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cronicas-->A mesa posta -- 16/01/2005 - 16:16 (Érica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Quando eu era estudante de pós, nos Estados Unidos, fiz amizade com muitos brasileiros, estudando na mesma universidade. Um deles era o Pedro (nome fictício), que morava numa daquelas casas enormes, antigas, victorianas. Metidas a aristocráticas, mantinham-se de pé à custa dos quartos alugados a estudantes. Um deles era o brasileiro-mineiro, Pedro, que já estava morando lá havia ano e meio.

Trocando nossas experiências em terras estranhas, ele me contou que morava numa casa histórica, que fora residência de férias de não-me-lembro qual governador do estado e por aí. Nada disto tinha grande importància para mim - nem para ele, suponho - a não ser por um pormenor: a dona da casa. Herdeira da tal mansão histórica, ele vivia sozinha, viúva e quasi-abandonada pelos filhos, um dos quais estava na guerra do Vietnam (terá voltado? nunca soube).

A dona da casa tinha uma idiossincrasia das mais exóticas - sua sala de jantar estava eternamente preparada para receber doze pessoas para jantar.

-- Preparada como? - perguntei para Pedro.

-- Venha ver, depois me conte - me respondeu.

E assim marcamos um dia para eu ir lá. Tinha de ser pela manhã, pois eu estudava e dava aula na parte da tarde - e, se não me engano, ele também. Enfim, estes pormenores não interessam. Munida com o endereço (felizmente não era muito longe do meu apartamento), cheguei lá na casa pelas dez e meia da manhã. Era um casarão. Do portãozinho de entrada, mal fechado com uma espécie de trambelho, ia dar na escadaria que levava à varanda da casa. Contei oito degraus antes de atingir aquele espaço assoalhado, pintado de branco. Havia ali umas cadeiras de vime, também pintadas em branco, uma mesa redonda do mesmo material, com um tampo de vidro por cima dela e um vaso de crisàntemo. Estávamos na primavera, um pouco mais para o verão, um ar úmido e pesado andava por todas as partes. Aquele alpendre era um refúgio delicado no calor da meia-manhã.

Apertei a campainha, uma bolota dourada e gasta por milhares de dedos, imaginei. Lá dentro soou uma espécie de carrilhão, quase infindo - mais parecia uma orquestra de campanas do que uma campainha. Coisas dos tempos da Rainha Victória.

Pedro veio atender a porta, desde que me esperava. Entramos por um pequeno saguão, onde havia um porta-guarda-chuvas de louça, em forma de guarda-chuva semi-aberto. Uma bengala com castão prateado ali se encontrava, solitária. Também havia uma chapeleira de madeira avermelhada, alta e de braços abertos, na ponta dos quais se penduravam uns chapéus - dois de homem e um de mulher. Ninguém mais usava chapéus, muito menos daqueles modelos, mas era um bom prefácio para o que me aguardava na sala seguinte.

Para chegar na tal sala de jantar que era o objeto da minha visita e intensa curiosidade, Pedro abriu a porta francesa, ou que assim se diz no jargão americano - French doors. Consta de duas portas juntas, que se abrem ao se afastarem uma da outra, dando a visão soberana da sala de jantar.

Realmente, posta e feita como se estivesse pronta para um jantar para doze pessoas. A mesa estava coberta por uma toalha magnífica, branca e adamascada em tom creme. Caía pelas esquinas com um aplomb digno de mesa da nobreza. Qual seja. - Sobre ela, e em frente a cada uma das 12 cadeiras, o jogo do jantar. Consistia de um prato enorme, dourado - o tal do sous plat, que serve de apoio para todos os demais, retirados à medida que são usados - e sobre ele, um prato raso, sobre o qual, um prato fundo. Então começariam pela sopa. Oh não. Ao lado (esquerdo) de cada comensal-fantasma havia um pratinho, onde se colocaria o pão (não serviriam salada, me parece). Em frente da pilha dos pratos, uma parada de cálices, taças e copos. Os talheres, de prata legítima, brilhavam sem dó - pareciam iluminados pela luz que se infiltrava pelo cortinado pesado, com uma estamparia de flores azuis e roxas. Ao meio da mesa, a "center piece", um arranjo de flores artificiais exuberante - parecia uma explosão primaveril. Coadunava-se com a estação do momento. A cada lado desta floreira, enfileiravam-se travessas de prata, todas cobertas com tampas altas e arredondadas. - Os guardanapos estavam magnificamente dobrados em forma de piràmide ao lado da colher de sopa, a primeira que se pegaria, olhando da direita pra esquerda. Dois jarros de prata também faziam parte da mesa magnífica.

