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Contos-->Uma vida com Zazá -- 24/06/2007 - 12:58 (Jacques Levin) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Aprendi com meu avô a fazer escolhas erradas. Veio para o Brasil quando deveria ter ido para Nova Iorque; comprou um terreno em Nilópolis, quando deveria ter comprado um areal em Copacabana. Se tivesse ido para Nova Iorque, acho que eu não teria nascido. Não conheceria a minha avó, aquela brava baixinha rigorosa que sabia preparar a ceia da Páscoa, minha mãe não teria nascido, nem meus tios, o mundo não conheceria o esplendor da nossa família. Se minha mãe não tivesse nascido, eu muito menos. Em algum lugar do espaço, na América, nasceria alguém exatamente igual a mim. Mas não seria eu. Seria o meu ..., o meu ..., acho que me falta a palavra, o meu dracba

Acabei de inventar uma palavra para designar uma pessoa que tem a minha personalidade, a minha problemática, mas que não sou eu e que nunca existiu, porque as viradas da vida não o permitiram, mas bem poderia ter existido. Se tivesse comprado umas dunas em Copacabana, acho que o meu dracba que estaria escrevendo sobre mim...., eu seria rico e famoso, um playboy que nunca trabalhou na vida.

Estou agora percebendo de onde saiu a palavra dracba. No início, pensei em dracma, mas dracma é uma moeda turca, egípcia, grega, sei lá. Então dei uma pequena mudada no final e ficou dracba. Logo, é uma referência a grana e ao oriente. Depois, pensei que o início da palavra lembra drácula; o meu dracba é alguém que sorve o meu sangue e a minha energia, alguém que não me deixa viver, que me prende com essa idéia do que poderia ser mas não fui.

Estou vendo o maldito dracba sentado ao meu lado, com o seu grosso sobretudo adequado ao frio nova-iorquino, fumando um charuto havana, e gozando o merecido sucesso de autor teatral bem sucedido da Broadway; êle, uma espécie de Neil Simon, mas mais bonito, mais bonito também que o Alan Greenspun, o sósia financeiro do Neil Simon, mas igualmente homem de sucesso, talvez até maior, o homem do banco central, da nação central do mundo.

Ah!, se meu avô tivesse comprado aquele terreno em Copacabana! Posso vê-lo inspecionando o local e concluindo: “Mas isso aqui é um areal, não vale nada”. Melhor seria comprar o bondinho do Pão de Açúcar do que um matagal em Nilópolis!.

Viu, Neil, como a sua vida foi melhor! Alias, Neil não, o nome do dracba é outro. Vou chamá-lo de Kirk, como o Kirk Douglas. Viu, Kirk, como a sua vida foi melhor, teria sido melhor, se o nosso avô tivesse ido para Nova Iorque? Mas não foi. Acho que foi um excesso de cotas; naqueles anos muitos foram os imigrantes vindos dos cafundós das Rússias, a prisão das nacionalidades. Então ele não pôde ir para Nova Iorque. Ótimo, porque eu não gosto de frio. Em compensação, também não foi para a Argentina! Já pensou, eu nesta hora estaria pensando em castelhano e adorando Carlos Gardel, no lugar do Chico Alves!

Obrigado, obrigado meu avô, por não me ter transformado num argentino, e não ter que torcer pelo Maradona e o Batistuta! De alguma forma eu o desculpo por não ter comprado o terreno em Copacabana. Não havia condução, o bonde ia até o Leme, o resto era um areal, albergue dos piores bandidos. Muito carrapicho, vento na cara, clima ruim, mosquitos, febre amarela, malária, dengue, falta de água, falta de esgoto, tudo conspirava contra Copacabana, que só os visionários enxergavam. E meu avô não era um visionário, era um homem prático; então, faz muito sentido, Nilópolis, terra firme, que não escorre como areia numa ampulheta, base sólida sobre a qual se pode construir com segurança e que não desabará como um castelo de cartas, como aquelas torres gêmeas de Nova Iorque.

Imagino o meu dracba soterrado debaixo de milhões de toneladas de escombros, a fumaça negra no ar. Ou então, suas peças teatrais fracassaram, e ele está desempregado, abandonado pela família, na solidão das ruas frias de Nova Iorque. É isso aí, Kirk, tivestes a fortuna, agora tens que enfrentar o fracasso, os EUA não são mais um lugar de futuro. Depois, o meu dracba me descobre e quer vir morar comigo, em Nilópolis. Aqui pelo menos ninguém morre de frio. Viu como meu avô era um homem de visão!

Pode vir, Kirk, vou te botar tomando conta do meu terreno, como caseiro. Vamos plantar mandioca, tomate e alface. De manhãzinha, ordenhar as vacas. De tarde, comer jabuticaba, manga e pitanga. De noite, fumar uns cigarros de palha, para espantar os mosquitos, e assistir ao grande espetáculo das lagartixas caçando mariposas. Assim, tinha eu o meu terreno, como reserva de vida, da simples e boa vida natural, como foi desde o início dos tempos, quando eu passasse a ter, como tantos outros, direito a um pouco de felicidade, no futuro.

Sim, porque estou vendo, a água do mundo acabando, a comida do mundo acabando, os homens transformados em animais sanguinários disputando entre si nacos de carne; então, eu vou é me embora para Nilópolis, esperando que lá eu possa plantar a minha comida e descobrir uma mina de água perene.

