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Contos-->Trambolho -- 08/04/2007 - 20:38 (Janete Santos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos




Minha cova é rasa
meu lamento é mudo
seu amor me arrasa
sua ausência é tudo
Cacaso



Parece que só naquele momento percebera o exagero. O quadro enorme parecia aumentar suas proporções, na medida em que se denunciava a tarefa ingrata do transporte.
Não se tratava obviamente de uma obra de arte, no sentido que se atribui a objetos dotadas de qualidades estéticas, ainda que não se saiba ao certo como precisar isso. E era grande. Difícil.

Subiu. Sumiu lá dentro do ônibus, levando-o consigo. Voltou, instantes depois. Tentou ajeitar no bagageiro, cada vez mais entupido de malas e caixas, mudanças completas de quem parte com a casa às costas. Gente pra tanto lugar.

Uma pequena multidão assomava à porta do ônibus. Uma criancinha chorava, cansada possivelmente pelo avançado da hora. E as horas avançam mais céleres quando quem se ama vai embora. Tantos atrasos nessa Belém-Brasília. Linha reta cortando a imensidão de uma imagem que se multiplica idêntica por quilômetros de mesmas curvas, mesma vegetação e mesma solidão de poucas cidades. Certamente muitas incertezas a espichar a estrada, a torcê-la para que nunca se saiba a que horas mesmo é que se parte. O momento único da despedida tantas vezes anunciada e prometida tornado ocorrência comum e pouco grave entre gestos banais de compra de passagens, preenchimento de dados, solicitação de informações, hora marcada que jamais se cumpre na exatidão dos números.

Não coube. Retorna ao interior do ônibus, gastando seus últimos instantes na cidade em trabalho aparentemente insano. Novamente não foi possível ajeitá-lo, como ela novamente constata.

Não se tratava de obra de arte. Se o fosse reconheceriam-no nas pinceladas, na combinação de cores, claros e escuros, linhas e formas? Mas ninguém parece ver senão a si mesmo e aos seus pertences. E aos seus que ficam ou vão.

Sem qualquer proteção, ei-lo à vista, mas indiferente a todos, mais um objeto entre tantos a buscar seu lugar no mundo. Descia e subia os degraus, em sucessivas tentativas do amigo.

Pintura grosseiramente acabada, cores quentes, uma forma humana escura revela os contornos de um sujeito que caminha contra o sol, carregando às costas uma sela de cavalo, este um pouco mais adiante. Os dois, uma árvore, imagens na imensidão na tela.

Escolhera-o às pressas, presente de natal, ele gostava de pintura, não tinha um quadro. Pretexto para declarar em volume e linguagem alheia o sentimento que não encontrava expressão na superfície das palavras.

A cada tentativa ela se arrependia do gesto. Percebera que era meio a lhe impor sua presença, como se de algum modo o obrigasse a levá-la junto, com seus exageros, seu corpo grande, espaçosa a não caber mais ao seu lado.

Uma tristeza enorme se confundia com o absurdo da situação provocada. Trambolho.

Um casal se despedia, a moça ajeitando as roupas do companheiro. Bota, camisa de seda vermelha, cinto de fivela larga, costeletas. Estava bonito para ela. Bonito partia. Nos bancos, rostos anônimos de quem parece ter perdido o rumo no abandono da rodoviária precária, lojinhas a distrair o olhar enquanto se espera. Partir e chegar. Entulhadas todas de pequenas lembranças, necessidades de viajantes. Sabonete pente camisetas panos de prato com barras de crochê óculos escuros cartas de baralho ursinho de pelúcia rosa. Vim a Araguaína e me lembrei de você.

A cada tentativa mal sucedida, maior o desconforto da mulher. Era necessário que partisse livre de todo peso, feliz já na primeira esquina, descansado de todos os trabalhos, adormecendo em esperança de dias melhores no novo emprego e cidade. O que havia de mais bonito senão o olhar do amado quando adormecido, o ressonar discreto, a respiração pouca, a leveza e a beleza dos traços de sua face?

Conheceram-se quando ela tentava transformar-se em menino. Cabelos curtos, pouco cuidado com as roupas, convicção de não amar novamente. Mas a amizade pôs aparência nos encantos ternos daquele homem. A casa dele simples, poemas na parede rude, colados sobre papel de presente. O cômodo único se iluminava de cores e arranjo de palavras que só mesmo poetas sabem produzir. Lavava e encerava o compartimento de piso vermelho, organizava criteriosamente os livros a um canto e, à menor distração, galinhas do pátio invadiam o minúsculo quarto para se colocarem curiosas sobre a cama, talvez fugindo ao calor excessivo do quintal ou ainda porque buscassem lugar mais bonito pra estar que à sombra da mangueira e os poleiros.

Por tanta teimosia, finalmente conseguiu pôr a tela no bagageiro, instalando-a verticalmente entre as muitas malas e trouxas. Dá-lhe um abraço e um beijo apressados e se afasta definitivamente.

A mulher novamente observa o outro casal que também se afasta. Não há perturbação na partida dele, seu homem bonito de camisa vermelha que agora sobe os degraus e acena alegre. Que ele voltava.


Luiza Helena O. da Silva

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