minha vontade só quem manda sou eu!
No próximo ano tenho que voltar a Juazeiro para as comemorações dos seus noventa anos e para me desintoxicar de quaisquer sentimentos de desànimo ou amargura.
Afinal, o tórrido calor de Juazeiro não é tão abrasador quanto o amor que Guiomar dedica às pessoas e às coisas de que gosta, a começar por sua própria cidade, a que nenhuma outra do mundo se equipara, segundo ela, e por sua devoção a Nossa Senhora das Grotas.
(publicado em A Tarde, em 17.11.89)

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