Usina de Letras
Usina de Letras
172 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62189 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10352)

Erótico (13567)

Frases (50593)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6184)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Patricinha Global (Num dia de Outono) -- 03/11/2006 - 01:48 (Sereno Hopefaith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:130951918662270300
Há mulheres que nascem, ou adquirem com a experiência, a palavra puta estampada na testa. Gostaria de saber porque toda mulher que conheço morre algum tempo depois de eu conhecê-la. A última, vou contar sua história. Talvez o desabafo seja suficiente para sentir minha consciência mais leve, zen. Falarei um pouco sobre quem sou, como penso e ajo. Costumo agir com certa ética, ainda que, quem tenha alguma, no capitalismo cromagnon, esteja condenado ao mais infame ostracismo. Tenho a mania de poetar. Sou utópico, talvez. Do contrário, como encontrar uma motivação pertinente para viver? Viver, presumo, exige uma certa lógica moral, uma mínima coerência, um, ainda que ínfimo, decoro. Olho para os lados e vejo apenas pessoas que, para sobreviver, mergulham fundo nas mais abjetas dependências. Ela era funcionária pública, trabalhava no Tribunal Regional Eleitoral. Depois de conhecê-la uma semana, seu discurso pessoal tornou-se mais previsível que a fala de papagaio de pirata. Apesar de ter cursado uma faculdade de Direito e estar cursando outra de Administração, seu discurso pessoal era o de uma adolescente que, com certeza, leu alguns livros, mas não aprendeu nenhum princípio pertinente que valha à pena aplicar em sua vida diária. Seus sentimentos e emoções eram claros como um lago cristalino, no qual se olha da superfície e se pode ver nitidamente o fundo largo, que se dilata ao ser atingido pela ponta de uma vara, e dá a impressão de se abrir para uma penetração desejada, mais profunda. Na conversa falta um toque de atino, de sensibilidade. Apesar de estar entrada no quarto decênio da vida, suas compulsões não diferem das de uma adolescente com cultura de novela, partícipe de festinhas familiares, às quais comparece sempre muito bem vestidinha, dentro de modelitos copiados das vestimentas das atrizes dos seriados de fantoches sociais do horário nobre da tv. Saída de um casamento com um tratante que lhe atormentou a existência de forma maquiavélica e sádica, carregava o carma de uma convivência que a fazia marionete dos desejos de seus chefes de repartição pública, que se alimentavam avidamente de seu corpo, como se fosse uma fossa da qual puxavam varas salpicadas de inclusões fecais. Talvez seja essa a condição da mulher moderna, que precisa rezar a ladaínha para os superiores hierárquicos, sem a qual não manteria seus “dê aí” e “dê a esses”. Usufruía de sua condição de fêmea oferecida, ao mesmo tempo causava-me certa angústia vê-la como se fosse uma autômata sem profundidade psicológica, com uma alma tão raza, como o psiquismo de aparências do qual se nutria socialmente. Estava adaptada à sinecura e a secura dessas condições, de tal forma, que as vivenciava como se fossem as coisas mais naturais do mundo. Afinal, que pode uma mulher fazer contra esse estado femíneo de representação? Sua “alegria”, uma satisfação entre aspas, era mostrada a todos como se fosse verdadeira afirmação do prazer de viver. Aceitou as regras do jogo de seu meio ambiental. E o jogo é jogado nos covis onde exerce a profissão de burocrata, e nos “psycho motéis”. Sentia-se parte das taras sociais, as antigas e as novas. O marido a estuprava de forma sistemática. Talvez tenha confundido esses estupros com “fazer amor”. Ter relações sexuais nessas condições de dependência de surtos psicóticos de agressividade por parte do esposo, é abuso, quer se use ou não um eufemismo para definir as relações íntimas do casal. Tal convivência gerou nela um medo cada vez mais acentuado de morrer num desses surtos psicóticos que empatizava do cônjuge. Vivia sob a ameaça de um crescente pavor, de que ele pudesse fugir com a filha de sua proximidade, desde que ameaçava abandoná-lo se ele não concedesse o divórcio. A síndrome de pânico foi-se afirmando como uma arma afiada, a ameaçar cortar o único elo com a vida que ainda valia o esforço de preservar: a filha. Dedicando-se a ela sentia-se protegida, protegendo, amando e sendo amada, útil a alguém, não apenas vivendo para suas perversões. Quem as defenderia nessas condições de domínio do cônjuge desequilibrado, delinqüente