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Contos-->A Data -- 20/10/2007 - 21:55 (julio saraiva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quando o último bar baixou a porta, dando por encerrado o expediente, ia alta a madrugada. E João Capistrano, funcionário público, 42 anos, já estava bêbado o suficiente para se dar conta de que era o último freguês. Tinha certeza de que havia alguém ao seu lado; alguém com quem conversava até o instante em que o rapaz do balcão tocou-lhe no ombro e, por vê-lo engravatado, fez-lhe o comunicado com certa deferência, hábito pouco comum naquele estabelecimento sórdido normalmente freqüentado por gente miúda.
- Desculpa, doutor, mas gente precisa descansar, e o senhor também. Daqui a pouco tem mais.
João Capistrano não questionou. Pediu a conta e o último gole, entornado de uma só vez.Colocou duas notas de dez amassadas sobre balcão, não quis o troco e bateu em retirada.
Apoiando-se num poste aqui, num muro ali,conseguiu chegar na pensão onde dividia o quarto com mais dois: um também,como ele, funcionário público, que diziam ser homossexual, e o outro estudante de Direito, metido a poeta nas horas vagas. Tinham pouca intimidade, apesar de ocuparem o mesmo cômodo.Diziam-se bom dia, poucas vezes trocavam palavras. Assim cada qual cuidava da sua vida sem se intrometer na do outro.O estudante de Direito era o mais dado dos três. Quando bebia, o que era raro, fugia à regra,e punha-se a declamar seus sonetos de amor,
geralmente de pé-quebrado que Capistrano e o que diziam ser homossexual fingiam gostar.
Pois bem, João Capistrano, naquela noite, ultrapassara os limites. Mesmo assim esforçava-se em manter a sobriedade e não fazer barulho. Não teve lá muito êxito. Uma maldita cadeira à sua frente, colocada indevidamente, é verdade, nas proximidades do quarto, fê-lo tropeçar. A cadeira foi de encontro à porta. E, rompido aquele silêncio quase sepulcral,Capistrano teve a sensação de que o mundo havia acabado de desmoronar. Foram ouvidas duas tosses: uma vinda do quarto da dona da pensão, uma açoriana viúva, católica fervorosa, que não perdoava dívidas e muito menos devedores; a outra, pelo timbre, daquele que supunham ser homossexual.
João Capistrano atirou o paletó sobre a cama, descalçou os sapatos e dirigiu-se ao banheiro.Enquanto aliviava os intestinos, castigados pela comida horrorosa dos botequins do centro, Capistrano fumava. Fumava e pensava.Fumava, pensava e cagava. Pensava nos pais, em Paranavaí; pensava em Maria Dirce, sabe-se lá em que lugar do mapa. Sim,tinha consigo um retrato de Maria Dirce, mas evitava olhá-lo, porque toda vez que o fazia sentia o peito queimar, o coração bater forte, a angústia a machucar-lhe a alma e também a carne. E daí o único remédio que lhe restava era o álcool, doses e mais doses de bebidas ordinárias, aquelas que o bolso lhe podia proporcionar. E Capistrano cagava.Cagava e fumava. E se lembrava dos pais - quanto tempo ainda durariam? E se lembrava de Maria Dirce, do casamento que não aconteceu. Da vida que não aconteceu. Seu pensamento vinha entremeado de sonoros gases intestinais, que inevitavelmente estavam sendo escutados pela velha açoriana, pelos santos que a velha açoriana tinha no oratório e pelos dois companheiros de aposento.Capistrano pensava. Se fosse dado às letras, com certeza lhe viria à cabeça o verso de Manuel Bandeira: "A vida inteira que podia ter sido e que não foi."
A vida inteira, sim. Mas que vida?!A infância besta.O trabalho na roça. A mãe sempre a queixar-se da asma. As bebedeiras do pai, do qual agora ele se ia tornando legítimo herdeiro. Os estudos à duras penas em Curitiba. Maria Dirce.O fantasma de Maria Dirce que lhe não saía da cabeça.A vinda para São Paulo. Os primeiros meses de miséria. Por fim, o emprego público e o salário magro. Mas pelo menos estava empregado. Sonhos mais não havia.
Ah, sim, da chegada a São Paulo também não podia esquecer da semana que passou no xadrez de uma delegacia porque perdera os documentos na avenida Duque de Caxias. E por mais que tentasse explicar ao delegado que era pessoa de bem, vindo do interior do Paraná à caça de emprego, acabou por amargar a intolerância do homem da lei e mofar uma semana numa cela ao lado de dois ladrões, como Jesus Cristo na cruz, e um vagabundo de rua, que, com certa ponta de orgulho, gabava-se do fato de já ter passado por diversas delegacias, incurso sempre no mesmo artigo 51 - vadiagem.
Levantou da privada, subiu a calça, e, antes de dar a descarga, examinou o produto dos intestinos: "Esta vida é uma merda mesmo", pensou. E viu a merda desaparecer na força da água.
De volta ao quarto, respirou aliviado ao notar que seus companheiros dormiam. Atirou-se na cama de roupa e tudo, e voltou a pensar.Não tinha sono. Foi então que se lembrou da mãe, tão católica quanto a velha açoriana. Lembrou-se da manhã e da data: 23 de outubro, dia consagrado a São João Capistrano, missionário franciscano, nascido em 1386 e falecido em 1456. Era o único santo que conhecia, por causa do nome.A mãe escolheu esse nome exatamente porque seu nascimento fora no dia de São João Capistrano. Portanto estava fazendo 43 anos. Como podia ter esquecido a data do próprio aniversário. Um homem quando esquece o dia do nascimento é porque esqueceu de si. Ao dar-se conta disso,decidiu faltar à repartição. Ergueu-se da cama envergonhado, desculpou-se consigo mesmo e retornou ao banheiro.Lavou o rosto e desceu as escadas. Deu com a velha açoriana na porta da cozinha.
- Não vai trabalhar hoje, João? - ela indagou, ao vê-lo sem gravata.
Respondeu um não seco e atravessou o corredor.Pôs-se a caminhar na direção do bar.O mesmo bar fétido onde há pouco fora o último freguês. Agora, ia ser o primeiro, e daí?! Quando chegou o estabelecimento ainda estava fechado. Dane-se. Ficou a esperar fumando, sentado na calçada. Sentia-se envolvido por uma certa sensação de liberdade nunca antes provada,pelo fato de poder começar a beber logo cedo. O dia na repartição estava perdido. Depois inventava uma desculpa qualquer.Perdido o dia, sim. Um dia de serviço perdido não ia fazer a menor diferença para quem completava 43 anos de existência perdida.

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júlio


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