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Contos-->No meio da noite (*) -- 20/07/2007 - 15:32 (Jacques Levin) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Violete permaneceu no mesmo endereço nos últimos trinta anos, no início, um apartamento comunitário, na rua Barão da Torre, em Ipanema, um pouco longe da praia. Assistira à interminável troca da população flutuante da sua comunidade, até que, por fim, restou apenas ela. Podia se lembrar de quase todos os rostos, mas tinha predileção por João, um estudante caladão, com vagas pretensões artísticas.

Ipanema não era tão famosa naquela época e a própria garota de Ipanema, adolescente, andava pelas ruas, sem medo de passar pela boca da escadaria do morro do Pavão. Naquele tempo, os cariocas tinham mais medo da polícia do que dos bandidos. Era 1964. Agora, tanto faz, polícia ou bandido dão medo, a garota de Ipanema já envelheceu, já virou música de elevador.

João havia entrado em profunda depressão após o golpe militar; todos os seus caminhos pareciam desmoronar; envolveu-se com um grupo de estudantes com a idéia maluca de ir para a Bolívia, encontrar o Che. De repente, desapareceu.

E ela passou a pensar nele quase todos os dias, não o João que conhecera, calado e deprimido, com quem mal conversara, mas uma espécie de herói, de campeão, de libertador das Américas que, montado em seu cavalo branco, espalharia a justiça por onde passasse. Planejava encontros furtivos com ele, nos intervalos de suas refregas. Passou vinte anos com essas fantasias na cabeça. Nos momentos difíceis da vida, murmurava, para si:
- Aí, João, segura na minha mão!

Mas só, sempre só, Violete organizou a sua vida e se transformou em mulher profissionalmente bem sucedida; permaneceu no mesmo apartamento da rua Barão da Torre, agora como proprietária. Se João voltasse, a encontraria ali, fiel como Penélope.

Um dia, na hora do almoço, próximo ao Mercado das Flores, no centro da cidade, deu de cara com ele... Que susto! Sentiu uma pontada no coração, quando o reconheceu, apesar da barba, da roupa amassada e de um violão que carregava nas costas.

-Você não é João, que morava em Ipanema?

João se apavorou; pensou que ela fosse da polícia política. Depois, reconheceu Violete, que não via há vinte anos, por trás da roupa sóbria de executiva.
Violete o levou para casa; cuidou dele como se fosse um bibelô. Viveram momentos de intenso amor. Depois, mais amor. Depois, mais amor ainda, como se tivessem pressa em usufruir a intimidade adiada por tanto tempo. Passavam as tardes na cama, ela contabilizando as suas cicatrizes, cuja origem ele se recusou a revelar, limitando-se a acariciar a sua barriga lisa e macia.

Até que, após alguns meses, Violete descobriu que não queria mais. Seu apartamento, antes um brinco, estava um lixo, com tocos de cigarros espalhados, roupas sujas, papéis e livros empilhados por todos os cantos e um violão rolando por cima das poltronas. E João com a vida que pediu a Deus. Acordava às onze horas, bebia umas doses antes do almoço, dormia até o meio da tarde e de noite saía, ou ficava lendo até altas horas. Não havia desempenho sexual que compensasse a chateação. De mais a mais, já estava meio enjoada de todo esse ardor juvenil, de sexo todos os dias, o que tanto a havia deslumbrado no início. Agora, estava começando a achar que não precisava ser todo o dia. Umas duas vezes por semana, já estava bom. Ou uma. Ou de quinze em quinze dias...

A empregada reclamava da sujeira e do desleixo dele. Logo depois se demitia. Quando uma empregada não reclamou, achou que os dois estavam tendo um caso. Era uma mulher jovem e bonita. Morria de raiva, no escritório, imaginando os dois na cama, com o dia inteirinho disponível. Aí ela é quem despediu a empregada. Mulherzinha impertinente! Não fui com a sua cara!

- João, meu filho, assim não dá. Não faz bagunça. estamos sem empregada. Toma um dinheirinho e vai almoçar na rua, que hoje não tem comida em casa.

Sabia que seria pior, voltaria tarde da noite, teria sorte se não trouxesse um grupo de músicos para casa, para vir acabar com a sua noite.

- Essa aqui é Violete, a minha amada. Eu amo essa gordinha - apresentava-a, com ela morrendo de vergonha - e aí, Violete será que temos umas feijoadas em lata?

- Meu filho, você aparece aqui uma hora da manhã e quer comer feijoada! Vê se te enxerga. Vai levando essa corja daqui, e rápido, que amanhã eu tenho que trabalhar!

- Olha aí, pessoal, sujou. Vamos lá pra rádio, para o programa do Adelzon.

No dia seguinte, se reencontrariam, ele jurando amor, ela doida por seus carinhos, se arrepiando à toa.

Sabia que o momento estava chegando. Tinha uma vida sólida e regrada antes de trazê-lo para casa. Queria a sua vida de volta, a vida que havia construído, sem sobressaltos. Mas ela gostava de ter um homem em casa; se conseguisse treinar João para virar um cara sério! Pensou que conseguiria. Podia até se eleger deputado federal, como outros ex-perseguidos políticos! Mas ele era incorrigível. No lugar de se meter na política com perseverança, descambara para um misticismo oriental que explicava quase todos os mistérios do universo. Flutuava entre a inação e a cachaçada, entre a filosofia existencialista e a prática da meditação, entre o arroz integral e a feijoada em lata.. Ridículo, ele nu, de óculos escuros, com as pernas enroladas no banheiro, em meditação. E depois tem o mantra, ommmmmm, vibrando nas paredes. E o imbecil ainda interrompia o mantra para dar uma tragada no cigarro! Depois soprava o ommmm, junto com a fumaça.

- Ô João, toalha não é pra deixar no chão, não. Vai levantando daí! e não joga cinza no chão!

Ele percorria a casa nu, entoando o mantra. Depois ficava em silêncio, na cama. Quando Violete olhava, curiosa; era bote na certa. Levava ela para a cama. E aí, mais uma tarde inteira dedicada ao amor.

Agora não tem mais jeito. Vou ter que resolver, e vai ser hoje. Que coisa difícil é romper; às vezes quero, às vezes não quero. João dormia e ela o olhava; quantas marcas, quantos arranhões. Quem diria que o seu amor da juventude se converteria naquilo: um bobo alegre. Deitado a seu lado, um corpo sofrido e com cicatrizes, os pés com calos, as mãos grossas, Ah!, vou ficar mais um pouquinho com ele.

Quando acordasse falaria. E falou, abriu seu coração, chorou, se arrependeu, o abraçou, para voltar a afirmar a sua decisão: queria a separação.

Ele acendeu um cigarro e disse:
- Puxa, Violete, como tu me entendes, é exatamente o que eu queria, mas não tinha coragem de falar...

O que aconteceu depois foi uma tragédia; completou o movimento com uma frase que liquidava com qualquer possibilidade de reconciliação:
- Estou mesmo querendo ter uns filhos, como todo mundo, ter uma família normal.

Violete explodiu num choro incontido; então o cretino queria ter filhos; e para isso ela não servia, para isso era uma velha....
- Você não acha que é muito tarde? Você não é nenhum garotinho. E além disso, nem consegue ganhar a vida. Vai botar mais uns miseráveis no mundo. E depois abandonar? - com uma pontinha de ciúmes, perguntou - aonde você vai arrumar uma mulher para lhe agüentar?

Tantas vezes pensou em acabar e nada aconteceu. Agora era parecia sério, e mesmo em lágrimas, achou que não tinha mais o direito de retê-lo e desviá-lo de seu destino; talvez fosse bom e saudável que ele tivesse filhos, pensou, enquanto ela permaneceria com a imagem do herói, uma imagem cada vez mais pálida e desfocada, e que acabaria por se apagar com o tempo. Como uma barragem que cede, corroída por formigas, como um fogo que já queimou, a situação se resolvia naturalmente; porque todas as possibilidades foram esgotadas.

João, no meio da noite, se preparou para sair.
- Não precisa ir agora. Pode dormir aqui. Vai amanhã.
Mas ele preferiu ir. Quando o elevador chegou, ela ainda encontrou forças para dizer, docemente:
- Qualquer coisa, me ligue.

Fim.

(*)Este conto apresenta alguns personagens do romance inédito "Aqueles que devem morrer".





Jacques Levin
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