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Contos-->Zé, ou como caçar um lobisomem sem bala de prata -- 20/09/2007 - 20:58 (Jacques Levin) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dizem que para se matar um lobisomem você precisa de uma bala de prata, ou então de aplicar sete foiçadas bem dadas com uma foice nova, limpa e bem afiada. Mas não uma foicinha de mão, pequenina, que chamamos de serra de mão e não de foice. Tem que ser uma foice grande, de cabo comprido, dessas de roçar capim colonião. Tem que dar golpes, um à esquerda e um à direita, e depois alternar esquerda e direita, contando um, dois, três, quatro, cinco, seis. Aí se pára, se dá a volta no corpo, ficando ao comprido com o lobisomem que está no chão, se olha bem para ele, se faz a mira e com a última foiçada, precisamente no pescoço, se corta fora a cabeça do bicho, gritando alto: sete. Depois se bota a cabeça do bicho num saco e se enterra a sete palmos no chão, a uma distancia de sete passos largos do corpo, na direção de onde está a lua. O corpo fica no lugar em que caiu, prós urubus comerem. A cabeça continua viva, mas enterrada e separada do corpo, não tem jeito dela se colar de novo. Ela fica só pensando o que está fazendo ali. O corpo desligado, Os talhos nos seus flancos e o sangue atraem formigas carnívoras, lava-pés e clec-clec, que mordem doído, pretas e graúdas. Saúvas e chen-chens ruivas, não se ligam em sangue. Preferem cortar folhas de plantas e carregar para suas panelas. Mas o bicho é malandro. Para conseguir pegá-lo melhor amarrar um pedaço de carne numa árvore; ou então um bicho morto, um gato, uma preá, uma doninha, uma galinha, com um fio de náilon transparente e ficar na tocaia. Ele vai vir olhar, porque é bicho curioso. Vai se esticar todinho para alcançar a isca. É a hora de meter a foice nas costelas dele. Começar pela esquerda.

Este lugar aqui estava cheio de lobisomens. Povo pobre. Sem armamento de fogo. Bala de prata ninguém podia comprar. Nem fazer, porque prata é muito caro. Tinha um sujeito aqui que sabia fazer a bala. Joé. Tinha uma bala de prata que passava de mão em mão. Quando alguém matava um desses bichos, tinha um trabalhão danado para recuperar a bala. Tinha que abrir a carcaça do bicho. Procurar no meio daquelas entranhas fedidas. Às vezes a bala varava o corpo, e o povo tinha que procurar dias inteiros o pequenino pedaço de metal no meio do mato. Depois levar até a oficina do Joé que fundia a prata num molde e botava de novo dentro do cartucho. Um dia o velho Zé, ruim de pontaria, acertou na perna de um desses bichos, com a nossa única bala de prata. Na perna não mata. Tem que ser no meio do centro. Cabeça, pescoço, peito, barriga. Na perna o bicho ficou vivo. E saiu correndo, carregando a bala, pro meio do mato. Lá se foi a bala. Passamos muito tempo sofrendo por causa desses lobosomens. Pegavam mulheres e crianças. Estupravam. Mordiam. Tiravam pedaço com os dentes. Até saber que se pode matar com a foice. Preto velho que contou. Coisa da África. Aí esse lugar ficou com esse nome: Sete Foiçada.

Lobosomem nunca mais. Tem é esses garotos bobos que pegam maconha, pó e pedra preciosa de craque. Eles roubam e assaltam quem está na noite. Altas horas o mundo é dos bichos da noite. Lobosomem ou não. Juarez é brabo. Quando pega um deles amarra e vai em casa buscar a foice limpa, que ele não usa para nada mais, que fica presa atrás da porta. Pra ele bicho da noite é tudo lobosomem. E vapt. Executa o prescrito com perfeição e gosto. Juarez gosta dessas cerimônias. Gosta de fazer tudo certinho. Faz aquilo como se estivesse na missa. E fica feliz, porque economiza uma bala de prata. E depois vai para o culto com o rosto brilhante porque havia livrado o mundo de uma alma danada.

Conheço os dois, Juarez e Pedrão. Grandes e fortes, páreo duro numa briga. Mas se respeitam, mantém distância. Quem vos fala é Weslêi, seu modesto criado.

Isso aqui sempre foi um lugar perigoso, barra pesada, lugar de pessoas ignorantes, brutas, verdadeiros animais. Dizem que aí pelas matas há uns riozinhos limpos, umas cascatinhas ruidosas, onde se deixam presentes para Iemanjá. Dizem que ela gosta de lá. Mas aqui, no descampado, só há barracos e esgotos sujos, com umas passagens estreitas de tábuas de obra. Você passa e a tábua verga toda. Cair nessas valas é a pior coisa que existe. Você fica todo emporcalhado das mais horríveis porcarias. Iemanjá não pode gostar dessas águas podres. É por isso que ela não vem cá. Você é que tem que ir lá onde ela gosta. E deixar pra longe esse mundo de porcalhões depravados.

Outro dia esteve aqui o seu Pascoal, vereador pedindo votos. Meteu o pé na tábua e ela se espatifou. Seu Pascoal caiu com a bunda gorda no fundo da vala. Acabou com o terno de linho noventa. Seu cabo eleitoral havia alertado: “Não vá seu Pascoal, que é muito peso”. Mas ele entusiasmado foi. “Eu vou onde o povo está”. E foi mesmo. Meteu as fuças no meio da merda. Exatamente onde o povo está.

