A cadelinha do apartamento de baixo latia alto, solidária à mulher do prédio vizinho, que berrava impropérios a um homem, pelo que se depreendia. Estremeci. Nem tanto pelo barulho, que pegou o sábado ainda espreguiçando-se na cama, mas pelo sofrimento que brotava daquele monólogo lancinante.
Fiquei conjeturando. Pelas palavras e horário, só poderiam vir de alguém que via ultrajados seus valores mais caros. Lembrei-me do carro que pouco antes buscara vaga de estacionamento entre nossos blocos. Bem que o motorista poderia ser um dos personagens do drama que rematava uma noite de farra para ele e de angústia e impotência para ela.
Sem nada ver, acompanhei a cena. Lá estava a mulher, em pé no centro da sala de mobília simples, iluminada pela difusa luz do alvorecer. Roupas abandonadas pela graça cobriam integralmente o corpo alquebrado. O cabelo em desalinho caía por sobre os olhos desesperados, carentes. As mãos crispadas acompanhavam com gestos bruscos a fala que se repetia, desconexa, subindo uma oitava a cada fólego tomado. As veias do pescoço saltavam, denunciando o descontrolado batimento cardíaco. Sua figura era a personificação da mescla paradoxal do ódio com o clamor por atenção.
Ela gritou até que as forças lhe abandonaram o corpo. Então, desabou no sofá, erguendo o olhar para o impassível objeto da sua perdição. Dele não se ouviu um ai. O que estaria passando por sua cabeça ? Talvez maldissesse o dia que se ligara à quela destemperada criatura. Ou, quem sabe, maquinava estratégias mirabolantes para manter a esbórnia e esquivar-se daquele desfecho dantesco.
O silêncio se prolongou. Apurei o ouvido. Nada. Divaguei, tentando imaginar quantas mulheres passarão por esse dissabor, diariamente. Lembrei-me dos crescentes índices de contaminação por Aids em casadas. As razões que compelem os homens a traírem suas companheiras me são um mistério. O som da sirene arrancou-me de meus devaneios. Cheguei à janela a tempo de ver as costas dos dois policiais que entravam no bloco vizinho.