Eu fiquei estatelada diante de tanta beleza - e não estou descrevendo os pormenores, como as miniaturas de cristal, espalhadas ela mesa, entre uma travessa e outra, algumas representando um cavalinho, outras, uma raposa e ainda uma terceira, um cachorro uivando... deviam ser cenas de uma caçada real.

-- Pedro - perguntei - isto está sempre assim mesmo, sempre?

Ele fez que sim com a cabeça. E mais me contou:

- Mrs. Funny (nome fictício) limpa isto aqui três vezes por semana, tira o pó (quase nem tem, pois a casa é fechada) dos vidros e das louças. E uma vez por mês limpa a prataria. Tudo aí é prata legítima. Ela retira peça por peça, limpa e põe de volta. Mas antes ela tira a toalha e a sacode na varanda. É um trabalhão, mas ela não faz muito mais do que isto. E no Natal, ela arma a mesma mesa, mas espalha umas folhas verdes e umas frutinhas vermelhas, antigas, de madeira. Ninguém vem aqui pra comer, algumas pessoas vêm pra ver. Ela jamais usou esta mesa pra gente de verdade, elo menos desde que estou aqui, há mais de um ano. E de vez em quando, ela anda aqui em volta da mesa, refestelando os olhos nesta exposição de pratos e copos e coisa e tal. Cada um com sua mania. Esta é a mania dela.

Depois de examinar de perto e de longe e à meia-distància tudo aquilo (sem tocar em nada), percebi uma foto pequena, metida numa moldura redonda que caberia na palma da minha mão (se a levantasse de onde estava, perto da cadeira da cabeceira da mesa).

-- Quem é esta? - perguntei para Pedro.

-- Ué, não diga que não reconhece! - disse ele. - É a própria Rainha Victória!

Neste exato momento, entrou a dona da casa. Franzina, pequenina, terá sido um dia bonita e bem modelada, mas a vida a transformou numa velhinha encurvada. Ela nos cumprimentou sorrindo e me perguntou se eu era também estrangeira. Respondi que sim. Se eu falava inglês, respondi que dava para o gasto. E ela então nos convidou para sua saleta particular - outra réplica de tempos vitorianos - e nos fez sentar. Tanto eu quanto Pedro tínhamos compromissos na universidade, não era de forma nenhuma hora para visitas vitorianas ou machadianas, como essa parecia ser. Só faltava ela nos oferecer bolinho e chá de hortelã... lendo meu pensamento, ela disse:

-- Infelizmente não é hora de chá, do contrário lhes ofereceria uma chávena de hortelã. Mas posso lhes oferecer suco de maçã.

Não aceitar a oferta seria ofender a etiqueta real. Aceitamos e suspiramos, enquanto ela foi até a cozinha, de onde emergiu com uma bela bandeja de prata com três copos altos de suco gelado.

Tomamos o suco enquanto ela nos contou porquê mantinha a mesa posta para um jantar que nunca teria lugar. Não mais. A história é muito longa para eu contar aqui. Mas foi uma narrativa das mais fascinantes. Saí de lá - perdendo a hora da primeira aula da tarde - com a sensação de que estava saindo de um espetáculo que focalizava o século 19 ou 18. Toda aquela louça era autêntica, tinha pertencido à corte da Rainha Victória, ao bisavó da mulher... que mantinha a sala com o respeito dos súditos ingleses pela memória. Digo eu, pelo fascínio que os britànicos têm por histórias de fantasmas.

E a mesa continou lá por todo o tempo que lá estivemos. Dois anos depois me formei e da cidade me mudei. O Pedro ainda ficou um pouco mais, e seu último e-mail (ele manda um e-mail por ano, sempre em véspera de Natal), me perguntou se ainda me lembrava da mesa da Dona Funny. - Hoje, finalmente, lhe respondi. E para ele envio esta crónica. Para mostrar para seus filhos.
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E.E.

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