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Contos-->BabyBabí -- 02/11/2006 - 05:27 (Sereno Hopefaith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:130951918449553000
“O Homem vive em múltiplos mundos.
Cada mundo tem uma chave diversa.
O homem não pode passar de um ao outro sem essa chave.
Sem mudar a intencionalidade e o correspondente modo
de apropriação da realidade.”
(Karel Kosik)
Dialética do Concreto

O garçom atende o casal até passar a cobrança da conta para o substituto noturno. Este, altas horas, estranha a demora de Dina e Xan em fazer algum pedido a mais nos comes e bebes. Normal estarem namorando abraçados, romanticamente, às três da manhã. Chove. Chato, está passando da hora de sair da jornada de trabalho.
Saco, rumina: esses pequenos burgueses filhos da puta, nunca pensam nos outros. Acham que são os donos do mundo.
Chega até a mesa com a bandeja na mão, depositando-a frente ao casal, sugere: "Senhor, a conta, estamos fechando o restaurante."
Depois de observar a face do rapaz, baixa as pupilas ao olhar a moça pelo lado direito do rosto de Dina. Com seus botões, rumina subjetivamente o refrão da canção: Alguma coisa está fora da ordem. Fora da nova ordem mundial.
Os olhos demasiados abertos, esbugalhados, parecem fixar uma esperança inútil, uma longínqua realidade, possibilidade que, existindo, em nada vai mudar a lucidez da opção por uma possível, talvez inexistente, outra dimensão.
Excitados pelo "bright", teimam em permanecer adolescentes. A idade de ambos soma sessenta e nove primaveras. A atitude lembra a impulsiva libertinagem coletiva dos anos setenta. Após cinco anos de convivência, Dina e Xan comemoravam, a poucos momentos, a insustentável leveza do ser.
As condições econômicas favoráveis à rotina de mera dissipação. O delírio motivava a vivência da utopia, neles, mais forte que a realidade.
O gerente não consegue esconder a perplexidade. Tenta compreender por que um casal jovem, sarado, com tudo em cima, os caminhos abertos pela evidente condição social, apronta uma atitude radical dessas. Alguma coisa mudou, não apenas na rotina da casa, dentro dele mesmo, após o impacto interior causado pelas fotografias.
Uma tragédia a Peri e Ceci, a Bentinho e Capitu, a Tristão e Isolda? a Marília de Dirceu? a Romeu e Julieta? à novelas do horário nobre?
Dina levanta a voz, meio excesso etílico, o travo da cocaine nas mucosas, depois de um breve chupão de língua, o diálogo:
— Cara, divertido segurar essa onda...sair fora das regras da gramática normal dessa vida... vã. “Vã como a sombra que passa”: Que Bandeira.
— Minha Estrela da Vida Inteira, replica ironicamente a frase de Dina: "gramática normal dessa vida vã". Não fosse o Bandeira, seria lugar comum de Oficina da Palavra.
— Sem essa, carinha, piração normal é diferente. Não corta o barato, sente a poesia deste momento de adeus.
— Sem autopiedade, beleza? A vantagem da gente é poder contar com esse clima emocional energizado. — Ter a manha de sair fora, numa boa, da perene crise global. Dina afeta a dicção, enrolando a língua após aspirar a branquinha a partir da ponta da unha grande do dedo mindinho.
— M a n e i r a m e n t e, tá sabendo?, sem culpas, sem rusgas, sem pulgas.
— Quem vai gostar são teus irmãos, cara, o bolo da herança vai ficar maior, provoca ela. Xan sente um frêmito friozinho de gozo, calor de desejo, percorre a espinha, subindo, degrau por degrau, nas saliências discóides da coluna vertebral. O sensação ascendente chega ao nicho mais propício da alma do mundo. Xan repete baixinho:
Nos confins inconscientes da mente
uiva o lobo, rapina a presa
do focinho cai a baba
feroz inveja do fremir das asas
do Anjo da madrugada.
Dina, displicente, imita o movimento sonoro da voz em câmera lenta do companheiro. Ela replica, fazendo uma careta, no ritmo de uma sonoridade à bossa nova:
— Chega de pastagem, a realidade é que sem delírio não pode ser...