Essa história, na birosca, faz o maior sucesso. Todos riem, bebendo cachaça e comendo os mais variados tira-gostos, linguicinhas, dobradinhas, moelas, língua de vaca, costelinhas de porco, que depois de passar pelos tubos das entranhas daqueles nojentos vai direto para as valas.

Todos riem, menos Pedrão, que bebe quieto no canto. Estranho esse Pedrão. Fica com os olhos muito abertos, olhando para frente. Parece estar remoendo seus ódios, colocando as suas questões e argumentos para si mesmo como se fossem coisas muito importantes. Anda para trás e para frente. Parece gesticular. Depois se encosta com os cotovelos no balcão e olha pra baixo e se aquieta por uns momentos. Está mais calmo o Pedrão. Mas já houve tempo em que foi o terror dessa região. Seu Zé não. É dos mais pacíficos. É só mais um que bebe, fica alegrinho e depois vai dormir. Pedreiro por aqui tem muito. São os artistas que botam as coisas fora do prumo. São os reis das distorções. Fazem suas paredes tortas e depois tem que distorcer, disfarçar, senão as janelas não fecham e as portas se movem sozinhas e abrem e rangem e não cabem nas caixonetas empenadas. Se tiver azulejo, aí é que se danou: vai ficar uma linha torta no canto.

Eles são assim: aprenderam a profissão no sopapo, como ajudantes de outros pedreiros que sempre fizeram as coisas erradas. Suas massas fracas costumam cair e descascar e eles botam a culpa na umidade. Zé tem as mãos grossas, uns olhos azuis desbotados e o branco do olho vermelho. Esse é um que pode passar por lobosomem com um olho azul e vermelho. Mas loboshomem com bafo de cachaça será que existe, ventoso, caindo nas esquinas? Abrigou esse tal de Aldo, diz que é um sobrinho do nordeste. Mas não tem sotaque de nordestino. Fala difícil e passa os dias dormindo. Mais um à toa na vida, fugindo da polícia.

Aqui nesses brejos cresce capim de todos os tipos; se usa capinar no inverno, porque no verão o chão está muito molhado. Um barraquinho se faz num pedaço pequeno de terreno de três por 3 metros. Se limpa a área e se encontra um chão arenoso. Não adianta afundar os buracos para fazer fundação. Tem areia e água. Melhor é fazer um buraco raso e uma obra bem leve. Se a enxurrada levar, fazemos outra. Se é pra fazer firme, vai precisar de estaca de 30, 40 metros cavada no chão, até encontrar terreno firme. E quem é que pode fazer isso, esses pés rapados? Ou então se faz uma laje larga, em profundidade menor e deixa a casa flutuando no chão. Como uma balsa no mar. Um mar de areia. Eu já vi fazer isso, mas gasta muito concreto. E depois tem que abrir um buraco grande no chão. E escorar as paredes do buraco. Ai vai todo o dinheiro nesse escoramento, em pranchas grossas de madeira. Se não fizer pode desbarrancar; pega os homens todos no fundo do buraco da terra e pronto; estão todos mortos. Eu já vi isso acontecer. Só uns minutinhos e é morte certa, você nem acredita quando tiram os corpos que parecem uns bonecos e não aquelas pessoas que você conhecia e que andavam e falavam como todo mundo. Você nem acredita que quem está vivo pode morrer. Num instantinho.

Pedrão começou a enlouquecer com esse negócio de morrer. Era só mais um pedreiro que tinha uma vidinha pacata e que veio morar na baixada. Sete Foiçada chamava Vila Conforto naquela época. Só uns poucos casebres de gente pobre que não tinha como morar na cidade. Morávamos longe e íamos pro trabalho de trem, porque era mais barato. Os trilhos iam até o centro da cidade. Mas entrar num vagão de trem não garantia a chegada, muita coisa podia acontecer até lá.

Achava que podia viver naquele lugar. Uma vida apagada e esquecida por todos. Mamuleque, um homem tranqüilo achava que é possível ser feliz em qualquer lugar. Condições materiais não importam muito. Inteligência não é importante. Ganhar dinheiro não é tudo. Todos se mantinham com alguma espécie de divida a ser saldada. E isso era fonte de muito sofrimento. Aldo discordava inteiramente. Achava que não se pode conviver com a injustiça. Nem aceitá-la. Baixos salários, péssimas condições de vida, de habitação, de saúde, de educação. Era tudo um plano dos dominantes para extrair lucros do trabalho do povo e manter a dominação. Aldo já estava discursando alto. Na birosca cessaram os risos e as caras ficaram sérias. Ainda bem que a polícia nunca ia lá. Mamuleque não discutia, não estava debatendo nada. Tinha também as suas convicções. Para ele pouco importava o que você estava fazendo. A única coisa que tornava a vida ruim era guardar ódio no coração.

- Ódio se vence com ódio - dizia Aldo.

Mas será que os patrões infernizam a vida pessoas porque as odeiam? Ou é uma coisa que vai acontecendo sem que a gente sinta?

- Mesmo nesses barracos tem muita coisa que a gente podia fazer para melhorar.

- Melhorar? Você não está vendo essas valas, esses esgotos? Vocês vivem num mar de merda. É por isso que as crianças estão doentes. Vais querer botar uma rede de esgotos por tua conta? Essas manilhas são caríssimas.

Mamuleque pensou que manilhas não eram necessárias. Essa é a conduta dos ricos, dos brancos. Querem enfiar seus dejetos num tubo e enviar para bem longe.
- E por que manilhas? Vou lutar contra eles e querer fazer igual a eles? Está brabo porque não tem tudo o que eles tem. Você quer ser igual a eles? Acha que o mundo deles é o único mundo certo? Se fosse o mundo certo, por que o mundo está tão mal?
- É? E o que você propõe?

