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Artigos-->O dia em que Hegel foi embora e levou a História -- 28/10/2002 - 19:44 (Lindolpho Cademartori) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos








“ Partimos rumo à capital federal. Tão-logo chegamos, fomos à casa de Rafaela. Inspirando a mais crassa das relutâncias e a mais torpe das más vontades, a mãe nos recebeu. Disse a ela que realmente gostava da filha e que, ao que se afigurava, o sentimento era recíproco; insisti, ainda, na afirmação de que o nosso relacionamento não iria implicar em quaisquer problemas para ela. Atento, Hegel permanecia, em pé, à minha direita (muito embora eu tenda a crer que ninguém mais tenha notado sua presença...), a cochichar-me conselhos e a aplicar-me cascudos quando concluia que eu demonstrava insegurança.”





Rafaela falava sobre Lou Salomé e o espectro religioso na filosofia de Nietzsche enquanto eu divagava acerca de Brás Cubas em um hipopótamo pardo, esvoaçando as planícies de neve e a observar o tumulto dos impérios e a destruição recíproca de todas as coisas no epifânico cortejo dos séculos. Bem como o prodígio de Machado, tive eu medo de que as unhas vergastadas das Eras iradas premissem-me entre suas fendas e lançassem o meu pó sobre a eternidade indiferente do sono sem sonhos. Mas o meu temor foi bruscamente interrompido pela voz de Rafaela, ecoando um tanto longe, quando o telefone foi abruptamente arrancado-lhe das mãos por sua mãe. A respeitável senhora prosseguiu:

- Faça o favor de não mais telefonar à minha filha e tampouco de procurá-la; não é saudável que ela se relacione com alguém de Goiânia, enquanto pode perfeitamente conhecer um rapaz que viva aqui mesmo em Brasília. Não conheço a sua família, desconheço as suas intenções e não sei se você é uma pessoa de bem. Portanto, despeça-se dela de uma vez por todas e esqueça que ela existe. Não quero desconhecidos em companhia de minha filha.

Em um primeiro momento, contemplei-me na obrigação de discordar da mãe de Rafaela: se não é saudável que a filha se relacione com alguém de Goiânia, porquanto pode conhecer alguém que viva em Brasília, não compreendo como a família de Rafaela, integralmente composta de eleitores de Joaquim Roriz, político goiano e governador reeleito pelo Distrito Federal, não creia que alguém natural de Brasília seja mais apto a governar o ente federativo no qual desfrutam de diáfana e próspera existência. Rafaela, porém, explicou-me as razões pelas quais as convicções políticas de seus progenitores divergem das concepções de relacionamento; razões estas, que, com efeito, eu não irei aqui expor.

A mãe passou o telefone para Rafaela, e, a contragosto de sua mamãe, a filha demorou-se comigo ao telefone. Inquiri Rafaela a respeito das razões pelas quais a mãe não queria que ela mantivesse um relacionamento com um rapaz de Goiânia, em princípio especulei até mesmo acerca do estereótipo provinciano da cidade, mas, ao cabo, restei passivo e aceitei as explicações de Rafaela. Segundo esta – que, cumpre-me esclarecer, é (ou era) minha namorada -, sua mãe não vê com bons olhos um rapaz cuja família ela não conhece a se relacionar com sua filha; de acordo com Rafaela, a mãe ainda alegou que tal relacionamento poderia comprometer a estabilidade familiar que ela tanto prezava, e, de certa forma, engendrar uma crise doméstica. “Mamãe não gosta de rupturas”, disse-me. “Ela não concebe a hipótese de eu me relacionar com você pela simples razão de que este relacionamento pode vir a significar mudanças no âmbito da minha relação com ela. Mamãe, como boa conservadora, repudia mudanças e rupturas – se dela dependesse, tudo se manteria tal qual está, indefinidamente.”. Julguei por bem decidir, dadas as circunstâncias, ir até Brasília no intuito de suscitar um diálogo com mãe. Tão-logo disse-lhe isto, Rafaela condenou a idéia – “Ela não irá recebê-lo.”, argüiu. Oito minutos bastaram para que eu a convencesse de que a idéia perfazia a única alternativa viável face ao iminente e letárgico desfecho do ainda breve relacionamento que ensejávamos. Lograva-se o marco de não-retorno: eu iria a Brasília munido do nobre propósito de angariar a simpatia da mãe. Como eu não esperasse por companhia, ei-lo que surgiu, sabe-lá Deus de onde, Hegel, a sussurrar-me: “Estarei em sua companhia, Herr Lindolpho.”. Qual faria qualquer bom homem lúcido e sensato, especulei acerca da possibilidade de ter sido envenenado ou dopado com entorpecentes. A escorar-me os ombros, o alemão gorducho irrompeu em um falatório infindável.

Hegel explicou-me que a trégua de sua loucura havia permitido-o incumbir a si próprio de um dever inadiável – impedir a História de se desfazer em passividade e conformismo. Tal era a situação: a História é constituída de fragmentos circunstanciais e contextuais, que, em um determinado momento, ensejam um dogma, que, no momento seguinte, irá se transformar; em fragmentos isolados, portanto, a História fundamenta-se em dogmas estáticos, os quais só serão laureados com a metamorfose providencial na permuta dos momentos, sendo então transformados, de modo a, na análise ampla, transmitirem ao observador um dinamismo sistêmico. Em momentos isolados, dogmas estáticos; no mosaico de contextos, uma aura dinâmica. Uma exegese sublime, muito embora eu ainda não soubesse o que diabos eu, e tampouco Rafaela, ambos bastiões da fenomenologia incógnita, tínhamos a ver com isso.

Indagado por mim a respeito do suposto elo que me vinculava à explanação, o alemão disse-me que a minha história – com “h” minúsculo – engendrava a simbologia de um embate entre a ruptura geradora e a manutenção perene e desinteressante. Eu, mui compreensivelmente, restei atônito – visitado por Hegel, convidado por este a passar alguns dias em sua casa em Frankfurt am Main (ele também odeia aqueles arranha-céus a la Henry Ford que apinharam a metrópole financeira da Alemanha) e diretamente vinculado à nobre e altruísta causa da salvação da História através da ruptura geradora. Caso ainda houvesse tempo, explicou-me Hegel, o próprio Marx embarcaria no próximo trem que faz o percurso da Cidade História até Goiânia. Wir sind alle Freunde!![1] , concluiu.

Pois bem: partimos rumo à capital federal. Tão-logo chegamos, fomos à casa de Rafaela. Inspirando a mais crassa das relutâncias e a mais torpe das más vontades, a mãe nos recebeu. Disse a ela que realmente gostava da filha e que, ao que se afigurava, o sentimento era recíproco; insisti, ainda, na afirmação de que o nosso relacionamento não iria implicar em quaisquer problemas para ela. Atento, Hegel permanecia, em pé, à minha direita (muito embora eu tenda a crer que ninguém mais tenha notado sua presença...), a cochichar-me conselhos e a aplicar-me cascudos quando concluia que eu demonstrava insegurança. A mãe demonstrou-se irredutível: de maneira alguma permitiria que sua filha se relacionasse comigo. Hegel quis interceder, ao que eu o contive; Rafaela irrompeu em lágrimas e a mãe não se furtou a maldizer-me. O descalabro havia sido armado, eu estava desolado, Rafaela não parava de chorar e Hegel desandou a bradar pilhérias em alemão. Exasperado e gotejando suor pelos poros da testa, lancei mão de um último ardil e supliquei à mae para que me ouvisse.

- A senhora poderia ouvir-me por um único instante? – disse, já irritado com o choro de Rafaela e com a impolidez de Hegel.

Ela atestou a própria intolerância ao dizer que não iria ouvir o que eu tinha a dizer. Disse-me que, independente do que eu argumentasse, ela nutria a mais plena certeza de que eu encarnava uma ameaça à estabilidade e à conservação da situação familiar pivoteada por Rafaela; alegou que o nosso relacionamento poderia alterar as convicções de Rafaela, e, por conseguinte, o equilíbrio das relações familiares. Eu era, pois, um emblema de ruptura, emblema este que não seria assimilado, e, portanto, Hegel havia fracassado em sua incumbência. E assim o foi. Passava das duas horas da tarde de sábado quando Hegel, já farto de tamanha cretinice e pobreza de espírito, foi embora e levou consigo a História.



Lindolpho Cademartori



28/10/2002



1*Nós somos todos amigos!!!



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