À noite falava furtivamente ao telefone, percorrendo o caminho entre a poltrona e a cômoda antiga (gostava das garrafas simetricamente dispostas sobre o mármore cor de rosa, os livros da filha jogados na mesa de
centro).
Este momento (o dos atos furtivos), fazia-lhe crer que estava vivendo intensamente. Precisava sempre de algo que o estimulasse, o sacudisse para a vida (que fosse diferente do sono que mal dormia, do coração que teimava em disparar, das sensações preocupantes de frio e calor).
Havia sempre alguém a ocupar seus pensamentos, motivo dos telefonemas furtivos que lhe davam tanto prazer (descobrir o novo sempre fora motivo de muito interesse. Principalmente o novo feminino).
Nervoso, aguardava as badaladas do relógio para discar o número do momento. Nunca antes das
11h30 (hora em que a casa dormia). Algumas vezes, quando a novidade acabara de começar e o deixava muito ansioso, continuava com os telefonemas madrugada a dentro, discando o mesmo número 2, 3, 5 vezes (ao lado da poltrona, a
mesinha de apoio para o copo. Vinho ou whisky, a depender dos acontecimentos do dia).
Lembrava-se que o hábito começara há muito tempo, quando conhecera alguém diferente da monotonia de todos os dias e fizera seu
primeiro telefonema furtivo. Naquela época, em pouco tempo os telefonemas já não lhe bastavam. Passou a desejar conversas abertas,situação às claras, exposição de emoções (sentia-se dono do mundo).
A esposa, sempre tão amorosa e condescendente, passou a fazer perguntas. E ele, em um momento de certeza da aceitação, abriu seu coração (afinal, quem era ela senão sua melhor amiga, aquela que entendia o que quer que fosse?)
Porém, a reação não foi a esperada. A surpresa e a dor nos olhos queridos, ele jamais poderia esquecer (a filha percebeu que havia algo
diferente, assustou-se, ficou arredia; o filho preferiu ocultar seus sentimentos).
Desde então iniciou a convivência com o arrependimento não admitido, com o aperto constante no peito. Apesar de seus esforços e dos
de todos, o amor que recebia já não era mais o mesmo (confiança quebrada não se recupera). Mesmo assim passou a enganar-se. Afinal,
não continuava tudo aparentemente bem? Não haviam todos entendido e desculpado?
Adoeceu, entristeceu, envelheceu (culpa da bebida. Nunca das emoções doídas e fortes). Após algum tempo, procurando ignorar suas feridas e
encontrar a paz irrecuperável, retomou o hábito que abandonara.
À noite falava furtivamente ao telefone, percorrendo o caminho entre a poltrona e a cômoda antiga...
Tita
São Paulo, 05/11/04.
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