Mamuleque inventou na hora:

- Vamos fazer um grande buraco, revestir com tijolos. As pessoas fazem as suas necessidades em penicos. De manhã se recolhem as porcarias e se joga dentro do buraco. Isso é melhor do que jogar a bosta no meio da rua. E não precisamos dessas manilhas caríssimas que os políticos nos prometem. Podemos fazer nós mesmos. É claro que tem que ter uma tampa.

A imagem de pessoas carregando penicos cheios, para Aldo soava como um atraso, um retorno à era medieval, ou a condição de parias hindus.

- Você é um reacionário. Estás contra o progresso, rapaz.?

Progresso para Mamuleque era uma companhia de ônibus. Reacionário ele nem sabia o que era. Para ele a sua idéia era tão obviamente boa que ele nem precisava defendê-la. Limitou-se a informar:

- As minhas merdas não vão para a vala. Já tenho um buraco de cocôs.

- Você não tem é dinheiro para comprar uma privada. Teu barraco é uma pocilga, que vai cair na primeira chuva.

-
Nesse ponto as pessoas já estavam mais relaxadas. A proposta de Mamuleque soava como piada. Gozação. Redução ao absurdo. Aldo levava tudo a sério; suas conversas terminavam sempre em discussão ou com um discurso inflamado. Achava que tinha muito a falar para aquela gente, para despertá-los daquela vida anestesiada. Queria formar um exército de Pedrões, Juarezes, Zés e até Mamuleques. E marchar com eles para a Bolívia. Não se precavia, esquecia que estava escondido, curando as feridas das muitas porradas que ganhara em sua passagem pela polícia política.

Mamuleque era um negrinho magro, quase um moleque de recados. Já era velho, com quase 60 anos. Conservava sua carinha infantil e vozinha fina. Com esforço podia-se perceber a sua idade. Ninguém podia imaginar que Mamuleque iria se iluminar. Virar um verdadeiro sábio, que no futuro percorreria a baixada consolando o povo e diminuindo o seu sofrimento.

Eu sabia que estavam falando sério. Nem Mamuleque, nem Aldo bebiam álcool. Nem eu bebia. Isto é, apenas dois ou três copinhos, o suficiente para tontear, e garantir uma noite de sono. Eu sabia o que os dois estavam pensando. Mamuleque devia estar pensando: “não sei porque esperar os políticos, quando podemos resolver o problema nós mesmos, com as nossas mãos” E Aldo: “Todos tem o direito ao bom e ao melhor. A casas de alvenaria, a esgotos, a água encanada, a banheiros branquinhos ladrilhados. Vocês não só tem o direito como tem que exigir, que brigar e pegar em armas para arrancar esses direitos”.

Mas Aldo falava quando devia ficar calado. Como é que aquele primo do nordeste era tão sabido e falante? As pessoas do lugar desconfiaram. Por sorte não havia ali nenhum espião da polícia. A notícia não correria. Era um lugar tão abandonado pelas autoridades que Aldo se quisesse poderia começar uma revolução dali, a 86 quilômetros da capital. Porque ninguém iria verificar. E de fato, o lugar serviria como uma espécie de concentração antes de partirem para a Bolívia.

Aldo, que não bebia, fora ao bar para arrancar dali o seu velho “tio” Zé, cujos olhos azuis já estavam vermelhos, injetados de sangue. Zé, despedido, vivia de bar em bar, enquanto houvesse dinheiro da indenização. Pagava a bebida de todos e em torno dele gravitavam os mais estranhos tipos de alcoólatras, querendo dar a sua mamadinha gratuita. Zé sabia que a solidariedade no álcool era forte. E que qualquer deles, do grupo, faria a mesma coisa por ele. Muitos pedreiros e biscateiros. Era de impressionar que os pedreiros, esses profissionais do fio de prumo e do nível de bolha, tivessem tanta facilidade para perder a capacidade de se manter na vertical. É que o álcool, sendo líquido, os joga para a linha horizontal, tende a deixá-los deitados. Seus pensamentos escoam para baixo como se fosse água de chuva procurando bueiros para se desvanecer no oceano.

Aldo fez muito esforço para levá-lo para casa. Já não era a primeira vez. Como é que vou levar um bêbado desses para guerrear?

Ali, naquele meio, a bebida era valorizada. Não era um vício. Nem uma fraqueza. Pelo contrário, um homem era visto com respeito quando conseguia se manter vivo e bêbado. Era sinal que dignificava. Carolas, pastores e gente sem graça é que faziam discursos contra a bebida. Os machos bebiam. Qualquer erro poderia ser desculpado se alguém estivesse tocado. Todos os heróis locais haviam realizado proezas levemente embriagados. A única coisa que reduz o brilho, que deprecia um bêbado é bater na mulher sob efeito do álcool. Essa é a grande besteira que desclassifica um macho e o coloca no rol daqueles que não sabem beber. “Fulano não pode beber. Imagina que chegou em casa e bateu na mulher”. Tirante isso, tudo o mais é permitido e olhado com admiração.

