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cronicas-->A ÚLTIMA RAPSÓDIA -- 01/02/2005 - 20:03 (Luis Gonçalves) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A ÚLTIMA RAPSÓDIA
"Basta um suspiro mal puxado para dar um desencontro no fólego e lá se vai a vida."

Luís Gonçalves
A morte não tem o mesmo significado para a minha pessoa depois que o Ney resolveu morrer. Sujeito curto e grosso, valente com as palavras, Ney mantinha o domínio da vida como ninguém. Sagaz, do feitio da onça de circo, o rapaz não perdia um bom espetáculo por nada deste mundo. Verdade seja dita, o homem era um show à parte. Vestido, numa túnica de pureza, esculpida numa pedra firme e segura - não titubeava em lapidar em detalhe as melhores fagulhas das rodas de folia.
Poucas pessoas neste mundo que conseguem cultuar no semblante a verossimilhança com o que fazem. Entremeio esse grupo restrito figurava o Ney. Engenheiro por excelência gozava de uma facilidade majorada de maquinar com bom humor as picuinhas rotineiras. Volta e meia estava lá; oferecendo as troças bem elaboradas para espairecer o nosso pesar e enaltecer a nossa alegria. Éramos cinco, na labuta humilde de seguir a árdua trilha deixada pela Arte, unidos do feitio dos dedos da mão. Calejado feito os dedos dos pés.
Sujeito de fala mansa, igual o soluço de garrote novo, ruminava as palavras com um trejeito molengo e suscitava sorrisos da turma da largura do beiço. Nas lavouras noturnas o sujeito era um agricultor cuidadoso e refinado. Fartava com labor nessas colheitas matreiras de rosa e jasmim que o sereno da madrugada enlameia com a réstia da lua gigante nas serestas boêmias da nossa cidade verde.
Foi por isso que não acreditei quando recebi a notícia que o dito cujo havia falecido. Passei em revista rápida todos os argumentos que o companheiro utilizava para surpreender a galera. Firmei a fé que desta vez o cidadão havia extrapolado os limites da decência. Não se pode brincar com essas coisas que a gente não conhece e não tem domínio. A morte além de invejosa é traiçoeira. Basta um suspiro mal puxado para dar um desencontro no fólego e lá se vai a vida. E as pessoas queridas são as mais visadas.
Convicto, parti disposto a impedir o amigo de levar adiante essa performance nefasta. Ganhei o aposento preparado para acabar com aquele teatro fúnebre. Mas a medida que me aproximava do caixão, largado com todas as pompas no cenário de velas e castiçais daquela sala fria e escura, sentia o vento gélido da compaixão abraçar o meu corpo.
O ser humano é solidário na morte. Ainda tentei esboçar uma reação quando notei o rosto redondo e rechonchudo, que parecia sorrir dentro daquele cofre macabro. Mas procurei a minha ousadia inicial no mais profundo poço de coragem e não mais a encontrei. Cumpri, em fração de segundo, uma viagem longínqua pela longa passeata que fizemos neste mundo de meu Deus, e em momento algum consegui lembrar de ter visto o nosso amigo tão calado. Não há dúvida: só a morte conseguiu secar a graça do Ney.
Ali em pé, ao lado da cápsula mortuária, esvaziei todos os meus argumentos que havia juntado com tanto sacrifício antes de sair de casa. Inconformado, agarrei nas lembranças da consolação. Fato é que somente o Ney poderia morrer sem avisar. Era dele deixar todo mundo na expectativa do que estava para acontecer. Vivia acumulando uma reserva técnica de surpresa para o próximo festival. Era uma amostra grátis de criatividade e sensatez. Um hóspede do humor. Naquele casulo fúnebre jazia iluminado o iluminador. Cumpriu a obra épica e findou o grande espetáculo da vida, na rabeira de uma saudosa madrugada de lua cheia de meado de março.
Conciso, da dura realidade, admiti que havia perdido o amigo. E regozijei com a idéia de que o companheiro deve ter travado uma sábia negociação com quem quer que lhe tenha entregado a oferta final. Partiu com nobreza igual um lorde sedutor. Esperou o fim da festa para dar o último suspiro. Foi curar a ressaca do derradeiro fim de semana no eterno sono sepulcral. A segunda-feira nunca foi um bom dia para um boêmio. Além de ser um dia perseguido pela ressaca, costuma enrolar o tempo e a noite nunca chega. E o que se pode esperar de uma segunda-feira sem sol, com a cara empapuçada pela chuva de molhar bobo?; véspera de uma terça-feira treze sinistra?; na ponta de uma quaresma pantafaçuda e infinita?( ...)
Infelizmente, lá se foi o guerreiro. Assim a morte deixa de ser um reduto de fracos e combalidos que sempre imaginei. Até o Ney que era forrado de coragem, repleto de vida, taludo de graça, tem um lugar lá; das minhas resenhas, o melhor personagem. Só o Ney poderia saber a hora de parar com tanta naturalidade. Prefiro pensar que ele está apenas dando um tempo; alongado em um canto qualquer procurando curar a ressaca. Logo encontraremos no próximo carnaval.
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