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cronicas-->Somos todos descobridores - José Eduardo Agualusa -- 28/08/2004 - 21:32 (Lucas Tenório) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Somos todos descobridores - José Eduardo Agualusa*


Cinco séculos depois de Cabral, José Eduardo Agualusa alerta que o Brasil precisa redescobrir a África. Para o escritor angolano, a América, a Europa e o continente africano só têm a ganhar com a miscigenação.


Em 1997 estive no Recife a convite da I Bienal do Livro de Pernambuco. Uma tarde entrei num táxi, na companhia do escritor angolano Jackes dos Santos, do adido cultural de Angola em Brasília, Bito Pacheco, e de uma historiadora brasileira. No dia seguinte, o taxista encontrou em Olinda o marido da minha amiga e logo o informou:

- Ontem transportei tua mulher e três gringos que estavam tentando falar português.

Um outro taxista estranhou o meu sotaque: - Você é de onde?

Disse-lhe que era de Angola.

- Angola? - admirou-se ele - e em que Estado fica isso?

Quando lhe expliquei que em Angola, país com onze milhões de habitantes, situado na costa ocidental de África, exactamente do lado de lá do Oceano Atlàntico, também se fala português, o espanto dele aumentou:

- Verdade? Pensei que só no Brasil se falasse português.

Estes dois episódios ilustram a falta de informação do brasileiro médio relativamente à África. Ignorància perversa: o Brasil é, claramente, uma nação de matriz africana (luso-africana). O negro, porém, continua associado à escravidão e à pobreza, e ele próprio tem tendência a iludir a sua origem. O Brasil necessita de redescobrir África, na vitalidade da sua cultura moderna, pois só assim os brasileiros de origem africana poderão recuperar o orgulho e a dignidade.

Entre os marinheiros de Pedro Alvares Cabral que, vai para quinhentos anos, avistaram os verdes morros do Brasil (ou melhor, daquilo que depois seria o Brasil), provavelmente já haveria africanos. "Nos começos do século 16 os marinheiros negros trabalhavam lado a lado com os brancos, nalguns barcos", escreveu o historiador A. C. Saunders em História social dos escravos e libertos negros em Portugal (1441-1555) (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1994). Saunders baseou-se sobretudo no estudo de documentos guardados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa: "Na caravela Santa Maria das Neves, que fazia carreira entre Lisboa e Cantor, na Gàmbia, nos anos de 1505 a 1506, sete dos catorze grumetes eram negros, assim como um dos seus nove marinheiros. Em termos de pagamento não era feita qualquer distinção entre brancos e negros, tendo um dos grumetes de cor negra sido promovido a marinheiro durante o serviço prestado em terras estrangeiras, ficando assim a haver dois marinheiros negros na tripulação.

Os africanos e afro-descendentes participaram, desde o início, no processo de formação da nacionalidade brasileira. Não por acaso as manifestações da cultura brasileira que impuseram o país no exterior são, na sua essência, de origem africana: a música popular, o carnaval, ou o poderoso universo literário de Jorge Amado.

Apesar disso, e sem perceberem que dessa forma se submetem, uma vez mais, ao poder do preconceito, os afro-brasileiros preferem voltar-se para os Estados Unidos - em busca de uma identidade negra da qual possam sentir orgulho -, do que olhar para África. Assistimos assim, desde à anos, à importação de conceitos desajustados da realidade brasileira. Ainda mais irónico: alguns desses conceitos estão também já desajustados nos Estados Unidos, país que, com séculos de atraso, começa agora a transformar-se, como toda a América Latina, numa imensa nação crioula. Estudos recentes comprovam que no próximo século a maioria dos norte-americanos serão mestiços. Um número crescente de intelectuais afro-americanos vem defendendo o estudo das sociedades crioulas da América Latina em busca de um modelo para o futuro.

No seu espaço geográfico, a América Latina, o Brasil destaca-se como o país melhor colocado para refazer os laços com África pois, excluindo a minúscula Guiné-Equatorial, não existe naquele continente nenhuma outra nação de língua espanhola. Em contrapartida, há em África cinco países de fala portuguesa, todos eles formadores da identidade brasileira, e todos, sem exceção, de coração aberto relativamente ao Brasil - em Cabo Verde, por exemplo, as composições de Waldir Azevedo estão completamente integradas no rico património musical do arquipélago (tornaram-se cabo-verdianas). Já em Angola a memória de algumas telenovelas brasileiras permanece na toponímia de Luanda: o mais famoso mercado da capital, o maior mercado aberto de África, chama-se Roque Santeiro, e há outros com nomes como Os Trapalhões, Beato Salú, etc...

Cinco séculos depois de Cabral ter aportado ao Brasil somos todos descobridores - ou melhor, redescobridores. Portugal tem vindo a reencontrar-se com África e hoje, por paradoxal que pareça, os portugueses estão muito mais bem informados acerca do grande continente negro do que estavam durante a época colonial. Os africanos, por sua vez, redescobrem Portugal. Sabe-se que em séculos anteriores a presença africana foi muito forte em diversas cidades portuguesas. No século 16, cerca de dez por cento da população de Lisboa era de origem africana. Num livro fascinante, O fado: Canção de Lisboa, dançar do Brasil (Editorial Caminho, Lisboa, 1996), o pesquisador José Ramos Tinhorão foi à procura das raízes do fado, canção que se tornou num símbolo de Portugal, e encontrou-as: são afro-brasileiras.

A percentagem de africanos no conjunto da população de Lisboa é atualmente mais elevada do que nunca: em torno de doze por cento. A moderna música popular portuguesa (para ficar apenas no campo da música popular, expressão cultural de alcance mais imediato do que, por exemplo, a literatura) tem vindo a enfraquecer-se em contato com os diferentes sons vindos de África. Observadores atentos desta realidade, como o compositor e produtor David Byrne, já compreenderam que é nos bares e nas discotecas de Lisboa (num ambiente onde se misturam africanos, portugueses e brasileiros) que se prepara alguma da melhor música do século 21.

Neste cenário falta apenas que o Brasil assuma, plenamente, o seu destino lusófono, e que lance, mar fora, à descoberta de Portugal e da África que fala português. O embaixador José Aparecido de Oliveira, um dos homens que mais se tem batido pelos ideais da lusofonia, firmou com esse objetivo os alicerces da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP, instituição que não vingou (ainda não vingou), porque interesses estranhos afastaram o ideólogo da coisa ideada. Instituições como a CPLP servem, ou deviam servir, para articular as aspirações dos povos. Não sendo assim, resta a esperança de que em todo o vasto espaço da lusofonia, incluindo o Brasil, a sociedade civil se substitua com sucesso às instituições.


© 1998 Jornal do Brasil
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*José Eduardo Agualusa, escritor angolano, é autor do romance Nação crioula, recém-publicado no Brasil pela Griphus.


Fonte:
http://www.instituto-camoes.pt/arquivos/literatura/somosdescobrd.htm









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