Zé era uma dessas figuras mitológicas. Queimar a sua indenização num porre que durou dias, pagando a bebida de todos era a suprema demonstração de generosidade. Sem sentir, estava investindo em que todos pagariam as suas doses diárias, no futuro, até que voltaria a ser considerado um simples vagabundo, ao final de alguns meses. Era, portanto, um investimento lucrativo. Aldo foi até lá resgatá-lo de seus amigos bêbedos. E acabou ficando, tragado por um poço cheio de uma energia pesada e viscosa. Beber não bebia. Acabou se envolvendo num debate acalorado de conteúdo político. Ali se convenceu de que era impossível àqueles fracassados e destituídos de orgulho próprio fazer qualquer coisa pra mudar. Aquele era o mundo do lumpem-proletariado. E de putas rampeiras e rasteiras que cobravam barato. O barato que saí caro. Cada trepada ligeira acabava rendendo uma consulta para o doutor Jacózinho, o mestre das doenças venéreas da baixada. Era por isso que Marquês depositava a sua confiança apenas na classe operária, mais organizada e consciente capaz de entender os argumentos da vanguarda da vanguarda do proletariado. Se eram capazes de entender o funcionamento de máquinas complexas e de fazê-las operar, poderiam muito bem entender como funcionava o perverso mecanismo da sociedade capitalista...

- Prefiro as putas, disse Zé. São profissionais, querem agradar. Depois dou um dinheirinho e elas ficam felizes. Abraçou uma mulatinha e sapecou um beijo na boca.

- Vá você arrumar uma mulher direita. É encrenca na certa. Vai querer te enquadrar em horários. Reclamar do teu bafo de cachaça. Mulher mal-humorada abre as pernas a contragosto. Nem finge mais que está gostando.


Aldo já desistira de levá-lo para casa. Lembrá-lo de que tinha uma mulher esperando acabou por entornar aquela taça cheia de veneno. Agora é que não largaria mais a mulatinha.

- Depois ela se separa e vai querer levar metade do teu salário pelo resto da tua vida. São as trepadas mais caras do mundo. Pouco ardor e muita aporrinhação. Vira sócio igual o governo. É muito aproveitador para sustentar. O imposto de renda e o imposto da fêmea
Dom Barnabé, o espanhol que administrava o ramo do entretenimento na região, tinha uns quartinhos nos fundos da birosca. Era para lá que Zé pretendia ir, arrastando a mulatinha cheirosa pelo caminho. Ele acrescia à lista dos aproveitadores os mafiosos daquelas bandas, para quem tinha que pagar uma taxa de proteção, além de garantir o seu bar como mercado cativo para a venda de tóxicos e das muambas as mais diversas.

Interessado em manter o clima de festa, Dom Barnabé havia organizado um conjunto regional. Pelas onze horas, chegaram dois violões, um violão de sete cordas, um cavaquinho, um bandolim, uma flauta, um pandeiro e um cantor chamado Sabiá. Esses músicos eram todos amadores. Amadores e de meia idade. Aposentados e desempregados. Seguiam os arranjos do conjunto Época de Ouro. Seu repertório era composto de chorinhos e sambas-canções. Sabiá parecia um papa-defuntos. Vestia seu único terno escuro, camisa escura e gravata grená. Quando a música iniciou seu Zé fechou os olhos e descansou a cabeça nos peitos da mulher. Sentia-se confortado, como se já estivesse em casa. Queria morrer ali, naquela hora, mamando naqueles peitos. Sabiá cantou os célebres versos de Lupicínio:

- Esses moços, pobres moços
Ah se soubessem o que eu sei...

Pronto. Seu Zé não aquentou. Começou a chorar, baixinho para que ninguém notasse. Achei que ele estava chorando. Depois vi que ele estava esfregando a barba de três dias na pele macia da morena. Era uma forma de demonstrar afeto. Como os cachorros que beijam, encostando o focinho no nariz do dono.
- Pára Zé! Gritou a garota.

Zé levantou a cabeça, bebeu um gole, e engrossou o coro:

Não amavam, não passavam
Aquilo que eu já passei

Aldo também cantava. Estava maravilhado com aquela demonstração de pujança da cultura popular. Aquele sim, apesar de durão, era capaz de chorar. Grossas lágrimas, que ele sustentou sem vergonha, desceram pelo seu rosto, como se ele estivesse cantando a Internacional, ou a Marselhesa, num bar repleto de nazistas, como em Casablanca.

Confesso que eu também tenho um fraco por chorinhos e sambas-canções. Também sou de esquerda. Não um porra louca. Não estou disposto a tomar um tiro como forma de protesto. Prefiro ficar na encolha. Como diz o Eclesiastes, há tempo para tudo. Mas a música fazia dessas coisas. A emoção escondida aparece. Se alguém tocar o Hino Nacional fica todo mundo perfilado, revoltado com os bandidos que degolarão nossos filhos e nossas mulheres, como diz a Marselhesa. Então, antes que eles o façam, fazemos nós.

Qualquer um que cantar uma música patriótica pode fazer marchar multidões e levá-las a assaltos impossíveis às fortalezas do mal, Em direção à morte certa. Chorar com Lupicínio pela dor de corno é bem mais seguro e igualmente emocionante. É a magia da música, onde tudo parece fazer sentido. Qualquer verso que caiba numa melodia passa a ter um sentido e encontrar eco nos corações.

“Só danço samba, só danço samba
Vai, vai, vai, vai, “vai”.

Ou,

“Fotografei você
com a minha Roleiflex
Revelou-se a sua
enorme ingratidão”.

Ou, o que é quase a mesma coisa:

“E uma Kodak
para tirar sua fotografia
Vai ter retrato todo o dia”.

O que vai ter todo o dia é outra coisa, se você vier morar na minha palhoça. Uma mulher tem que gostar muito de sofrer para aceitar viver numa palhoça, cozinhando em fogão de lenha, carregando água daquela cascata que faz chuá-chuá e ainda tendo que agüentar as roleiflexes e as kodaques desses trogloditas.

Ou:

“Se vocês pensam que a um grande futuro
Só o amor nessa vida conduz
Saibam que deixam o céu por ser escuro
E vão ao inferno à procura de luz”.

É bonito, chega a emocionar. Mas é um ajuntamento de palavras quase sem sentido. Mas é essa a magia; criam-se imagens imprevisíveis na cabeça dos ouvintes. Cada um coloca a sua historinha pessoal para fabricar essas imagens. Aí vem a melodia, essa sim cheia de um sentido, que sobe e desce e percorre um ciclo completo. Fica todo o mundo aliviado quando entende a música, e as imagens trazem as emoções para fora. É só isso o que importa.

O grupo emendou com “Pedacinhos do Céu”, solo de cavaquinho, executado magistralmente por Basileu, ferroviário aposentado, que fez tudo aquilo com um toco de cigarro no canto da boca e desviando a cara para a fumaça não pegar no olho. Agora, música pura, capaz de fazer chorar sem a ajuda de palavras.
Aldo estava boquiaberto. Como é que aqueles degenerados, em um lugar remoto da baixada podiam tocar tão bem?
Alguém disse:

- Preste bastante atenção, é só hoje. Eles nunca mais vão tocar desse jeito. Daqui pra frente é só desencontro...

- Vira essa boca pra lá, desgraçado...


O espanhol se dera bem. O barracão de madeira estava fervilhando, mais cheio do que o culto. Tinha até gente com bíblia debaixo do braço. As garrafas de cerveja faiscavam no ar a as menininhas estavam arrumando fregueses. Num espaço apertado, alguns casais dançavam.

Juarez era um desses que andava com a bíblia e um paletó xadrez. Tinha o mau hábito de beber umas antes de ir para a cama. Saía com a alma limpa do culto, e precisava dar uma sujadinha antes de enfrentar o resto da semana. Senão pra que ir ao culto? Pessoas puras não precisam de ajuda espiritual, “não é verdade?”.

- É claro, claro, meu amigo.

Sondou o ambiente, apertando os olhos, até que deu de cara com Pedrão. Achava que ele estava virando lobisomem. Andava sozinho, de noite, com aquele aspecto desleixado e era mal-humorado como um animal. Estava na sua lista, que bicho raivoso não pode ficar solto.
Juarez era, um pouco, o xerife do sobrenatural, caçador de vampiros e de lobisomens, respeitado até pelas quadrilhas de bandidos locais, que afinal de contas, tinham também medo desses entes infernais. Porque as quadrilhas eram bem organizadas, prevalecendo uma hierarquia de fazer inveja as mais modernas empresas do comércio ou da indústria. Tinham até plano de saúde e de aposentadoria. Quando alguém era morto ou preso, a família recebia uma pensão. E depois dizem que brasileiro não sabe fazer as coisas direito... As quadrilhas andavam na noite, mas respeitavam os seres da noite. Faziam doações para terreiros de macumba e viam com bons olhos a ação moralizante dos pastores. Desde que não se metessem com eles. Fatores de instabilidade e risco, como Pedrão, estavam sob a suspeição de todos. Já Juarez, era considerado um agente da segurança que tornava a noite mais segura para trabalhar. Respeitavam-se, Juarez, os bandidos.


Juarez olha desconfiado. Duas cachaças são suficientes para embaralhar suas ondas cerebrais, para deixá-lo com um mar revolto na cabeça. “Se Ele nos Quer puros, devia nos Ter Feito puros. Veja esse maluco, Pedrão. Não fala com ninguém. Não responde cumprimentos. Não vai à igreja. Deve ser o Bicho. O Bicho deve estar nele, espiando pelos buracos de seus olhos, esperando a hora de fazer o mal. Bicho que já provou do sangue fica com vontade, com saudade. E ele já provou. Dá pra ver de longe. Ta olhando pra baixo, o infeliz, só pra não me encarar”.

Juarez se aproxima para sondar o Bicho; o suficiente para sentir o cheiro ruim que vem dele, e entende porque um claro de pessoas forma um círculo em volta de Pedrão. Difícil ter alguém ali com coragem para botá-lo para fora; todos conhecem as suas historias. Juarez também conhece, mas não acredita. Cheiro do demo, de enxofre, de azedume. Cheiro de muito bodum ajuntado, um em cima do outro. Cheiro de bicho-ruim.

Quando a música parou, Juarez pode ouvir um som que vinha da garganta de Pedrão. Percebeu que estava falando sozinho, baixo, como se conversasse com alguém. Uma parolagem esquisita, em que se entendiam apenas algumas palavras soltas. Estava conversando com o demo? Ele falava e o bicho-ruim respondia com voz mais grossa. Devia estar passando as suas ordens, as suas instruções das maldades que ainda ia fazer, quando saísse dali, com as almas boas e ingênuas que estavam voltando para casa, achando-se protegidas. Os incautos que acreditam que o demo não existe. Que o mundo é bom. Que podemos estar tranqüilos, que o anjo da guarda está velando. Mas anjo não encara bicho-ruim. Anjo só sopra coisas agradáveis no ouvido da gente. Quem encara é gente como Juarez, que está ai para o que der e vier, e não se preocupa muito em se danar. Porque Ele, sim, está vendo o que a gente faz ou deixa de fazer. E fazer pode ser decisivo. Principalmente quando é pra retirar uma alma ruim dessa terra.

Quem espreita é que é o caçador? Ou é a caça que quer ser espreitada e deixa cheiros e rastros por onde passa? Mamuleque, que estava vendo tudo, se acercou e tocando o ombro de Pedrão perguntou:

- Vamos tomar mais uma?

- Vamos, Muleque, vamos.


E foi só, foi toda a conversa. Olhou para o lado de Juarez e levantou o copinho.

- À sua saúde, mestre.

Eta moleque folgado. Um pingo de gente, no meio de dois grandalhões, igual àquele juizinho de boxe, com gravatinha borboleta.

Juarez brindou em silêncio, levantando o copo, com uma ruga na testa e fingindo estar com a boca ocupada. O que veio fazer ali aquele ajudante de diabinho? Homem santo, uma ova, bebendo cachaça? Quem não é santo nem puro é que bebe para se distrair. Pego os dois, diabo e diabinho. Ou então bebe para soltar as amarras do coração. Igual eu soltei. E, se soltei foi para fazer alguma coisa de bom. E não para ter que suportar esses dois demoniozinhos. Homem santo não precisa beber cachaça. Nem freqüentar cabaré cheio de putas. E o cheiro dele é pior do que do outro. Cheiro de satã, suor e fumaça de fogão. Eu não sou santo, nem puro; mas luto para melhorar o mundo. Vou pegar os dois hoje mesmo.
Mamuleque encostou no balcão. Podia beber a vontade que não ficava perturbado. Era uma capacidade que ele tinha. Igual aquela de perceber as intenções dos outros. Sabia que Juarez era perigoso e que as guerras santas são só desculpas para assassinatos. E que Pedrão aceitava qualquer provocação. Por isso, se postou no meio e desarmou a situação; porque Mamuleque vê pensamentos. E Juarez andava com uma luz negra sobre a cabeça. Já Pedrão tinha uma meia lua projetada nas testa, sinal de sofrimento, dor e seriedade. E ele, Mamuleque, podia ser qualquer um, entrar na cabeça de qualquer um, percorrer suas largas avenidas vazias, até encontrar em um beco escuro a raiz de todo o mal: um euzinho assustado, e temeroso de ser expulso de sua toca. Aqueles dois montes de muitos quilos de carnes e ossos que procuravam o seu sentido na vida a partir dos pensamentos que vinham de um ser medroso. Bilhões e bilhões de células a serviço dos preconceitos e de idéias que como invasoras se apoderavam do poder de seus corpos e os punham para trabalhar a seu serviço. Cada um lutava ao seu modo pelo controle, e o resultado era um extravagante mendigo e um idiota que achava que estava em ligação direta com Deus, dele recebendo ordens diretas sopradas em seu ouvido. Tinha essa capacidade. Ou pelo menos, achava que tinha, penetrar nos pensamentos, descobrir as intenções. E entre um e outro ficava com Pedrão, apesar de achar que todas as almas merecem salvação. Pelo menos Pedrão não matava. Se o fez, uma única vez, se arrependeu amargamente.

Um espreitador, esse Muleque. Mas, na verdade, quem espreitava era eu, que via Mamuleque, que via Juarez, que via Pedrão, que não via ninguém, porque estava com a cabeça na lua. Eu que caçava; eu que olhava; eu que sabia mais ou menos o que cada um estava fazendo ali. Só não sabia se tinha alguém me espreitando. Mas acho que não; sou muito quieto, não me exponho sem motivo. Sou insignificante para que alguém queira saber das minhas intenções. E intenção, não tenho mesmo nenhuma. Só a de conhecer melhor essas pessoas, e rir das besteiras de cada um. Não entendia porque aquele negrinho esquelético estava querendo se meter em briga de gente grande. Deixa, deixa ele se enrolar com Pedrão, esse xerife das almas, esse caçador de bruxas precisa levar umas porradas: se vier de foice não escapa. Vira briga de vida ou morte, porque Pedrão é homem de princípios; e princípios a gente não esquece com facilidade.

Não é que o diabinho podia mesmo ler pensamentos? Olhou para mim, riu e piscou o olho. Levantou o copo e brindou à distância. Ou será que foi coincidência; ele não viu coisa nenhuma, nem leu pensamento algum; virou-se para cá para poder arrotar educadamente; deve ter rido de vergonha pelo arroto alto. Deu comigo sentado na mesa. Eu sim que estava olhando para ele dando mostras de estar interessado. Ai, então ele levantou o copo: Saúde, mestre.

A música recomeçou e tudo voltou aos seus lugares. Cervejas, suores, bodum nos ares, junto com o perfume forte das mulheres e com o som do bandolim. Juarez se afastou para um canto, levando uma garrafa de cerveja e continuou olhando de longe, estudando o que os dois iriam fazer. Pedrão continuava se balançando, e Mamuleque só pensava em ir embora para casa, mesmo que tivesse que levar Pedrão consigo para protegê-lo. Se é que ele precisava de proteção.

Já era tarde e o barracão já estava meio vazio. Aldo levantou a cabeça da mesa e pode ver que Zé estava se dirigindo para uma das alcovas do espanhol. Não precisava mais esperar. Zé só voltaria para casa depois de meio dia. Amanhã receberia os companheiros e começaria o preparo da partida. Rumo à Bolívia, graças a Deus. Deixar para trás a pátria amada, por quanto tempo não sabia. Quem sabe depois da Bolívia não poderiam dar uma esticada até Brasília? Levando consigo milhares de combatentes. E subiria no parlatório; e declararia a nova era. Voltou para casa tão entretido com a idéia que nem lembrou de dona Arminda, a esposa desprezada de Zé. Tinha que inventar uma boa desculpa para sossega-la.
Juarez ainda imbuído de sua missão saiu e pôs-se a vigiar o caminho, onde apenas o conhecimento consolidado permitia caminhar; chão de terra, em que não se sabia se uma mancha escura era à sombra da lua ou uma poça cheia de lama. Ali fora estava mais fresco e ele se sentiu mais bem disposto. Grilos ocultos cantavam e vaga-lumes riscavam o ar. Um cenário carregado de sombras e de estrelas. Uma lua perfeita para enterrar cabeças.

Tinha certeza que ia pegar os bichos. Convicção de missionário. Resolveu armar a isca no galho de uma goiabeira magra, logo depois de uma curva da estrada. Teriam que passar por ali; o barraco do pestinha ficava naquela direção, uns vinte minutos de caminhada.

Foi em casa e catou uma franguinha que matou com um safanão no pescoço. Deu um talho de canivete para escorrer um pouco de sangue, que grudou na penas do bicho e fez uma mixórdia grudenta que ele achava que nenhum bicho-mau resistiria. Pegou a foice, atrás da porta, lâmina limpa e brilhante, que ele mantinha toda a semana com esponja de aço, cuidando com carinho do gume; beijou a mulher que já estava deitada, olhou os filhos pequenos no quarto. Dormiam como anjos, escutou as suas respirações profundas e tranqüilas. Pensou que estava fazendo aquilo por eles, aqueles anjinhos ainda puros, para melhorar o mundo e evitar que aquelas pequenas alminhas viessem a se conspurcar. Pegou também o fio de náilon na caixa de pesca; com ele amarraria o frango no galho.

De volta à curva, amarrou o frango no galho, bem alto, para que o bicho tivesse que se esticar todinho e ficar nas pontas dos pés, conforme a tradição. Imaginava que aquela posição alem de dificultar a fuga, abriria bastante as costelas dele, o que facilitaria a penetração da foice nas carnes macias até o fundo. Se pegar no osso, ou osso parte ou a foice fica travada. Ai ele teria que largar tudo de mão e sair correndo, porque a reação do monstro é terrível. Vira-se rugindo, mesmo com a foice enfiada, e mete as garras nos olhos. Depois que a pessoa cai, ele abre o bocão e crava os dentes no pescoço, tirando um grande pedaço. A sangueira se derrama e depois que a pessoa morre o bicho faz a festa nos seus restos. Deixa só uma maçarocada vermelha que ninguém consegue reconhecer. Mais um herói anônimo.

Escondeu-se no outro lado da estrada, agachado numa moita. A caçada exige paciência e muitas horas de espera até a caça aparecer. Não há como prever nem apressar. Tudo o que se pode fazer é armar uma isca, atrair o bicho para um determinado lugar onde o terreno é favorável. E depois pegá-lo de surpresa. Mas só quando ele quiser, quando ele aparecer. Mas achava que ele ia sair logo. Ouvia o som longínquo da musica.

Mamuleque e Pedrão juntos era como a união de um corpo com uma alma. Um tinha o que faltava ao outro. Mas ali, no caso, ambos não tinham uma coisa muito importante no momento. Estavam retidos no barracão por falta absoluta de dinheiro. Daí não saíram, demoraram a sair. Porque eram honrados e não queriam dar o beiço em Dom Barnabé. Então muita gente andou por aquela estrada e viu a galinhola pendurada. Alguns sabiam o seu significado: era como se fosse um sinal de trânsito, um sinal de perigo extremo. Então se afastavam, se benzendo. Quem não sabia achava tão macabro, que não ousava se aproximar ou tocar.

Seu Matos, que vinha do outro sentido do caminho, um senhor inofensivo, uma boa alma, que vivia de retirar uns galões de leite, viu, refreou o passo um pouco, segurando o jumento com seus dois latões de leite pendurados, e em seguida apertou o passo sem parar. Quando chegou no galpão do espanhol, parou para avisar:

- Cuidado que tem coisa armada para lobisomem. Ali na frente, na curva.

Já não havia quase ninguém. O espanhol, cansado, estava botando as cadeiras viradas em cima das mesas, enquanto uma moça que parecia sua filha varria o chão. O regional guardava os seus instrumentos, menos o cara da flauta, que continuava soprando o Brasileirinho numa demonstração de maestria que ninguém estava percebendo. Ele não precisava guardar porque levava a flauta debaixo do braço, sem capa mesmo. Mamuleque contava algumas moedas e Pedrão estava em pé, quase dormindo com uns olhos de zumbi, balançando um pouco o corpo.

Dom Barnabé exasperou-se com os dois. Queria fechar o galpão e nada de eles irem embora.

- Vá, vá, boa noite; Amanhã você paga, caramba que sujeito chato!
-
Mas Mamuleque não arredava pé. Sabia que não podia sair agora. Tinha que esperar o caçador dormir. Ele estava com muitas cachaças no lombo. Não ia demorar a dormir. Aí então a caça é que ia caçar.

Mamuleque resistiu enquanto pode. Só não conseguiu segurar quando o espanhol aplicou o ultimo recurso dos taberneiros para se livrar de gente chata. Não só perdoou a dívida, como ofereceu a ultima dose, a saideira para os dois, desde que bebessem rapidamente.

- Saúde, é por conta da casa - não só disse como bebeu junto, virando o copo numa talagada

- E agora adeus.


Botou os dois para fora e trancou a porta.

E ali estava o caminho. Ia reto em direção à goiabeira, e logo depois a curva. Não era lá o local destinado à sua morte, o chão aonde o seu corpo cairia, a sua última visão. Andaram bem devagar e silenciosamente, até que viu, na massa escura de galhos e folhas, o contorno da galinha. Escutou do outro lado da estrada os roncos do caçador, que não suportou a longa espera. Chegou debaixo da galinha e, como estava previsto, se esticou todo para alcançá-la. Mas era baixo demais. Contorceu-se e pulou. E nada. Trouxe Pedrão, que docilmente se deixou posicionar e se deixou escalar. Mamuleque estava agora do lado da galinha, em cima dos ombros de Pedrão, com as pernas em volta do seu pescoço. Viu que a isca estava fresca. E, nesse exato momento, percebeu que os roncos do outro lado estrada cessaram. O caçador acordara. Aí vem o perigo.

Juarez não podia acreditar no que via. Um lobisomem altíssimo com mais de dois metros de altura caíra na armadilha. Hesitou por um momento, avaliando se teria altura para executar o prescrito. Depois pegou a foice, tirou a capa de couro que cobria a lâmina e se aproximou sem fazer barulho.

Mamuleque viu porque via pensamentos. Largou a galinha e agarrou as orelhas de Pedrão. Meteu os calcanhares com força em sua barriga, como se faz com um cavalo. Chegou a gritar: “anda, bestalhão!” Com a pancada na barriga, Pedrão se curvou, enquanto arremessava Mamuleque longe, no meio do mato, no exato momento em que a lâmina cortava o espaço e se ouvia o grito de “um”.

Pedrão sentiu o assobio sobre sua cabeça. Por um instante ficaram os três perplexos, sem entender o que estava acontecendo. Juarez dera o golpe no vazio, com um giro horizontal de mais de cento e oitenta graus. Pedrão agachado. E Mamuleque, mais à frente, emborcado, agitando as perninhas para o alto.

Juarez largou tudo e correu. Enquanto corria rememorava a cena. Um monstro de mais de dois metros de altura, largo como uma porta de igreja, se fracionando em dois, diante dos seus olhos... Com a tensão do momento de perigo, recupera instantaneamente a sua sobriedade. Corria para salvar a pele. Errara o golpe? Após um momento de espanto, chegou a pensar que a foice fora tão bem impulsionada que cortou o monstro em duas partes, com resistência mínima, como se tivesse passado exatamente nos vazios do seu corpo. Quando a parte menor começou a se mexer, com dois apêndices finos no ar, como se fosse uma coluna espinhal bífida, Juarez percebeu que aquele monstro era demais para o seu pequeno poder de mortal. Largou bíblia, largou foice e saiu correndo. O grito de “um”, ainda ecoava em seus ouvidos, juntamente com o formidável urro emitido pelo monstro, quando chegou em casa lívido do susto.

Era assim, aquela historia iria para o seu arquivo pessoal: o lobisomem gigantesco que se dividiu em dois, na frente dos seus olhos. Ali todo mundo contava historias, mas lobisomem morto nunca se viu. Só bravatas e mais bravatas.

Mamuleque levou algum tampo para recuperar a sua postura. Virado como uma tartaruga centenária, agitava as pernas, com a cabeça atolada num charco. Sentir o perigo chegando era outra habilidade que ele tinha. Sentia um sopro de ar frio no cangote e uma fisgada na boca do estômago. Fora isso que sentira, quando tocou Pedrão como se toca égua preguiçosa. Espora na barriga com força até tirar sangue. Não tinha visto o agressor, mas sabia o que queria dizer aquela galinha dependurada. Afinal, fora ele um dos principais responsáveis por aquela historia absurda de lobisomens e de como matar lobisomens com uma foice limpa. Pura invenção de moleque, que tanta gente boba leva a sério.

Pedrão estava sentado no chão, no mesmo lugar onde se agachara, após levar aquela forte pancada na barriga. Ouvira um zunido no ar, mas a rigor nada sabia do que havia acontecido e do perigo que passara. Para ele aquela era mais uma das molecagens do negrinho. “Muleque safado”. Olhou para o lado, viu a foice, viu a bíblia, viu a galinha, viu a poeira da corrida de Juarez, enquanto escutava um tropel de cascos batendo no chão. E um som vibrando no ar: ZUM. Olhou para frente e viu as perninhas se agitando. “Ah, Muleque safado”. Levantou e o tirou da lama. Ficaram se entreolhando, Mamuleque cuspindo terra da boca.

- Tu viu quem foi?

- Quem foi o que? Vi você me acertar a barriga e me puxar as orelhas.


- Tu não viu a foice vindo? Alguém estava caçando lobisomem. Quase acertou...

- Não vi nada.


- E essa foice aí, é de quem? E essa bíblia?

Pegou a bíblia, onde estava escrito, com belas letras: “Juarez Rodrigues da Silva”. Mas ali ninguém sabia ler.

O dia já vinha clareando quando entraram na venda de seu Anísio, que os atendeu de mal-humor. Trocaram a foice por duas garrafas de cachaça. A bíblia, seu Anísio não quis.

Essa era a hominidade. Comerciar, inventar histórias e crendices. Estes seriam os soldados, cada qual com suas mazelas. Como disse Ulianov, se constrói a parede com os tijolos disponíveis. Por fora o reboco liso e pintado de branco, com suas pequeníssimas imperfeições. Por dentro tijolos rachados, quebrados, desiguais e horrorosos.

Tinham uma galinha recentemente abatida. O barraco de Mamuleque era longe, escondido no meio do mato. “Posso fazer uma canja”, pensou.

Jacques Levin
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