Tarde quente, como todas as tardes nessa região de cerrado. O café como pretexto para alongar ainda um pouco mais a conversa entrecortada de tantos silêncios. Lentidão de diálogo, falta de jeito com as palavras, tanto o que dizer interditado, tanto o que dizer sem saber como, sem dever dizer. A mulher pensava na necessidade de partir enquanto o amor excessivo a prendia, fazendo permanecer. Exagero sempre, a ponto de pôr tudo a perder, ainda que tudo já estivesse desde o início fadado à perda.
O homem ao lado jamais seria seu companheiro, mas a memória desses instantes seria companhia diária por longo tempo, eternidade dissolvida na multiplicidade dos dias e horas. Quando se deixa de contar os dias talvez se aproxime dessa experiência do que pode ser eterno, tão curta a vida pra saber o que pode ser isso.
A casa de poucos e precários móveis indicava a partida urgente. Nada havia que lembrasse sofisticação a não ser os muitos livros de filosofia cuidadosamente organizados no pequeno quarto ao lado. Estes seriam certamente os pertences de fato valiosos, todos a se juntar em caixas, tudo a levar com as mãos, nada que exigisse maior desperdício de tempo na hora de mudar-se. Fizesse chuva ou sol nesse dia, as mãos saberiam como proteger as caixas, ajeitando-as da melhor forma possível no bagageiro do ônibus. Como o fez.
Pouco a compartilhar com as palavras, os olhos acompanhavam o desenho da fumaça do cigarro, lentidão que se desfaz no ar em movimento sempre incerto, informe e imprevisível.
Porta aberta, um vendedor atinge a sala, oferecendo seu produto. Recuperação de fotografias, ampliações, retoques... Mostra os resultados do trabalho, imagens que parecem surgir de um tempo que jamais houve. Sem identificação, os rostos sugerem a perda de sua alma, sua história, convertidos em quadro, exemplos de técnica de reprodução para venda de porta em porta, de cidade em cidade, meses e meses à procura de compradores, árdua estratégia de ganhar a vida. O fundo vago, paisagem ausente, pose para o fotógrafo que lhes rouba esse instante. O resultado é triste.
Interrompida a conversa, atendem o peregrino das imagens. Este também parece ter toda a vida reduzida ao que traz à mão. O homem vai lá dentro buscar algumas das suas poucas fotos. As mãos de dedos curtos seguram fotografias de parentes que traz na carteira. Se a fotografia representa o corte, a interrupção, congelando o instante que jamais retorna, o amor reintroduz o movimento. As imagens passeiam pelas ruas, acompanham seus donos, dormem a seu lado nas rodoviárias, dividem consigo a solidão das esperas. Caminham, enquanto as cores vão fugindo à impressão do papel.
De toda a melancolia que pode ter vivido, esse momento permanece a sensibilizá-la, doendo ainda. O homem apresenta fotos da mãe. Uma delas, dividida em partes desiguais, alardeia a necessidade de guardar ainda que tão precária recordação. Lembra as histórias de sofrimento, a vida difícil que a mãe levara. Mas terríveis são os olhos da mulher, o pescoço magro e precocemente envelhecido, a dor que denuncia no pouco gosto em estar ali, frente à câmera, os efeitos corrosivos do cigarro, a morte antecipada. Índices de uma vida de prazer ausente.
As mãos que exibiam a imagem frágil dividiam com os interlocutores um segredo. Geralmente guarda-se a dor, dando mostra de bons dias e boas noites, já que não se pode dizer de fato o que o coração poderia declarar. Se pudesse. Como está prestes a deixar a cidade, não encomenda o serviço de restauração e ampliação, pronto dali a poucos meses. Retornam as fotos para a carteira, retorna o homem para seu trabalho debaixo do sol. Retorna a memória desses fatos, que não se sabe por que, a mulher retoma.
Luiza Helena, 30/03, 1o/04 de 2007.
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