Usina de Letras
Usina de Letras
180 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62189 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22534)

Discursos (3238)

Ensaios - (10352)

Erótico (13567)

Frases (50593)

Humor (20028)

Infantil (5426)

Infanto Juvenil (4759)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140793)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6184)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Lady Land Blue -- 25/10/2006 - 15:13 (Sereno Hopefaith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:130951917105334000
Sai do banho quente, luz de velas. Olhar no reflexo dos encantos que ficaram. Mantém a delícia da sedução. Vaidosa, como fazer preservar os últimos traços do vigor, do elemento sedutor feminino a pulsar nas entranhas? Que anfitrião dentro dela poderia recebê-la, fazer germinar a semente da juventude, dotar-se de uma vida extra? Poderia, por mais tempo, desfrutar dessa coisa que tanto gosta: as artes mágicas das finas iguarias apetitosas, que fazem as delícias do paladar. O costume sem cerimônia da mesa farta, os aperitivos picantes. Se existe uma lei nesse sentido, como chegar ao doador dessa benesse? Que teria de conceder, para obter, não outra vez o viço original, satisfaz-se em conservar esse resquício de plenitude nos traços da face, do corpo. Não se importa: ficar com essas estrias da celulite. Mulher, mãe de todos os seres humanos, através dos séculos e milênios, quem melhor sabe evocar a arte antiga que a fará ficar de frente ao Senhor dos Anéis? Fazer o pedido, doar a alma. Quem seria tão bobo para querer sua essência? Que poderia conter de valioso? Aceitaria a permuta por mais dois séculos de permanência na Terra? As perguntas pipocam. Abre o livro muito antigo, o jejum de setenta e duas horas e os banhos de ervas, de certa forma a purificaram. A sétima etapa do ritual agora. Momento das evocações finais. Usar a criatura interdimensional, ser usada: ambas uma. Uma fenomenologia. Doze pessoas, a cada mil anos, não mais que uma dúzia. A elas é concedido o privilégio de abrir, por momentos, o portal interdimensional, fazer a súplica. Que mulher não abandonaria os filhos, o amante, as amizades, para que esse desejo fosse satisfeito? As perguntas ecoam, as dúvidas. Quer respostas. Dois séculos bastam? Ouviu mas não viu, do outro lado do espelho, entre a névoa da sauna aromatizada por dez feixes exemplares do fruto capsular, colhido na lua cheia, gênero luehea. Olha no espelho, não vê ninguém, nem ela mesma. Diga sim. Apenas diga sim...Sim, sim, mil vezes sim. Desperta no chão do banheiro, dois dias depois. Ter-se-ia realizado a contento o ritual? Em vez de respostas, dúvidas: terá agido certo? Insegura, medrosa, divaga. Recorda nitidamente a força ultra-humana das membranas interdigitais dentre os dedos que apalparam membros. Feito. Pancadas dadas e palavras ditas, nem Deus tira. Valerá a pena uma vida prolongada nessas condições sociais de ultraviolência? Dois homicídios a cada noventa segundos. Um espancamento a cada sessenta. Os perigos de estar exposta a essa situação inusitada no futuro. Terá que aprender a conviver com, talvez, oito gerações diferentes durante os próximos dois séculos. Não será muito conhecimento, muita dor? Soluça, misto de angústia e satisfação. Quem conta as lágrimas das mulheres? Acredita compreender o mundo melhor que os homens. Por isso chora com mais freqüência. Toda essa coisa não passa, talvez, de sonho, bobagem, ficção? Num impulso joga o cobertor para o lado. Deseja inutilmente voltar a sonhar. Desistir da opção da suposta e parcial perenidade. Dizer, outra vez, não, não, não. Vivenciar a possibilidade. A novidade causa medo. É natural. Esses temores. Precisa livrar-se do conflito, estar firme. Acredita que a mulher está num plano espiritual mais alto que o homem. Não freqüentar salões de beleza, não deteriorar-se frente ao espelho, nem virar poeira de carbono, exceto muito depois de suas conhecidas. Subsistir à vida de diferentes gerações. Talvez fosse macabro demais. Não dissipar-se tão de pronto, pudesse vir a ser uma experiência incrível. É inato: o inusitado causa temores estranhos. Melhor assim. Fixa-se na superfície especular do quarto. A vaidade, filha da imagem: autocontemplação. Não quer nem pensar em como a coisa toda vai terminar. Detestaria estar numa praia, 73.000 mil dias depois, ao sol, na companhia de alguém de sua simpatia...Surpreender-se ao ver a pele do corpo derreter, os ossos desfazerem-se em cinzas à vista de todos. Como nos filmes de vampiros. Passaria por essa humilhação na passarela do futuro? Essa possibilidade desfaz a vontade de ter realizado o ajuste. Na vida nada é gratuito. Esse desejo imperioso de viver mais tempo, apesar dos riscos implícitos, saborear longamente as substâncias sápidas da vida. Ficar à mercê da sombra dos sabores que se esvaem através da língua: o sereno egoísmo de apetecer-se no gozo do cheiro, no saibo dos frutos da terra, do mar. Mantém a forma devido ao jejum de 24 horas que gosta de fazer de sete em sete dias, após os quais passa uma semana alimentando-se de maneira frugal, como se hóspede de um spa. Gosta de frutas secas e legumes cozidos. nove décadas depois, sonha-se correr, da esteira na areia, para as ondas. No sonhar recorrente, a sensação de estar velhíssima, ao mesmo tempo o corpo moderado. Após esses anos, mantém a elasticidade balzaquiana. A sensação dos estímulos oníricos, repete-se. Ao contato frio da água, os membros inferiores dissolvem-se. Vira-se desesperadamente em direção à areia, quer sair fora da água. Viver, correr, voltar, pisar a terra firme do leito da praia. Os pés, as pernas, os joelhos, as coxas, desabam no sal d’água. Água, maldito solvente definitivo. E o sol desse dia lindo. O calor cruel. As mãos resistem, os dedos fincam-se como garras na areia úmida. Buscam, no furor da extrema cólera, puxar os braços que nadam inutilmente no seco. A qualquer custo, quer trazer o resto do corpo para a terra aquecida à beira-mar. Tenta tudo, quer salvar-se. A pele, os órgãos, os ossos, seu livro d’areia, metáfora da natureza finita das pessoas, das coisas. Resta arrastar-se, enquanto pode, em direção ao amontoado de banhistas. Eles olham, estupefatos, os restos dos membros superiores a debaterem-se, sozinhos, os membros inferiores dissolvidos: aflição extrema, tenta salvar-se das cinzas e do pó, as partes solventes do abdome, do ventre, dos seios, os lindos pelos da cabeça. Os olhos da modelo do display. A poucos instantes sentiu que não havia diferença entre elas. Os cabelos lisos, lindos, brilhavam nas tonalidades do shampoo da moda. Ele prometia vida longa, linda, os cabelos a cintilar nas cores do arco-íris. O out-door multimídia, fluorescente, da esquina próxima, avenida da praia, mostra a pantera dos fios luzidios, airosos, perfeitos, cambiantes, furta-cores, movendo-se sedutoramente para os lados. O esguio pescoço traduz a elegância mais atualizada. Na mão direita da diva, um frasco do xampu unissex, que faz maravilhas pelos cabelos. O convite irresistível. A mulher da moda, fantasia do cartaz, despeja algumas gotas gelatinosas na mão esquerda e as passa nos pêlos da cabeça, sorriso aberto de contentamento. Ao fazer a massagem levemente, a ducha em cascata banha a espuma furta-cor. Mostra-se a mais feliz das