polarizado pelo consumo contumaz de drogas? Como uma mulher em luta desesperada pela sobrevivência poderia conseguir sair fora do curral familiar onde era tratada como uma vaca, e ao mesmo tempo ter uma vida intelectual, uma compreensão de valores mais altos da existência? Como poderia preservar-se do assédio predador dos chefetes burocráticos, dependências mórbidas do emprego público e privado, dos condicionamentos que a faziam nivelar-se a uma subordinação cultural de empregada doméstica? Apesar de ganhar 10 vezes mais que uma criada, como poderia defender a educação da filha em condições de classe média brasileira, se não terminasse por entregar-se às pressões políticas e econômicas do emprego, rodar a bolsinha para o sustento da casa? Como poderia investir, após estar sozinha, no apartamento, no carro, nas aparências, no vestuário que cobre o corpo de atrativos de fachada? Como seus hábitos libidinais poderiam ser diferentes dos de uma prostituta? Uma mulher é uma mulher e precisa saber se defender. Mesmo porque há a responsabilidade suplementar de estar criando outra, que também, numa sociedade machista, terá, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar os mesmos tipos de pressão, e talvez passar pelas mesmas situações de constrangimento profissional que ela passou. A filha também será mãe. Do fundo do poço raso e cristalino de suas ilhargas. Como um lobo colhido numa armadilha, sou prisioneiro de uma certa moral pessoal que o mundo dela acha que não vale nada. Mas que eu acredito ser parte importante do que vale preservar nessa vida. Ela, o túmulo de qualquer ideal mais alto, que valha o esforço pessoal de defender. Como cobrar dela um imaginário mais dotado de valores, se sua convivência com a sobrevivência mostrou, ao longo da vida, que tais valores não têm valor, no sentido que não a ajudam em nada a sobreviver melhor? Valores éticos não pagam as prestações do apartamento, nem o supermercado. Nem a mesada da filha, nem a educação, o shopping, a alimentação, as roupas, o entretenimento. Seu divertimento, em alguns fins de semana, era ir ao baile da música da moda, como qualquer doméstica de subúrbio dançarina de forró. A diferença era o salário de classe média. A mentalidade, a mesma, nivelada por baixo por uma cultura que sempre exigiu dela que alimentasse o perfil de meias verdades: o sorriso aberto, surpreso consigo mesmo pôr ser capaz de sorrir, carente, alto, afetado, de quem grita ao mundo que existe, está viva, produto do pânico anímico que se instalou no fundo do coração. Do coração incapaz de pulsar segundo vigor moral mais consistente, com o qual não condiz a sociedade que freqüenta. Apesar de aparentemente abastada, de mediana para média alta, possuía as mesmas rotinas mentais das classes niveladas pela cultura mais baixa. Gostava dela, compreendia sua contradições, mas como justificá-la? Ela vivia no mundo real, eu, em parte, sem querer abandonar a utopia de uma mínima moralia. Ela, submersa na vaidade, numa política pessoal de aparências. Eu, alimento-me persistentemente, de uma espiritualidade que rejeita entregar-se totalmente ao deboche de uma subcultura imposta por uma “elite”, entre aspas, política, econômica e financeira, com uma cultura social de fazer inveja ao clube onde se reúnem as empregadas domésticas do baile de fim de semana. Uma “escol” que investe na cultura nacional das aparências, apenas nas aparências, que não mais consegue guardar um certo recato, decoro, decência. Ela se enfeitava tanto, parecia tão artificial como uma sala de baile decorada para uma festa, onde as pessoas vão se descontrair de suas mazelas, mas que, logo mais, terá a aparência e o desencanto de um ambiente desolado, desordenado, sujo, com o odor típico, saído da porta do banheiro entreaberta. Talvez fosse exigir muito dela, o dedicar-se a algo mais que não fosse uma aposentadoria que permitisse afagar o rosto no travesseiro das rugas, com um sorriso cínico, satírico, amanhecido. Um sorriso despido da necessidade de transcender as verdades de uma sobrevivência (malograda), dedicada ao ideal do salário e da aposentadoria a qualquer preço. Como poderia uma vida abnegada às mentiras rituais, saber fazer valer uma certa e insubstituível transcendência, essencial e invisível para os olhos? A minha mulher não há de querer mostrar-se tão feliz da vida, tão banalizada por uma configuração artificial de mera exterioridade. Um pouco de espiritualidade, querida, na sua idade, em todas as idades, não vai mal. Quem sabe seja muito tarde para plantar nela, em seu terreno transitório, nos invisíveis neurônios e sinapses de um cérebro simplório, vadio, de um sistema nervoso central plugado nas festividades semanais tipo rala-bucho, a planta ideal, cujo adubo é a interdependência de humores e de uma sabedoria natural, de crescimento não muito fácil, mas que poderia ser uma ponte entre esse viver terrenal e algum valor que pudesse afirmar para depois, para além, para a habitação alhures. Quem sabe ela venha a intuir: se me perder, restará uma idosa infantilizada, usada e abusada, como sempre foi, por qualquer palerma da terceira, Segunda ou da primeira idade que dela se aproxime. Sua sombra e a própria voz argêntea lhe tirará o sono. Não haverá Domingo para ela (que triste). E sentir-se-á a menos amada e solitária das criaturas. A mais gasta e sem serventia das crias de sua geração sem pai nem mãe. Ao descobrir-se tão vazia de sentido, a própria voz irritará os ouvidos. Será aquela que para ela mesma, confundiu conquistas femininas com prostituição. Descobrirá que tudo nela era esmerado apenas na aparência. Que seu consumismo de patricinha, depois perua de butique de shopping não deixou nenhuma marca, exceto nas caixas registradoras dos corações safenados. E o ouro dos sentimentos que a faria a mais querida das mulheres, não passará de uma nuvem cuja forma se desfaz na memória, tão rapidamente, que, talvez, nem uma lágrima se permitirá descer pelas faces desprotegidas, onde a memória do tempo terá depositado a erosão de uma saudade e de um vazio impossível de preencher com a lembrança das vivências. Memória dos incidentes de uma vida que julgava talvez ser, de alguma forma, boa de viver. Mas que, na realidade, tudo tão fútil e transitório, não terá passado de chuva de verão. E toda sua vida poderá ser resumida numa frase vã, tumular, de mausoléu. E só então ela saberá que teve a mais preciosa das dádivas em mãos, e em vão tentará criar uma fantasia, uma memória, para justificar essa insuportável e radical futilidade. Essa perda inominável e irreversível de um valor mais essencial. E o sorriso sorrirá sem sentido toda vez que queira parecer simpática, e justificar a aparência dos gestos, a inteireza dos dentes. Vai por certo querer tirar de algum lugar, por alguma mágica do lembrar, alguma sensação de prazer que possa faze-la sentir-me melhor. Saberá que somente a morte poderá liberta-la dessa angústia supostamente incompreensível. E verá sem emoção pertinente, com tristeza nos olhos grandes (de uma mínima lágrima carente), o crepúsculo chegar e ir embora, sem intensidade, real ou aparente. E a aziaga não virá tão cedo. Seus mais miseráveis segredos, sua mais guardada intimidade, ela saberá, afinal, que eram tão fugazes como enredos de telenovelas, ou as pantomimas do samba enredo da romaria dos mutilados em desfile numa escola de samba. Ela, que poderia ser, toda vida, todas as vidas, a estrela da vida inteira, terá escolhido a transitoriedade da fantasia, dos bastidores, a fútil imaterialidade do nada. E o próprio brilho dos astros será ofuscado pela aura negra da banalidade. E suas próprias confidências, dela para com ela, terão o sentido mesmo da inexistência. Saberá afinal, a diferença entre um amor escrito nas estrelas, e a intimidade de uma plêiade de burocratas barrigudos e sodomitas. Mas uma ninfa é uma ninfa, é uma ninfa, é uma ninfa. Como uma personagem da literatura realista-naturalista, se verá finalmente como sempre terá sido: uma pequena burguesinha, com valores de aparência, tão decadentes como uma personagem de ficção, interagindo conforme as solicitações mais instintivas do meio ambiente. E ninguém pôde ou poderá fazer nada por ela. Não haverá um gesto de carinho que a fará sentir-se melhor. Nem uma palavra. Seu consolo será a empatia com as imagens da tv. Sua atenção, seu carinho reprimido, virá do mundo do faz-de-conta das personagens ilusórias, artificiais. Consolar-se-á olhando a paisagem desolada do interior vazio de seus melhores sentimentos inexistentes. Num torvelinho, o vento outonal açoitará as folhas das árvores no asfalto da garagem lá embaixo. Restará dirigir a leviana e pueril massa corporal, aleatoriamente, pelas ruas e avenidas nuas da cidade deserta. E será apenas uma extensão a mais do pânico geral da metrópole. Extensão terminal de um solstício interminável. A sensação de uma terra devastada, como na poesia de Eliot, ou o algum sentimento aleatório de delícia que confina com o pesadelo, como em Chesterton.
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui