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Contos-->O filósofo e o bêbado -- 14/08/2007 - 19:00 (paulino vergetti neto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



O filósofo e o bêbado

- Por que vives a tombar com os efeitos do álcool, homem pequenino?
- Se incomoda a ti ou à tua filosofia, deixa-me quieto a beber. Mora nesta garrafa o meu nexo de vida. É assim que acho graça nela.
- Então o álcool é maior do que tua alma?
- Minha alma já morreu bêbada. Não tenho mais nada dentro de mim. Estou oco.
- Oco? Ou cheio de álcool?
- Oco mesmo. O álcool vai para o sangue e sai no ar expirado. Comigo mesmo só fica a embriaguês, minha amiga de fé. Dá-me as coisas que quero ver e sentir.
- Então já tens alucinações...?
- Se o nome dessa coisa boa que eu sinto é isso que falaste, eu digo que sim.
- Não gostarias de conhecer o meu mundo? Viver de meditação? Amar a vida?
- E quem te falou que eu não amo a vida? Minha vida é o álcool que bebo. Sem ele já estaria morto.
- E antes de ele chegar, tu não enxergavas?
- Antes dele eu não tinha nada. Deram-me o primeiro gole, o segundo e hoje trago dezenas dele para me achar com a vida de novo. E teu mundo, como é?
- É bonito. Troco a alucinação para reflexão cheia de vida. Vivo achando as minhas próprias pegadas na estrada da vida. Tudo o que penso eu realmente posso ter.
- Duvido! O que pensas não pegas jamais. Voa, vai-se embora. Se tiveres grana, até podes comprar. Eu, com meu álcool sinto-me diferente, mas sinto. Viajo e gosto do que vejo. Quando quero repetir a viagem, bebo mais e pronto.
- Quando olhas para o céu, à noite, o que vês?
- Depende. Quando estou sóbrio, vejo menos estrelas. Quando o álcool está me inebriando a cabeça, vejo estrelas além da conta. Estás vendo como ele me dá mais?
- Não. As estrelas que eu admiro, são reais. As tuas cintilam na tua alucinação.
- Pegas as tuas?
- Não. Vejo-as de longe.
- E então, pra que ver ao longe e não poder pegá-las? Eu vejo a mais e não pego nenhuma delas. Falas como se pudesses pô-las no bolso e levá-las para qualquer céu que encontras por aí. Eu não vejo diferença nisso.
- Mas, eu tenho longa vida para admirar o céu, e tu não!
- Tens certeza? Eu conheço um filósofo que morreu eletrocutado quando admirava o céu em um dia de inverno. E o que é que me dizes disso?
- Isso foi uma fatalidade. Não conheço história nem ao menos parecida com essa.
- E história de bêbado que morreu eletrocutado, tu conheces?
- Não!
- Estás vendo? Estamos um a zero, concordas?
- Não queira justificar esse vício dentro de preceitos saudáveis de vida. Isso é uma terrível droga.
- E quem te falou que eu quero justificar nada? Tu me viste e indagaste. Eu estou apenas respondendo à tua pergunta.
O filósofo chegou à exaustão e não conseguiu convencer o bêbado de que devia acabar com o vício. Não achou mais argumentos para lhe mostrar o outro caminho da vida.
Passados dez anos, o bêbado teve que ser levado às pressas para o pequenino hospital da cidadela onde morava. Chegando lá foi logo atendido. Era conhecido e querido pela população. Fizeram-lhe glicose endovenosamente e em seguida o liberaram. Ao sair, deu de cara com o filósofo que entrava agonizante no hospital.
- Que houve contigo, seu filósofo?
- Bebi demais sem saber e quase morri.
- E por que bebeste? Não és contrário a quem tem esse vício?
- Sou, mas desde aquele dia em que não te convenci a deixar a bebida, iniciei o meu vício. Quis saber o que achavas na vida, mais do que eu na minha lucidez.
- E então, o que te sucedeu?
- Cada vez que bebi, perdi-me um pouco de mim mesmo e da vida. Os caminhos, as estrelas continuam as mesmas. Eu, que mudei a marcha para passos sempre mais largos, não me fiz caber neles. Competi com os automóveis da rua e trombei com um deles.
- Mas, filósofo, pra tudo na vida é preciso jeito. Até para beber. Eu não bebo para andar, só ando para achar a bebida. Aí, me sento, ponho-me a beber e os outros me levam quando já estou caindo.
- Mas eu não sabia de nada disso, ó meu colega. Bebi e derrubaram-me.
- É uma pena! Quero dizer-te que até para embreagar-se é preciso conhecimento, tá?
- Eu não quero mais beber, nunca!
- Então tudo bem. Vá filosofar. Qualquer hora dessas a gente se encontra de novo.
Passaram-se mais dez anos e eles se encontraram no mesmo local. O bêbado teve seus sintomas resolvidos com a mesma conduta de antes. O filósofo, esse tinha sua saúde exageradamente comprometida. Ao tentar largar o vício, provou de vários medicamentos, na sua maioria drogas pesadas e começou a dar-se mal.
Agora, nem o vício nem a vida. O bêbado olhou-o demoradamente e sorriu. O filósofo, acanhado e triste, disse-lhe:
- O pior do teu vício eu não consegui reproduzir.
- E o que foi pior?
- Teu egoísmo indigno!
- Egoísmo? Não te entendo!
- Pois saibas: era tua obrigação me ensinar a conviver com ele e aí eu não teria chegado a tanto.
- Mas, seu filósofo, eu nem sabia que teu filosofar era falso.
- Falso, por quê?
- Porque filosofaste para me convencer a deixá-lo. Eu não aceitei, continuei no barco e vivendo do mesmo jeito. Tu te acabaste. E isso é egoísmo?
- Eu não sei é mais nada. Quero morrer! Que tu te danes com o álcool!
- Nós vamos nos danar é para algum lugar alegre que nos queira bem. Doutor filósofo, cada macaco no seu galho e cada embriaguês na cabeça escolhida apropriadamente, ouviu? Tua filosofia é bem pior que a vida que tive outrora: só me trouxe desequilíbrio e artificialidade. Deixa-me filosofar com meu copo cheio.
Dois meses após aquele encontro, o bêbado foi ao velório do filósofo e chorou a sua morte, sorrindo fartamente. Estava ébrio e o outro, frio, representando o mais objetivo significado dos que filosofam ou não na vida, cheia ou vazia de álcool. Uns lúcidos, outros ébrios, mas todos dentro da real mortalidade da carne a qual se faz profundamente inocente, não lhe importando se com filosofia ou bebida.
O bêbado tragou do seu mal e viveu muitos anos. Ainda ontem arrastaram-lhe do boteco do mercado.
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