Ele olha para a namorada, ciente do ritual, deposita a cápsula dentro da taça de vinho, enquanto afirma:
— Quer vir comigo vem sem crise. Limpa, cabeça feita por você mesma. Vem sem culpa, não força a vontade. É querer, ou não, conhecer, “in loco”, a fonte donde jorram todas as onomatopéias, tá sabendo?

— Bisbilha fonte chuáchuá
A pitutuca e o piu-piu
Beijanjão-se. Nos dedos dédalos
100 unhas arranham nhéconhéco
Murmúrios da noite:
Pling-plique-plong-plique,
Uiva o vento insone desejo
E a gota de chuva
Emplaca na ampulheta
A Quarta Dimensão
Dos que amam viajar no Tempo
Ping-Plique-tum-tu-tum-tu-tum, tudo
A poesia tinham escrito juntos há algum tempo, e decoraram os versos. Faziam parte do emocional de um certo momento especial de fruição, descoberta entre eles uma ponte, uma referência mental comum: Xan continua:
— Sol a sol
Soluça só o diafragma
Sem arrimo, laço, lar
100 abrigos depois
Os corações vitíferos
Das Vênus Calipígias
Ferem e vagam vagos
Cavalgam Eros
No Porto Calvo.
Xan sente a temperatura ambiente esfriar, a pressão arterial baixar rápido. Reage à inversão térmica do corpo, tentando persuadir Dina a ignorar a cápsula por sobre o guardanapo de papel, ao lado do prato vazio:
— Não venha, Di, se não quiser. Ele volta a sentir-se melhor. Já agora eufórico outra vez, energiza-se com outra carreirinha. A pressão acima do normal. Esquisito esse efeito da droga.
Dina sabe que é impossível estar com Xan e não se influenciar com sua visão da alma do mundo. A mimese agora mais forte. Ambos criam e recriam os pensamentos. Deles fluem fluidos da imaginação, dos gestos eróticos. Comunicam-se sem sons. Nela, a dúvida: Ingeriu ou não a cápsula?
Dina, calcanhar esquerdo sobre o assento, puxa e repuxa alguns pêlos da xota, após despida a calcinha, enquanto interroga Xan com o olhar:
— Tô toda torta de querência. Chega mais, chega mais, vem rosetar no banheiro, vem... Xan responde:
— Você, manhã do todo meu...Você, que cedo entardeceu...Você, de quem a vida eu sou...Eu sei, mais eu serei...Dina, em contraponto:
— Foder, minha calcinha azul...
— Foder...o seu cuzinho blue...
— Foder...com essa vida eu vou...
— Eu sei, mais foderei...Xan muda, de repente, a direção das notas musicais:
— Ideologia...No que Dina, à Cazuza, canta:
— Eu quero uma pra foder...
— Ideologia...Eu quero uma pra foder...
No banheiro, de pé sobre o sanitário, rola um fuque-fuque à capitalismo selvagem:
— Fode, amor, sem medo de ser feliz. Esse mercado de xotas, essa ideologia de meretriz...Assim amor, isso mesmo, sem medo de ser feliz. Sim, sou aquela balzaqueana com voz de Barbie, cara de bonequinha e cabeça de bundinha.
“Fode pra valer, com essa realidade de tv. Fode toda essa geração xuxada, desencana. Fode essa bunda fofa, dessa garota angelical. Dana com essas atrizes desses conglomerados da telinha, que divulgam as políticas das máfias, que globalizam na baixaria animada, as cabeças das crianças, e jogam a juventude no caldeirão fervente do delírio, das drogas, da pornografia, da ultraviolência.”
Xan inverniza no tom agreste da namorada:
— Consumo e vaidade. Você é aquela lourinha vagabunda, toda charminho e consumismo. A voz infantilizada, a cabeça globalizada.
— Xuxa, me xuxa seu filho da puta. Assssiisisisimmsis.
— Fode essa vaidade de fancaria tvvisiva, essa prepotência brega, essa indecência dos auditórios do tio Faustão, do tio Sílvio. Sou uma dessas lourinhas vagabundas da banheira do Gugu, globalizando o cuzinho pela tv.
Xan, faz o jogo sadomasô e pergunta a Di:
— Então, vadia, quantos pontos no ibope desse cassino pornô e suburbano? Esse programa na tvvisão, vai ganhando do Ibope junto do Gugu e do Faustão.
— Mais uma meu cravo, tua rosa continua aberta. Fode freudianamente, o vinco, a fresta obscena dessa realidade.
— Essa balzaca gostosa. Dá mais uma em tua galeguinha (imitando conhecida voz infantilizada): Isso meu baixinho, mais umazinha no buraquinho de vermes de tua galeguinha...essa marrequinha brega do showbiz.
— Minha modelito de Niterói.
— Tua Gabí, cara, tesão fogoso. Wauuuuuhallaaaauu. Uallllll.
— Galeguinha sem vergonha, gostando do baixinho?
— Vê se não choga agora. Pênis filho da puta, não fica comovido agora. Pênis filho da puta, não te comove agora. No dia dos baixinhos, quero seu carinho, pra comprar um presentinho...vai baixinho, vai...
— Calma Bete, calma.
— Não, não.
— Sem essa, quando gozar, vou gozar fora essas crianças de samba canção. Vagabunda, você quer gerar uma cria com alma de samba canção, nesse mundo porco, nesse mundo cão? Putana tvvisiva, toda essa descendência de sanitário vai pra pia, pru chão.
— Ahahahah, a carne dura, a carne viva.
— Tô com fome de vagido, de vagina, berra Xan. Dessa buceta sagrada, maldita, Sistina. Dessas guguzetes que topam tudo por dinheiro.
— Sente meu mal hálito de mulher, de vaca, de menina. Mói, rói, dói, sabe sim, simsimshshim, sim, simshiimm. Tudo, tudo enfim, dê tudo estou pedindo, filho da puta. Tudo, tudo, tudo que puder, filho da puta escroto. Sou tua vagabunda global, na capital da Babilônia. Fode federal.
— Implora lourinha, gosto de ouvir essa bucetinha delirando, com aquela voz de prostituta dos baixinhos, toda inocentezinha, entupindo as crianças de tudo quanto é artigo do dia, globalizando as cabecinhas.
— Pega de jeito, sem medo de ser feliz, vaiaiaivaavia tudo, tudo... amor. O suco, amor, o suco... Sem medo ãaããããããaaahahha de ser ããããããã...feliz: gostoso, pega, aperta, essas nádegas nuas, essa bunda tua. Baixinho gostoso, fode, fode mais, ahhhaaahhahhmaaaaaiiiissss. Assim, demais, ahnnn, aiiihhh, demaisss. Vai mais, com força, esmigalha, avacalha, entranha, vai fundo, assimimim, booomomomomom. Demaismaiiiiiis. Haahhahahhhahsssimim.
Voltam à mesa e ao lero mais ameno:
— Tô empolgado com a perspectiva do inusitado, do diferente.
— “Tudo aquilo que tem vida e movimento será nosso alimento. Ele nos deu todas estas coisas...as ervas verdejantes. Mas não comereis a carne com sangue.”
Habituaram-se a dar força aos diálogos, a gostar desse jeitinho de fazer rolar o balanço das horas. Agora é tarde pra voltar atrás. O projeto dionisíaco, em curso. Desfiam e desafiam inexplicável tesão.
Xan carrega nas tintas ao desenhar o corpo dela na espaçosa toalha de papel, com muitos motivos diversos, como num mural à Picasso, uma narração à Conrad: o horror, a dor, com todas as cores e expressões de perplexidade, o horror, vistas e vidiadas numa sacanagem globalizada à “Guernica”.
O horror atualizado das caretas distorcidas dos desenhos, desdobra-se em cenas dos programas policiais, das intermináveis novelas institucionais. Ela aparece coadjuvante, na cama, a expressão expressionista, de membros das quadrilhas do colarinho branco, trepando com ela, Dina. A cara horrorizada dela, as penas abertas, as mãos pegando por trás as coxas do burocrata de gravata, dentro de um gabinete parlamentar.
Como se fosse um médium do astral coletivo da decadência nacional, da ponta da caneta preta de Xan, desenham-se personagens pornôs, expressionistas, à “black-tie”, a contracenarem com inocentes e festivas carinhas e bundas das ninfetas, tipo das que se vêem diariamente nos “talk-shows”.
Do bico de tinta brotam rostos em franca cupidez... O estilo, mescla dos murais de Portinari e Picasso.
Dina imagina as mulheres na intimidade do mural social, ao mesmo tempo sádico, violento e pornô. Desdobram-se, as personagens, em sensualidade cumulativa: Os corpos pesados com as cabecinhas de bagre. Tipo as enormes giras morenas, sintetizadas na pele de barro do quadro Abaporu, da modernista Tarcila do Amaral.
Xandre, está a persuadi-la a ficar. A disposição de seguir sozinho:
— Boa, essa “Guernica Dionisíaca”: Sexo, drogas, e o Plasma Vermelho daqueles dias. Mal vejo a hora de estar no Everest. Depois, flutuar pelos cimos da Gávea.
— Se puder, me acompanha pelos Pirineus e os picos nevados do Tibet. Batendo delicadamente com a palma da mão no rosto dele, ela diz: Pára de me vidiar...
— Breve vamos estar a esquiar por entre as nuvens, nas estreitas frinchas das cadeias de montanhas do Oriente, entre quatro e oito mil metros de altura. Me acompanha, cara, não vai amarelar.
— Quem sabe vou chegar à Via Láctea pelo Caminho de Santiago de Compostela.
— O de Buñuel ou o do Paulo Coelho?
— Gosto em você, este estar longe da inteligência da Adriane Galisteu. Vem com tudo, tudo é teu, vem coelhinha emergente, com essas pupilas meigas à Gabí das Barcas.
Xan busca uma última saída para o impasse dionisíaco. Cria a ficção de verem-se, uma década depois dessa noite. Faz de conta que parou com a seqüência que vai chegar ao auge, quando ingerirem o alcalóide da noz-vômica, cristalino, incolor, o comprimido estimulante nervoso, de uso tóxico e deletério: a estricnina.
Xan supõe a ex-patricinha, uma década depois, agora senhora perua a caminho dos cinqüentinha. Não gosta da projeção. Ela faz várias poses. Ele a visualiza de muitas formas possíveis diversas, como se estivessem no mesmo local, uma década depois.
Pinta certa compaixão: tão nova, gostosa, vai embarcar nesse astral? Quis afirmar-se, mas as palavras saíram sem muita convicção: Deve gostar mesmo de estar comigo, ou está mesmo saturada dessa cultura de circo dos horrores. Prossegue visualizando em direção a um ponto além, como se atingindo uma distância muito longe, infinita, virtual.
O olhar dela, adivinha uma luz no fim do túnel, enquanto ideoplasma: Uma pedra torna-se uma planta. Uma planta um animal. Um animal um homem. Um homem, o espírito do Cosmo.
Dina defende-se do golpe emocional, como se gritasse do fundo da alma, em defesa própria: Ninguém planeja, os instintos, existem. A vida enquanto tempo de ser pensada, planejada, plantada e colhida, inexiste. Nessa beligerante cidade cinza, tudo é compulsão. E o pulso ainda pulsa.
Ameniza ele:
— Homens vazios nos bares cheios. Lero-lero crepuscular. Esperteza noctívaga à antiga. O homem é ruído sem atualidade pertinente. Neurônios diluídos na fermentação etílica. Madrugadas de delírios insones, apenas para enfurecer o lobo impotente.
— Carente.
— No geral dá pra se divertir... mas posso escolher outro astral...ou nenhum. Sem essa de estar no papel de mãe e avó. Cristalizar é dose. Não consigo, tá sabendo?
— Estou nessa apenas por uma questão de cheiro, ameniza Xan, não gosto do odor memorial, delirante, de naftalina da alma do mundo.
"Hanny baby, não diga que vai ter saudades do coração satânico da alma do mundo" — ideoplasmiza Xan.
— Com certeza, ela responde como se tivesse ouvido a pergunta. E fala, não importando o significado apenasmente dela: ”A Primeira em cada Zona era da cor da lua. A Segunda, amarela como ouro; a Terceira, vermelha; a Quarta marrom, que tornou-se negra pelo pecado.”
Para mostrar estar seguindo esse movimento interior que dispensa discurso verbal, Dina gere a vontade de maneira natural, espontânea, telepática. Apenas pensa:
— Limpa, estou limpa querido, totalmente livre de inclusões e impurezas. Tenha certeza: Se pintar uma saudade, vai ser do tesão satânico do coração selvagem da alma do mundo.
Olhando para o companheiro com divertida e tranqüila convicção:
— Tô fora da sala de jantar, do padrão Globo de qualidade. Da Direct tv. Dos canais a cabo. Dos shopping center dos corações solitários. Ahahahah...
Xan, pousa serenamente as mãos sobre a cabeça e a cintura dela. Sente as luzes todas se apagando.
— Frio, muito frio.
A mente começa a mergulhar em luzes e imagens inéditas. Sorri ao dizer:
— Se algum dia voltar a essa Terra, vou lembrar que pintei um mural nas cores e traços...
O detetive da jurisdição é chamado para atestar se estão mesmo mortos. Mais tarde, pela cor da pele, o médico legista assina o óbito por envenenamento. Estricnina, à primeira vista.
O dono do restaurante, antes do fotógrafo policial, fotografa o casal. Nunca vira tal ternura em nenhum lugar. Não haveria de vê-la, acredita, em nenhum outro ambiente. Olha outra vez, com ares de estranhamento, os corpos inertes. Quem sabe poderia vender umas cópias, oferecer de brinde aos fregueses no próximo próximo aniversário do restaurante.
Ao observar a imagem do casal, nas fotos da polaróide, experimenta certa sensação inusitada, transcendente, de paixão. Uma oferta essencial, que não está nos anúncios, nem se compra nas butiques dos shopping-center dos corações solitários. Não adianta negar, a coisa, o sentimento está lá, nas imagens fotografadas. Não sabe explicar. Como a máquina captou essa emoção? Ele, um cara tão vivido, tão carente dela... Essa emoção... Não sabe, mas aí está. Estranho como uma rosa no asfalto da Paulista.
Permite-se embalar pela suavidade de cada segundo, como se só agora houvesse despertado para a bela e admirável intensidade quântica do pendular tique-taque.
Nas noites seguintes surpreendendo-se a bisbilhotar a onomatopéia cadenciada, a orbital balança do tempo, a tremular na freqüência cardíaca do marcapasso: Tum-tu-tum-tu-tum-tum-tutum-tu-tique-taque-tique-tique-taque-tique-taque-tum-tu...Sente-se muito distante da possibilidade de imaginar como aconteceu. Por quê? Conseguiu fotograr aquela essência infotografável. A coisa mais importante que poderia fazer na vida dele. Um acaso.
Pinta um branco na cabeça só em pensar no que poderia ter passado nas idéias do casal. Um certo compasso, tita-gita-tita-nana-titagita-tita-da, desencoraja esse estranho modo inusitado de indagar. A superfície especular daquela expressão leve, aquele carinho, fascinado pela ternura transcendente daquele olhar, duplo olhar. Conclui ser impossível uma empatia, uma imagem mental que possa traduzi-los, explicar.
Sente-se privilegiado. Pelo menos, através da foto, conseguiu capitalizar essa essência incapitalizável. Vai aproveitar e oferecer de presente para os principais clientes que constam do cadastro da casa, no dia do aniversário de cada um deles. Uma cópia da foto desses namorados. A beatitude do casal reflete-se através das pupilas solares. Sentindo um aperto no coração, com sotaque mineiro exclama, olhando para a foto: “Que coisa, sô.”
Conhece um repórter da imprensa escrita que lhe deve favores. É bom de redação, vai criar uma ficção em cima dessa imagem estranha, de inusitada ternura e intensa sensualidade. Não, nada disso, basta um parágrafo, talvez uma frase de efeito, nada mais. Pergunta-se: poderia haver algum problema jurídico? Telefona para o advogado. A linha do celular está ocupada.
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