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Contos-->MOLEQUE DE RUA -- 05/03/2001 - 11:18 (Mario Jacoud) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
As manhãs eram dedicadas à escola, mais por força do que por gosto, mas as tardes eram para o futebol, a pipa, o pião, bolinha de gude, jogo de taco, caçada de rãs e o que mais fosse inventado se o dia não fosse tão curto. Longo para os velhos, curto para ele, ah se o relógio tivesse mais horas. À noite era surra, a mãe carrancuda esperando na porta de casa, o castigo para o moleque de rua, banho, que era outro castigo, e janta. Na cama, enquanto brigava com o sono, punha o corpo para passear, por outras casas, com quarto só dele, televisão, mesa farta onde pudesse comer até matar a fome, com sobremesa, uma irmã mais velha e loira, passeio de mãos dadas com os pais. Casas que conhecia dos cinemas, o malabarista passando pelo porteiro e sentando na primeira fila, olhos bem abertos como se quisesse entrar na tela e falar aquela língua estranha. Depois dormia, moleque de rua também é anjo, ao menos dentro dele, lá dentro, quando o pensamento parece brotar não da cabeça, mas de algum lugar que não se sabe, pode ser do peito, do estômago, ou até do umbigo.
Tinha um vício ao andar, chutava latas, tampinhas de garrafas, pedras, qualquer coisa que pudesse ser imaginada como uma bola. Até desviava o caminho, quando em dia de azar os objetos escasseavam. Ele procurava, zig-zag na rua sem asfalto, e sempre achava. O chute não era ao acaso, sempre tinha um destino certo. Julgava-se um especialista, e era, vibrava feliz quando a pedra acertava a perna do alvo. Depois corria, a surra diária estava garantida.
Aos quatorze anos a vida muda. Quando a comida quase desaparece do prato, a vida muda. Tudo muda quando o pai está desempregado. Quando muda o porteiro do cinema é preciso dinheiro para a entrada. Aquelas casas da tela só servem para esperar o sono chegar, as famílias dos filmes não existem. Talvez existam, lá longe, onde se fala a língua estranha que toca no rádio e que aparece em cartazes impossíveis de se ler. Ele resolve que existem sim, naquele lugar onde crianças não precisam de dinheiro, onde gostam de ir à escola, as professoras são bonitas e os meninos tem uma irmã mais velha, bem branquinha.. Nunca viu, nos filmes, uma criança apanhar. Mas tanto faz, agora não apanha mais. Adulto não apanha. Quando a vida mudou, o menino passou de criança a adulto, adolescência é coisa daqueles moços do cinema, das histórias em quadrinhos, daquelas famílias do bairro perto do estádio de futebol. Naquele bairro diferente, onde foi uma vez, quando precisou de médico. Lá não achou nada para chutar. Não entendia como um menino pudesse morar ali, sem ter uma única tampinha de garrafa para chutar, as ruas de asfalto sem jogo de taco, sem futebol, sem pião, sem brincadeira. Nem pensar em caçar rã. As ruas sem crianças. Não viu uma só mãe carrancuda esperando o filho no portão.
Alguém deu um jeito dele estudar à noite. Outro alguém levou-o até um lugar onde um funcionário mal educado entregou uma carteira de trabalho, estava escrito: carteira de trabalho de menor. Não entendia como um adulto pudesse ter uma carteira de trabalho de menor. Só foi saber quando recebeu o primeiro salário. Salário de menor, bem diferente do salário de adulto. O pai conseguiu que o espanhol da fábrica de sapatos o empregasse. Só havia adultos trabalhando para o Seu Espanhol, mas um favor devido ao pai seria pago. O homem deu o emprego e avisou: na primeira molecagem iria para a rua. Passou a dormir e acordar cansado. O trabalho na fabriqueta era difícil, sentado durante horas pregando solas de sapatos. Os pequenos pregos esperavam presos entre os dentes, era assim que os outros faziam, era assim que o menino deveria fazer. Logo ganhou a simpatia dos mais velhos, o alvo das brincadeiras. A escola noturna era bem diferente. Os estudantes chegavam cansados do trabalho e quase nada conversavam, exceto Farmácia que todas as noites o assediava, oferecendo drogas e até querendo contrata-lo para auxiliar no “serviço”, com salário de adulto e outras regalias. Farmácia era bom, até o levava para casa após a aula, sentia-se bem no carro bonito, música tocando alto e o amigo contando que ganhara esse apelido porque vendia remédios para todos os males. Era bom ouvir confidências, sinal de confiança.
Aos sábados, jogava futebol, chutava bola de verdade. As pedras, latas e tampinhas pareciam um passado bem longe, brincadeira de criança. Era adulto, e adulto chuta bola para valer. E sente orgulho quando paga a entrada do cinema, quando olha as pernas das moças e quando sente algo estranho, como uma coceira, um formigamento, algo quente, dormente, gostoso. Farmácia disse que isso era coisa de homem e, quando o menino completou quinze anos, jogou-o na cama de uma zinha. Teve medo, tremeu e cresceu, mas agora sim era um homem verdadeiro, como o pai, igual Seu Espanhol e os colegas da fábrica. Bom amigo esse Farmácia, tão bom que já não oferecia drogas, sinal de respeito, só insistia no emprego. Queria um ajudante para as entregas, chamava de secretário, até já ensinara o menino a dirigir. Aconselhava a deixar o emprego no Seu Espanhol. Que o gringo enfiasse o salário de fome onde bem entendesse. O menino resolveu e, juntos, escreveram a cena.
Tião, o empregado que mais gostava de brincar com o menino, dava-lhe tapas nas costas. Queria que o menino cerrasse os dentes para não engolir os pregos, brincadeira perigosa que ele já conhecia bem e acostumara. No primeiro tapa do dia, o menino joga-se à frente, quase ao chão, as mãos cobrindo a boca. Fingia estar engasgado com os pregos. Muitos tapas nas costas, a cabeça baixa, Seu Espanhol numa tentativa desesperada de ver os pregos cuspidos. Levou o menino ao hospital. Quinze dias por conta da previdência e mais quinze por conta da firma, Tião despedido e o menino tratado como doente, comendo do bom e, depois de se encher, correndo ao banheiro, fingindo vomito. Depois da aventura, um mês de férias, foi despedido, o espanhol não era flor que se cheirasse.
Agora, as manhãs serviam para procurar emprego, carteira de menor na mão, sem carta de referência, Seu Espanhol não perdoava, homem de sangue ruim esse gringo. Passou aos bicos, ajudando um ambulante lá pelas ruas do centro da cidade, dinheiro pouco, mas certo. Parte ia para a mãe, para a casa. Parte ia para o pai se embriagar nos botecos do bairro, coisa de entristecer o menino, um homem cheio de vontade, de gana, agora era um trapo, era chamado de Boca de Litro, apelido que doía nos ouvidos do menino. Tinha pena do pai, não queria terminar como ele. Nem gostava de apelido, esbravejava quando o chamavam de Moleque do Farmácia. A carteira sem assinar e o dinheiro rareando, o amigo pronto a ajudar, oferecendo o emprego de sempre. Não gostava de apelido. Mas já que era conhecido assim, que assim fosse, largou os bicos e aceitou o emprego. Secretário do Farmácia. O Moleque do Farmácia.
Salário de adulto, dezesseis anos, alto, forte, barba e outras regalias. Incluia um carro sem documentos, porque com dezesseis nem carta podia tirar. O patrão garantia, conhecia os tiras, tinha dinheiro, mandava em muita gente no bairro, era conhecido e respeitado. O menino não sabia se Farmácia era respeitado ou temido, mas pouco importava, era seu amigo e isso bastava. Seguisse as ordens e acatasse os conselhos e iria se dar bem. Um conselho e, ao mesmo tempo, uma ordem, era não usar os “remédios”, vender e entregar sim, usar jamais. Ganhou arma e aprendeu a atirar, apenas para defesa contra qualquer ladrão, a cidade cheia deles, uns otários. Quem iria se meter com o Moleque do Farmácia? Nem os donos dos botecos onde o pai bebia e não pagava. Algumas vezes o menino quis pagar, ninguém aceitou, tudo por camaradagem. Boa gente aquela do bairro, de bom sangue, até Seu Espanhol não passava por ele sem um cumprimento, o gringo até tirava o eterno chapéu e perguntava do pai. E pelo nome! Ousasse chamar o velho de Boca de Litro, gringo ladrão!
Os negócios iam bem, cada vez mais dinheiro sobrando nos bolsos. Dois anos trabalhando duro, rodando por toda a cidade, fazendo entregas, recebendo, buscando mercadorias. Jogou no lixo a carteira de trabalho de menor. Tinha carta de motorista, estava escrito: Carteira Nacional de Habilitação, um carro novo e mais regalias. Incluía uns fregueses próprios, coisa que Farmácia fazia não saber. O patrão ganhava muito dinheiro com o trabalho do secretário. O menino sabia que o negócio prosperava. Um dia por semana, ia até uma certa casa, levava um pacote de dinheiro, cada vez maior e mais pesado. Recebia um embrulho, muitas vezes dois, acomodados em sacolas de plástico de supermercado. Nesses dias não podia parar em lugar algum, conselho e ordem de Farmácia.
A certa casa ficava no bairro limpo, onde foi uma vez quando precisou de médico. Mansões antigas contrastavam com edifícios novos, tudo muito limpo e claro. Dirigia devagar, outra ordem do patrão, olhando os prédios, as casas e os seguranças. Não via uma pedra no chão de asfalto, se quisesse uma para chutar iria passar vontade. As muitas árvores não derramavam uma única folha nas calçadas. Deduziu que isso era impossível, descobriu que mal caia uma folha e já era varrida e recolhida por alguém com uniforme da prefeitura, debaixo do olhar sério de algum segurança. Anônimos, desconhecidos, senão tirariam o boné à sua passagem, acenariam em direção ao carro, todos orgulhosos por serem conhecidos do Menino da Vila. O homem que atendia o interfone da casa o chamava assim, e ele gostou do apelido, bem melhor que o anterior. Fez com que o pessoal do bairro acatasse o novo apelido, tinha uma sensação gostosa de não ser mais o Moleque do Farmácia, de não pertencer a ninguém. Queria, sim, pertencer ao bairro onde cresceu, onde era conhecido e respeitado. Não sabia se era respeitado ou temido. Tanto faz, gostava de ser o Menino da Vila e isso bastava.
A casa tinha muros altíssimos e um portão só, de ferro e também muito alto. Tudo dava a impressão de ser intransponível. Quando o interfone respondia, ele dizia ser o menino e o portão se abria. Parecia se abrir ao comando de sua voz reconhecida. Entrava com o carro e o portão se fechava, dirigia alguns metros por uma ladeira de asfalto entre grama e árvores, não via uma folha no chão, uma pedra sequer para chutar, uma curva para a direita, esquerda e parava em frente à porta principal. Sempre o mesmo homem a recebe-lo, o que o chamava pelo apelido gostoso, entrava e sentava no sofá da sala grande, olhava os quadros nas paredes brancas, o lustre que, de tão grande parecia querer se desgrudar do teto. O homem voltava e o levava até o escritório, onde outro o esperava atrás de uma mesa de vidro grosso, parecia ser o chefe, o comandante. Cumprimentava e entregava o pacote de dinheiro. O chefe conferia pacientemente e dava o sinal ao empregado, este saia e voltava com o embrulho enfiado no saco, Menino da Vila se despedia e retornava ao seu bairro.
Nesses dias, Farmácia ficava impaciente, nervoso, não suportava atrasos, mas sorria quando ele chegava com o saco de supermercado, depois conferia a mercadoria e enviava o menino às entregas. Bom amigo, esse Farmácia. Pena que anda meio que doente, magro, o rosto era gordo, liso, agora tem duas covas profundas, a boca no meio delas, os olhos estão vermelhos e afundaram nas olheiras, as mãos tremem, some alguns dias nos braços da zinha, quando volta nada fala, nada pergunta. Terá remédio para essa doença?
O homem da mesa de vidro passou a reclamar com o menino, falta dinheiro, uma, duas, tres vezes, fale com Farmácia. Falava e não tinha resposta, o amigo afundado nas covas e olheiras. Na quarta vez, o homem contou o dinheiro, pediu a chave do carro e o menino entregou. Vai ficar aqui, dois dias, a chave do quarto, não vai sair nem telefonar. Dois dias, duas longas noites de insônia, o medo vem lá de dentro, não sabe de onde, não tem medo há muito tempo. Desde que é adulto não treme, não chora.
O homem manda chama-lo no quarto. Os olhos vivos atrás da mesa de vidro. O chefe estende as chaves do carro, não são as suas, ele reconhece o chaveiro. Sobre a mesa um recorte de jornal, mais um morto na guerra do tráfico, a foto do amigo. O empregado entrega o pacote, prestar contas toda semana. Se precisar, telefone. Quando sai há outro carro, não o seu, é de Farmácia. Liga o carro e volta ao bairro, um sentimento de alívio. Dirige devagar nas ruas limpas e claras. Não vê uma folha no chão. Nenhuma pedra para chutar. Mas quem quer chutar pedras? Esta noite vai dormir profundamente, sonhar com outras casas, casas que só tem no cinema. Vai dormir feito um anjo. Moleque de rua também é anjo, ao menos dentro dele, lá dentro, quando o pensamento parece brotar não se sabe de onde.
Mário Jacoud












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