Enfim aguardava apenas a aposentadoria minguada para me internar definitivamente no mato, e nem isso eu consegui: fui demitido, depois de vinte e cinco anos de trabalho; redução de custos, disseram com um tapinha nas costas e um chute na bunda.

Bem, agora não tem mais desculpas; iria, mas primeiro tinha que convencer a minha patroa, a Zazá; e ela botou areia. É engraçado como as mulheres não gostam mesmo de viver no mato; querem é o conforto da cidade.

Eu disse pra Zazá tudo o que ia acontecer nos próximos anos, o problema da água, a poluição, o custo de vida... E nada, a mulher permanecia inamovível!

Ela disse; “Mas, José, você nunca pegou numa enxada na vida, como é que agora vai arrancar do chão o seu sustento? Não seja ridículo, está parecendo o major Policarpo Quaresma!”

Bem, vou esperar mais um pouco; a primeira bala perdida que entrar pela janela, e varar o Buda de porcelana, o elefante de rabo grande, ou o São Jorge, que estão em cima do armário, eu volto à carga.

Havia ainda um argumento que eu não tinha usado: o amor. Olhei-a, sentada, quieta, costurando, com os óculos para perto. Então era ela, a mulher que havia despertado em mim a paixão há muitos anos. Um amor abrasador; depois, com o tempo, o grande fogo se reduziu, virou um foguinho, pequeno como chama piloto de aquecedor, que só acende quando abrimos a bica; depois, nem isso, o fogo apagou? Pretendia reconquistá-la.

Lembrei daquela música antiga, a “Minha palhoça”; era, mais ou menos a vida que eu vislumbrava, em Nilópolis, aquela rosa que cobre a banda da varanda, a passarada que, de madrugada, vem abençoar nossa união, a cascata que faz chuá-chuá... Botei o disco na vitrola, e dublei a interpretação do Joel, com chapéu de palha e tudo. Mas Zazá não se convenceu, continuou costurando, sem se abalar.

O meu dracba, o velho Kirk, que já havia passado por muitos casamentos e divórcios, o que é comum nos Estados Unidos, sugeriu que eu atacasse de Fred Astaire, com “Dancing in the dark”; “é muito mais romântico’, sussurrou ele no meu ouvido.

Zazá disse:” Meu filho, esse negócio de um amor e uma cabana está ultrapassado “. Pois, é, estava pensando seriamente, em largar a Zazá e ir-me embora sozinho. Depois, olhei aquela mulherzinha com quem eu havia vivido trinta e tantos anos, gasta pelo tempo, assim como eu. Olhei-a com ternura, afinal, ela me escolheu e aturou por tanto tempo. E decidi ficar. Ela ainda falou;” por que você não vende essa droga de terreno?“.

E foi o que eu fiz. Um terreno que não valia nada, agora, até que rendeu uns trocados, graças à sabedoria do meu avô. Permaneço no velho apartamento, no Catete. Às vezes, vou pescar nas pedras do Aterro, com o Kirk. Quase sempre conseguimos alguns carapicus, que Zazá reluta em preparar:” Nossa, você vai comer isso? Deve estar super envenenado!”.

Tenho que gostar da vida sem planos de futuro, agora sem o terreno de Nilópolis. Vou comprar uma caixa de Viagra, com certeza faz mal ao coração, tomar uma overdose, e morrer na cama, com Zazá, num gozo, num grande gozo sem fim.

Who can ask for anything more?, cantarolou Kirk aprovando.




# Referências.
O personagem fantasia sobre ser neto de imigrantes oriundos do império Russo.
O destino destes era Nova Iorque (inicio do século vinte)
Os filhos desses imigrantes foram muito bem sucedidos em Nova Iorque
Enquanto isso, cá no Brasil...
Os imigrantes sonharam em fundar um paraíso em Nilópolis, baixada fluminense, compraram propriedades ali ( décadas de 20 e 30 do século 20). Um fracasso!
O personagem recria a fantasia do paraíso rural, em Nilópolis.
Neil Simon, autor teatral da Broadway, filho de imigrantes.
Alan Greenspun, ex-presidente do FED, Federal Reserve (Banco Central Americano), filho de imigrantes.
Kirk Douglas, ator de filmes, ele próprio um imigrante oriundo da Rússia. Tinha porte atlético, sendo protagonista de Spartacus. Pai de Michael Douglas. (Kirk Douglas é pseudônimo)
“Minha Palhoça” samba de breque de J. Cascata e Leonel Azevedo, gravado em 1935 por Sylvio Caldas e imortalizado por Dilermando Pinheiro e seu chapéu de palha, e não Joel como o personagem erroneamente afirma.
Fred Astaire, cantor e dançarino. Não era imigrante russo, talvez inglês.
“Dancing in the dark” música romântica de Irving Berlin, outro imigrante russo.
“Who can ask for anything more”, verso célebre de canção de George e Ira Gershwin, filhos de imigrantes russos, expoentes maiores da música norte americana.
Catete, bairro do Rio de Janeiro. Já foi elegante, hoje decadente.
Aterro, o aterro do Flamengo, construído na década de 60, com o desmonte do Morro de Santo Antonio, e abertura da Av. Chile, no centro da cidade.

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