criaturas. As meninas muito azuis dos olhos vivazmente solares. Garante: basta adquirir aquele pequeno frasco, o rótulo nas cores do prisma, para que o arco-íris da beleza e da sedução façam parte de sua vida. Na praia, cada onda, uma obra poética. Com elas, todo sonho esvai-se e toda realidade. Todas as coisas mudam incessantemente. Ela já fez a releitura dessa paisagem marítima, avidamente, vezes sem conta. Compreende-se melhor. De alguma forma essas cinzas são a ponte, conduzem a outra realidade, onde tudo é real e irreal ao mesmo tempo. Intui essa verdade elementar: a máxima ambição do ser humano é o esquecimento. O vento, em poucos segundos, consome os derradeiros vestígios do corpo perturbador. Uma menina, de pé, próxima ao “display” de praia, abre as pequeninas pálpebras, não sabe ao certo: terá sido ilusão de ótica? Os olhinhos inquietam-se dentro das órbitas, vêem passar em ziguezague, à grande velocidade em torno dela, uma faísca luzente. Não sabe ao certo, fica a impressão de que o olhar muito brilhante da modelo do cartaz, assimilou a coisa por breve momento. Depois, num átimo, penetrou nela pela íris do olho esquerdo, ou terá sido pelo direito? Vira-se bruscamente para acompanhar a trajetória da coisinha luzidia. O bumbumzinho despenca na areia, mas ela não está nem aí. O impacto da queda absorvido pela espinha aprumada. A garotinha coça os olhos com as partes anteriores dos dedos. Impressão de que a inverossímil titiquinha cintilante, quer penetrar nela, e ficaz de uma vez por todas dentro dela, mas não consegue. A criança passa as palmas pequeninas pelas faces. O pescocinho ereto, olhar atento, acompanha a luzinha dirigindo-se às águas. Vê-la confundir-se aos miríades de reflexos luminescentes do sol sobre o grande oceano. Torna a passar as falanginhas dos dedos nos olhinhos fechados. Afugenta deles os restos cinzas. Chama pela mama. Lágrimas. Elazinha, ainda extasiada, os pequenos passos hesitantes aproximam-na do quase nada que sobrou da mãe, dissolver-se aos pés. Quinze minutos e está a caminho de volta para casa, na companhia da tia. Três anos e seis meses depois, sonha-se sendo uma mulher atraente, com muita experiência de vida. No sonho, entra no carro dentro da garagem num shopping. O assaltante quer a bolsa a qualquer custo. A mulher, balzaca simpática, como poderia ser ela?, puxa a sacola pela alça de volta, leva o tiro mortal. Não era ela nem a mãe, algo de ambas. A vítima chega na UTI sem vida. Para cumprir a rotina, a equipe médica tenta reanimá-la. Sem efeito. No óbito, morte instantânea. Nove horas depois o doutor prepara-se para a necroscopia, após ter em mãos a autorização da direção do hospital. Vai abrir o tórax, mas percebe que a mulher abre os olhos. Levanta-se, apavorada com a possibilidade da alteração drástica da aparência. Espavorido, o médico contém a raiva de estar sendo vítima de uma suposta gozação. Ao ouvir o choro feminino, comove-se. Consegue um avental e o posiciona sobre o corpo despido. Verifica não haver vestígio de ferimento no peito. Convence-se de que tudo não passa de uma chacota de mal gosto. Depois dos trâmites, ela sai do hospital para as ruas. Aos quinze anos, a agora debutante não sonha mais com imagens funéreas. Afeiçoou-se ao gosto por frutas secas e legumes cozidos. Terá, mal sabe ela, de conviver com a possibilidade de sua vida elastecer-se por mais 185 anos. Aprenderá. O estar viva a fará aprender a cumprir o tedioso tempo de uma longevidade ora desconhecida. Hoje, ela ainda ignora, poder-se-á elastecer sua sobrevivência por mais outro tanto? Vai querer viver outros duzentos anos?
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui