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Contos-->Chacina Chic ("DOON") -- 25/10/2006 - 15:10 (Sereno Hopefaith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:130951916680685600
Conrad, seria diplomado em medicina na próxima semana. Costuma dopar-se de “crack” e cocaína. Classe média alta, seu principal terreiro, o Morumbi Shopping. Motivado pelos hormônios produzidos na parte medular das glândulas supra-renais, a adrelina produzida circula no sangue a partir dessa química do estar dopado. As extremidades tentaculares das sinapses transmitem aos neurotransmissores, dopaminas. Elas fustigam o processo de condução de impulsos nervosos do e para o corpo celular. As extensões dos dendritos, as mútuas infiltrações na massa cinzenta, prolongam-se ao longo dos axônios, das ramificações neuronais. Simplificando: está doidão, e não é de batida de limão. Na cabeça de jovem, quase médico, circulam informações especializadas. Criam nele a sensação de que acompanha e controla os desdobramentos dos efeitos das drogas. Seis anos de medicina são suficientes para garantir que pode ser cobaia de si mesmo, sem maiores riscos. Gosta. Quer chegar aos limites do experimentalismo, da auto-observação. No núcleo de cada neurônio sente atuar, célere, a cromatina. No citoplasma, disseminam-se distúrbios por transtorno da sensibilidade. As atividades motoras dos mitocôndrios ou condriossomos, filamentos contendo enzimas, ácido cítrico e sistemas de transportes de elétrons, desempenham importantes papéis polarizadores dos efeitos das doses nos processos metabólicos. As alterações neurológicas criam condições psi para o surgimento de patologias, transtornos e estados orgânicos anormais. Conrad mantém o processo de realimentação dessas sensações instigantes do sistema nervoso central, realimentando-se em outras fontes: é simplesmente atraído por empatias com personagens ficcionais, tvvisivos e cinematográficos, que manifestam comportamentos, pessoal e social, contaminados pela violência e pela ultraviolência. Está aqui para assistir, com direção de David Fincher, o “movie” Clube da Luta, estrelado pela menina dos olhos das xoxotinhas piscantes, dos mocinhos bonitinhos, pseudo ordeiros, sempre prontos a bater continência para o mais recente modelo do star sistem. Toda uma juventude entusiasmada pela carinha fabricada de Brad Pittbull. Conrad faz parte dela. Recusa-se entrar na maturidade sem despertar a atenção dos demais de sua idade. Está na metrópole Sampaulo, onde o coração das trevas do capitalismo do Terceiro Mundo, galopa em direção ao coração das trevas do Primeiro Mundo. Aceita-se viciado na adrenalina da violência que os noticiários dos jornais, revistas emissoras de rádio e tv, despejam sobre sua geração todos os dias, às toneladas. Quantidade de notícia pesa, arquiva-se na mente, condiciona comportamentos de mórbida intimidade com o sangue das vítimas. Ora, já que ninguém faz nada, as autoridades ausentam-se da “mínima morália”, e da responsabilidade de gerir de maneira pertinente as motivações lúdicas da sociedade, que poderá ele fazer, exceto alimentar-se passivamente dela, mama violência, como, de resto, fazem todos? Esta erupção em todos os lugares da cidade, faz reféns seus moradores. Todos estão com as mentes seqüestradas pela viscosidade de milhares de milhares de imagens dos constrangimentos diários. Ele é como os demais: aceita-as como se fossem a coisa mais natural do mundo. Mas não é. É uma lei da natureza, de todas as naturezas: “O acúmulo de quantidades modifica a qualidade”. Conrad está tão saturado dessas doses cavalares de coerção, coação, uso extorsivo da força física na telinha da sala de jantar, nos inocentes e confortáveis cinemas do shopping. Aceita a droga de mais um filme cheio dela, como uma contribuição a essa dependência. Não passa pela cabeça, cheia de informações médicas qualificadas, que mais um filme pode ser a gota d’água, a overdose, o rompimento do ponto de saturação. Afinal, está familiarizado com as conexões sensoriais que as drogas provocam. Conrad gosta de estar visceralmente dopado em todo tipo de convite à excitação motora: desde as mensagens subliminares das propagandas de cigarros, a filmes tvvisivos com tramas violentas, donde jorram muito sangue. A fixação coletiva pelo plasma, como se todos fossem descendentes diretos de vampiros. Não perde um único lançamento cinematográfico semanal no gênero. Gosta de dopar-se com as drogas que a sociedade a todo momento oferece quase gratuitamente. Oito reais são suficientes para fumar, por duas horas, o cachimbo do crack do mais novo lançamento, no mais “chic dos shoppings”. A informação que deforma está em todos os lugares, todo tempo. Nos jornais, lê diariamente as notícias de chacinas, pessoas mortas em festas de batizado, aniversários, casamentos, clubes, bares, nos semáforos, nos ônibus, nas motos, nas escolas, nas ruas. É como se não houvesse autoridades policiais que invistam na contenção do tráfico e do terrorismo da violência urbana. Quem não sabe? Nessas quadrilhas, está a presença, subliminar, de membros dos três poderes, garantindo, por trás do cenário miúdo dos criminosos pés-de-chinelo, os bilhões de dólares de lucro anual das eminências pardas do colarinho da branquinha. Não quer passar em branco. Em uma semana diploma-se médico, doutor. Respeitabilidade de canudo de papel, quem liga pra essa merda? Vai ser outro anônimo profissional da medicina. Precisa de notoriedade, exposição na mídia. Antes que algum elemento do ciclo de traficantes e drogados que freqüenta, tenha essa idéia, quer ser pioneiro em chacina no interior de cinema, num shopping. Pensa em explodir algumas granadas, as explosões não teriam o mesmo impacto das rajadas da submetralhadora. Ele ali, de pé, de pé, apertando gloriosamente o gatilho da nove milímetros, as balas pipocando nos espectadores. A sensação de estar no comando, poder ver o vermelho jorrando das vítimas atingidas, indefesas, perplexas, aflitas, mal-assombradas. A platéia em pânico, o cano quente da arma, a fumacinha, após as dezenas de projéteis, tudo como nos filmes à Rambo e quejandos. Na realidade precisa do substituto freudiano para o fálus. Transfere certa passividade física, para a virtualidade de personagens da tela. É fã de Bruce Willis no papel do detetive truculento que ganha todas dos terroristas. Filme com Silvester Stallone, não perde um. Gostaria que os marginais ganhassem todas dos detetives, fica do lado do mocinho apenas para sentir-se vencedor. Se a vida, pessoal e coletiva, está definitivamente desvalorizada pelo descaso das autoridades, que entregaram o país aos traficantes e à criminalidade, e dela participam auferindo lucros muito maiores que seus salários de membros dos poderes legislativo, executivo e judiciário, quem é ele para ir de encontro a toda essa evidência de que a única moral social é levar vantagem? Completou 26 semana passada. Na festa de aniversário, entre a alegria dos presentes, o amigo Brad Pitbull, deixou-o numa situação de constrangimento. Na festa, presenteou-o, na cara dura, em meio a todos, com essa maravilha de submetralhadora. Presente não, mais uma troca pelo carro na lanternagem, que deve valer cinco mil reais. Tudo bem, em meio ao cheira-cheira, ao funga-funga, ao pita-pita dos cachimbos de “crack”, quem vai se tocar do que significa estar com essa beleza de tecnologia bélica em mãos? Cobray M-11/9, 960 tiros por minuto, a Pandora dos criminosos, menina dos olhos do tráfico. Não vai atirar em ninguém que estiver nas filas dos hospitais e postos de saúde do INSS, nem em pessoas que batem as botas por falta do fornecimento de medicamentos caros nas farmácias gerenciadas pelas secretarias de saúde: esses modelos de assassinatos são para os que gerenciam o atual Estado das coisas e as verbas, sempre insuficientes, das secretarias de acompanhamento econômico na área social. Não pretende ser supercriminoso, tipo tio Átila, tio Hitler, tio Stalin, tio Pinochet, tio Hildebrando, tio Garrastazu, tio Cel. Correia Lima, os irmãos Metralha das Alagoas, tio Severino da Bananeira Collorida, tio Talvani Albuquerque, tio Gerardo de Abreu, ou qualquer outro desses “respeitáveis” policiais, militares e parlamentares que gerenciam as políticas das verbas para a deseducação, desaúde, desabitação, e insegurança. Que são três mortes, comparadas ao longo período de genocídios comandados pelo ex-ditador Pinochet, seus sequazes? Torturaram, mataram impune e covardemente, durante anos, milhares e milhares de pessoas. Agora está sendo vergonhosamente reverenciado por governantes de 19 países da Cúpula Ibero-Americana, que condenam o processo movido na Espanha, pelo juiz Baltazar Garzon, por crimes contra a humanidade. Comparado ao ex-carniceiro chileno, sente-se apenas um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Quer apenas aparecer, ter alguma exposição na mídia. Na mídia que alimenta e realimenta a violência nossa de cada dia, com a criminalidade das reportagens de jornais que pingam sangue, antes privilégio de O Dia e A Notícia do Rio de Janeiro. Hoje a grande imprensa concorre com eles, e ganha de 10 a zero. A violência era uma coisa cancerosa de baixo para cima, agora, é ampla, total e irrestrita, parte de membros do Congresso, juizes e polícias de apoio, gente do “status” dos executivos municipal, estadual, e federal. As relações entre poderes e os demais membros da sociedade, virou uma patologia de criminalidade cromagnon. Todas as relações, pessoais e coletivas, parecem provenientes das pulsões de destrutividade, agindo a pleno vapor. Acredita que a banalização da violência tem causas óbvias. Todos os segmentos sociais, a partir dos mais altos, põem lenha na fogueira da patologia coletiva. É como se todos estivessem contribuindo para a coisa mórbida da realimentação dos processos sociais patológicos. Se eles páram, as pessoas ficam cara a cara, cara a cara cara, como bobos da corte do rei FHC. Conrad lembra da opinião de um desses monstros sagrados da mídia, âncora conhecido como “a grife da notícia”. Entre outras proverbiais bobagens, Bóris Karloff, acha ter tropeçado no nome, costuma dizer que filme e tv nada têm a ver com esses surtos e erupções de violência. Então, como se explicam que deputados estejam imitando personagens da filmes de horror classe C, furando os olhos, serrando, literalmente, os membros de seus desafetos com os instrumentos de trabalho das personagens ficcionais tipo tio Freddy Kruger, Jason, A Noite dos Mortos-Vivos? O pior da criatura pulsional invisível, que reside em cada habitante do coração das trevas, está em querer manifestar-se via mídia, como os monstrengos de Blood Mania (70), Corruption (68), Dark Places (74), Dark Tower (87), The Devil Commands (41), Impulse (74), The Invisible Creature (59), Inferno (80), Jason Goes to Hell: The Final Friday (93), Macabre (78), Zombie Island Massacre (84), SSSSSSSSSSS (73), Possession (81), Hysterical (83), Homicidal (61), Holy Terror (77), Halloween (78/81/83/88/89), The Funhouse (81), Eye of the Cat (69), Eye of the Devil (67), Eye of a Stranger (81), Eyes of Hell (61). Quem diria, o cinema nacional reerguendo-se das cinzas, financiado por membros do legislativo, produziu a realidade do Massacre da Serra Elétrica. Conrad orgulha-se da memória para filmes do gênero violência, ultraviolência, horror. Sente inflar a liberdade neuronal: ahhh, poder identificar-se, fazer uma empatia pertinente com o modo de pensar de personagens temerosos, sem que mais ninguém saiba da quantidade de amigos monstrengos que acumula dentro de si. A mente, um memorial dos horrores produzido pelas tios e tiazinhas de Hollywood. Eles fabricam milhões de caras como ele, mundo afora. Cada um morre com uma grana preta para ver, na intimidade, todos esses crimes inconfessáveis, guardá-los intimamente, ser parte dele, de sua patologia. A mente, essa caverna mágica maravilhosa. Nesse antro guarda, com inusitado carinho, por vezes paixão, esses filmes, a animalidade recôndita dessas personagens. Graças a elas, sente-se, em parte, tão energizado. Por vezes a certeza aflora: de que ninguém no mundo real tem colhões. Vivem todos como goléns submissos a condicionamentos obsessivos que fazem deles seres amorfos, desenergizados, aos quais falta esperança. Quando não, seres energizados pela alienação de personagens psicóticos da telinha da sala de jantar. A liberdade de todas essas pessoas do mundo real, realiza-se na virtualidade de personagens hollyhoodianos. O horror de cada tvespectador, telespectador, por vezes ganha espaço, realiza-se no mundo considerado não-virtual, real. A separar esses universos, não tão paralelos, a distância irrisória de um fio de cabelo, o “click” do controle remoto. De tão viciado não pode mais passar sem a cólera, o desespero, as situações limites, as doses cada vez maiores de problemas, onde quer que se manifestem: no mundo ficcional, no real. A densidade de ambos, alta dose de adrenalina. Os programas de depoimentos dos membros convertidos às igrejas evangélicas, pentecostais e quejandas, também uma maneira de identificar-se com as pessoas que usaram e abusaram desses, agora, convertidos, que afirmaram o poder deletério do mundo real e virtual na realidade delas: jovens que se prostituíram pela necessidade de consumirem drogas. Rapazes que fizeram a mesma coisa por suas necessidades de sobrevivência. Os donos de motéis, de saunas, os que exploram o tráfico, o lenocínio: a libidinagem, o proxenetismo, o rufianismo, o comércio de crianças para a satisfação dos alcoviteiros de nossa melhor sociedade. Todas essas infecções sociais presentes também nas reuniões de cancerosos de todos os tipos, infectados por microbactérias e mutações de vírus: alcoólicos anônimos, neuróticos anônimos, drogados anônimos: todos se infeccionam mutuamente. Uma sociedade de anônimos com vergonha de expor as entranhas apodrecidas pelas necessidades do coração das trevas criar modalidades, as mais diversas e inusitadas, de faturamento. Tudo vale a pena se a demência não é pequena. As mídias disseminam os horrores dentro da sala de jantar. Se essa sociedade não gostasse de horrores, como se justificariam os bilhões de dólares investidos em baboseiras tvvisivas e cinematográficas, filmadas nos estúdios do colonizador? Conrad pergunta-se, antes de sair do banheiro: será que eles não vêem que são os bois de piranha de todo esse lixo? Na semana passada freqüentou uma reunião desses seres menores, carentes, que fazem de conta que acreditam que existem pessoas nessa sociedade que se importam com eles, os drogados anônimos. Por que não? É mais barato que cinema e tem café de graça. Essas reuniões dão uma certa ilusão de que essas pessoas miúdas não estão sozinhas, sujeitas aos acidentes, colisões e à insegurança dos demais ambientes públicos da metrópole. O coração das trevas está repleto de ameaças subliminares, fatalidades espreitam nos semáforos. Conrad sempre teve mal relacionamento com o pai. Pudesse escolher com quem lutar fisicamente, não por ele ser sexagenário e mais fraco, mas por ele sempre ter se esquivado de um diálogo sincero, honesto: bateria nele pra valer, com socos no pé do ouvido. Depois, com certeza, sentir-se-ia bem melhor. Bater em pai é dose, crime. Fica represando essa energia, desenvolvendo a corrosão, acumulando ressentimentos autodestrutivos. Um dia, não sabe quando, essa coisa explodirá, como a pressão do vapor, de dentro para fora da moringa. O instinto homicida há muito contido, cedo ou tarde vai estourar. Um dia essas tensões terão de escapar por uma fenda de sua alma. Este dia é hoje. Olha a cara refletida no espelho do banheiro, amargurada, as emoções em colisão, num crescendo insuportável. As pessoas, não costuma se dá bem com elas. Por que, afinal, não ver nenhum proveito para ele e para elas, ficar de hipocrisiazinhas, de bom dia, boa tarde, boa noite, tudo legal? Como vai, vai bem? Por favor, sim senhor, obrigado. Só simulação. Esses pequenos assassinatos da pequena burguesia. Na realidade, bom dia pode significar, na real, vá se danar filho da puta, boa tarde: vá pentelhar a cadela da sua mãe, boa noite: não enche o saco, bundão. Tira outra vez a arma da mochila, acaricia o gatilho com o indicador da mão direita. Quem sabe na platéia esteja aquela idosa avançadinha, lhe pediu para acender o cigarro quando na fila para comprar ingresso. Tratou-a com simpatia, cigarro aceso, virou-se, ao invés de agradecer, com olhos de quem olha o mundo exterior de recôndito nicho astral, chamou-o de goiaba. Dessas pessoas em surto psi, quando abrem a boca é para falar bobagens e agredir. A mente gratuita ataca gratuitamente. Ela, com certeza, viciada em adrenalina e dopamina de imagens de ultraviolência. Senão, que estaria fazendo na fila do Clube da Luta? Por isso não gosta de falar. Tudo bem, agressão verbal gratuita, lei natural, auto-afirmação banalizada. Essa é mais uma razão por que deseja ser incomum. Lembra-se da opinião de Ouspensky sobre pessoas comuns: elas vivem constantemente em estado de sono, de inconsciência, mesmo quando caminham pelas ruas, trabalham, dirigem carros ou se divertem. Pior, no sono estão passivas, no semisono agem por compulsão, como se não fossem responsáveis por seus atos. Tudo que lhes acontece vem de fora, do virtual. Vivem de uma subjetividade com sensações de achar-que-gosta, achar-que-não-gosta. Não sabem nem reconhecem o que é real. Conrad acha que despertar deste sono é o único grande problema de cada ser humano que merece chamar-se humano. Ele despertará, nem que para isto tenha de promover uma tragédia menor dentro do incomensurável quadro psicótico da tragédia coletiva. Pensa na namorada, está sozinho no banheiro. Quem sabe pudesse masturbar-me mais uma vez antes desse acontecimento terminal, limite. Gosta, experimentalmente, dessas sensações que potencializam os pensamentos em conflito. Sem dor e sacrifício nada se consegue. A única dor que ela, talvez, tenha sentido na vida, foi quando teve de se livrar do excesso de gordura da barriga, das cochas, dos seios, da bunda, na clínica de lipoaspiração. Aquelas gordurinhas, lipoaspirou-as, mesmo tendo desenvolvido certa afetividade pelas deformações estriadas. Sentiu ter de abandoná-las, malditas gorduras derramando-se no lipoaspirador. Curte Ângela, ambos narcisistas, mas ela tem um defeito de fabricação: é paulista. Como diria aquele dramaturgo carioca, a pior forma de solidão é a companhia de um paulista. Pessoalmente acha que a pior forma de solidão é conviver com pessoas que, consciente ou inconscientemente, vivem de dizer e projetar bobagens. Acham-no esquisito porque não é dado a esses vícios de linguagem. Enquanto não se tem o despojamento de perder-se tudo, nunca se está livre para fazer algo que valha a pena pela própria vida, pela vida dos outros. Paulista, carioca, mineiro, gaúcho, nortista, nordestino, denominações vazias, servem para auto-afirmar a mediocridade dos preconceitos. Gente é gente, seja esquimó, presidente dos EUA, ou homem do caranguejo. Cansou de tantos preconceitos, virtuais e manifestos. Os colegas de faculdades, para mostrarem o quanto são ordinários, tinham sadoorgasmos ao minimizá-lo quando o chamavam “paraíba”, “baiano”. Maneira de sentirem-se melhor. E pensar que esses caras vão diagnosticar, medicar, operar pessoas, a partir da próxima semana. A namorada, tudo que pode perder é a afetividade pelas gorduras. Paradoxalmente, compra as celulites reprocessadas, de volta nas butiques chiques dos shoppings, sob forma de sabonetes, cremes de alto custo. Nem sabe que ao readquiri-las está a recomprar os ésteres dos ácidos que saíram das estrias e excessos dos tecidos adiposos durante a lipoaspiração das nádegas. É a lógica do coração das trevas. Desenvolve-se nele irado senso de rejeição. A consciência de que ninguém sabe ao certo o quanto fica envolvido com esses paradoxos cotidianos do maldito capitalismo feroz. Dispara no reflexo especular. O espelho esburaca e estilhaça-se. A seguir vai atirar em pessoas na platéia. Se alguém atira nele e ele morre? Se morrer como se sentirá, se é que sente-se alguma coisa depois de morto. Ir fundo nessa viagem não é brincadeira para amador, turismo de fim de semana, seminário festivo do colarinho branco, escrever contos e crônicas em oficinas literárias. Sente-se de coração partido, símbolo de uma geração traída por todos. Rejeição é dose. Este enorme desprezo por baboseiras. Quem sabe depois de morto possa sentir-se melhor, mais confortável, mais ancho, como aquele personagem de João Cabral. Sente que a vida de jovem classe média, educado para o diploma, a coleira, para ser domesticado pela mulher, a família, os clientes, não é, definitivamente, a saída para suas contradições. Uma vida e morte assim, também é uma vida e morte severina. Urbana. Morrer, que diferença faz? De qualquer forma será vítima da chacina. Se escapar ileso, a mídia vai cair de pau em cima dele, com seus repórteres chacais. Não quer ter a importância, a segurança, as contas bancárias, as responsabilidades rotineiras e a insensibilidade anormal desses babacas. Tem sido parte do eu coletivo que dorme mais cedo, quando consegue. Que acorda mais tarde, quando pode. Na realidade não consegue dormir nem sonhar. A satanização das tensões da metrópole não permite. Que sonhos pode ter quem vive as sensações deletérias dessa realidade? As últimas esperanças de normalidade se esvaem. Há de ter coragem, ou na próxima semana vai ser mais um membro diplomado da máfia de branco. Vestindo a suposta respeitabilidade dos jalecos médicos. Sua última esperança de ser alguém diverso, em sete dias será cinzas. Tem de fazer a coisa agora. Todos os seus débitos para com a sociedade de consumo, após este ato de bravura, de perda dessa identidade profissional, dessa suposta respeitabilidade, pessoal e coletiva, estarão pagos. Não, definitivamente, qualquer coisa, até mesmo um ritual de sangue, menos vender-se ao coração das trevas. Não vai matá-los, vai libertá-los desse maldito ciclo vicioso. Eles sabem, não há nenhum filho da mãe que ignore: cada gesto, cada salário, cada grana preta faturada na sala de cirurgia numa operação de olhos, para ele, oftalmologista, não quer dizer nada. Por que curar o paciente cego? Para que possa visualizar todo esse horror? Horror. O horror. Todos eles estão matando todos os outros todos os dias, com acenos inocentes, agressões gratuitas, supostos cumprimentos. Inocentes inúteis dos shopping center dos corações solitários de uma sociedade que não sabe ajudar ninguém, sabe apenas malhar e criticar. Quem vai atirar neles não é o eu pessoal. É o eu coletivo dos que estão se fodendo todos os dias. É a coletividade dos danados. A respeitabilidade, a normalidade, o mais depravado Mortal Kombat. Não vai aceitar isso. Ao atirar neles é a ele que mata. Não está a expressar ressentimento e raivas pessoais. Na platéia só existem reflexos coletivos da psicopatologia pessoal e social. Conrad não se julga doente mental. Seu ato é protesto, num país onde falta trabalho, educação, saúde, lazer e esperança. E sobra miséria, violência, corrupção e desespero. Seis anos de medicina, ele sabe: as taxas de homicídio associadas à doença mental diminuíram nos últimos 45 anos. Essa chacina, na realidade, suicídio coletivo, nada tem a ver com doença mental. Os olhos estão escancaradamente fechados. Pode ver, mas não pode ser coaptado. Não consegue ser induzido a aceitar toda essa titica. Os melhores instintos são contra a adaptação a essa respeitabilidade de fanática fancaria, ao corporativismo profissional. Os seguranças do shopping evitam que seja linchado por espectadores que pularam em cima dele, tomaram-lhe a arma quando travou. Agora policiais conduzirem-no algemado. A mídia vai faturar grana e a atenção sobre ele por uma ou duas semanas. Será linchado pelos meios de comunicação que fabricam gente como ele, todos os dias. Em série. Todos membros de carteirinha do Clube da Sobrevivência. Por que não expõem da mesma forma as centenas de pés-de-chinelo das chacinas do eixo Rio/Sampaulo? O rosto desiludido nas primeiras páginas das revistas, jornais impressos e tvvisivos: os malditos babacas jornalistas, os entrevistados de academias aparecendo como se não soubessem o que está acontecendo, vomitando mentiras e baboseiras psicanalhíticas. Nenhum deles sequer imagina fazer um discurso menos cínico, dizer uma ou duas palavras de verdade. O compromisso deles não foi, não é, nem nunca será com a verdade. Fosse, não estariam nos vídeos, revistas, jornais, mentindo, mentindo, compulsivos, verborragindo em intermináveis surtos de blá-blá-blás psicóticos. De tanto mentirem, para eles mesmos, para seus familiares, para as pessoas que com eles convivem profissionalmente, não sabem mais discernir entre mentira e verdade. Por que não dizem ser ele produto da psicopatologia de uma sociedade regida por instintos neolíticos? Por que não falam que toda essa superviolência é subproduto de investimentos do capital de gente importante para multiplicar seus ativos financeiros? Por que não dizem que o capitalismo é um sistema político-econômico de descendentes de macacos, eles próprios, os que estão a gerenciar as verbas públicas, comportam-se ávidamente como símios do colarinho branco? Por que não dizem que a profissão de médico, como naquele poema de Browning (“Childe Roland to the Dark Tower Came”), é “uma imagem mais fiel da ruína e da desolação espiritual que espera todo estudante de medicina, que se lança, sem saber, no fatal destino de torturador experimental”? Que espera o estudante de medicina? Que o mercado persa de capitais esfregue-lhe no nariz o horror cromagnon fantasiado de gravatas de mil dólares e jalecos “black-tie”? Por que não dizem que essa gente de “status” multiplica diariamente a miséria de milhões, para que algumas centenas de respeitáveis traficantes tenham contas bancárias polpudas nos paraísos fiscais? Que todas essas armas, “cocaine”, “crack”, tráfico, existem apenas por causa da conivência das autoridades? Por que não dizem nada sobre as CPIs do narcotráfico só pegarem os peixes miúdos, os pequenos tubarões, testas-de-ferro de aquário? Se não podem fazer nada, por que são eleitos com discursos de mão aberta enquanto itens de palanque? Conrad sorrir, tenta minorar a ansiedade, a aflição. O advogado vai trabalhar no sentido da imputabilidade ou da semi-imputabilidade, homicídio doloso, homicídio culposo, essas putarias da jurisprudência. A imprensa vai mostrar de todos os ângulos, a indignação dos parentes das três vítimas que morreram. As mamas lacrimosas, as caretas indignadas dos papas, os parentes inconsoláveis, lastimosos. Nenhum deles jamais saberá o que é estar desesperado, nessa noite dos desesperados. Ele também, apesar de classe média alta, um retirante que buscava vida na metrópole. Logo aprendeu que o coração das trevas pira, inspira corrupção, ansiedade e medo. Igual ao retirante do poema de Cabral, na metrópole só a morte vê ativa, ele que pensava nela encontrar vida. Pessoal e coletivamente são incapazes de qualquer opinião ou emoção genuína. Não têm nada que seja emocionalmente deles. Nenhum raciocínio, sequer umzinho, como exceção à regra. Toda essa encenação de emotividade barata, brega, kafikiana, não engana nem a eles mesmos. Todo esse estardalhaço da imprensa faz Conrad lembrar dos enrustidos sexuais da oficialidade da Gestapo interrogando covarde e sadicamente, as vítimas. Os SS faziam rodar na vitrola o prelúdio de “Tannhäuser”, sentiam-me melhor, ao mesmo tempo que abafavam os berros dos torturados. Eles, os tvespectadores, não percebem que não são pessoas reais. São meros seres virtuais da tv da sala de jantar, das poltronas dos cinemas. Raramente têm sentimentos naturais, legítimos, que não sejam empatizados das personagens dramatizadas nas novelas e filmes. Orlof, o Bóris, qual mesmo o nome?, “a grife da notícia”, por que não experimenta ligar um dos sessenta canais da TV? Com certeza verá que cinqüenta deles têm uma submetralhadora de mágoas apontada para o nariz dos tvespectadores. Conrad compara as emoções das pessoas da sala de jantar à instantaneidade do circo, do estardalhaço. São parte da alma coletiva virtualizada, isenta de responsabilidades. Nenhum desses psicanalhas de gabinete, oportunistas das mesas redondas dos “talk-shows”, dirá que essa é a verdadeira patologia social. Que toda essa sociedade sofre de intensa, perene, diária, “full-time” intoxicação patológica. Por que não falam sobre esta evidência física, psicótica, dos acontecimentos violentos banalizados no dia-a-dia de suas rotinas mórbidas? Porque o compromisso deles é com o sensacionalismo da notícia, não com as verdades que ela encobre. Nenhum deles tem compromisso com a verdade. São mais doentes, mais coniventes com a peste negra do consumismo, que ele, Conrad, autor da chacina no MorumbiShopping. Aconteça o que acontecer, está satisfeito por ter feito sua parte. Sente-se mais que Macunaíma, herói sem nenhum caráter de uma sociedade idem. Tal como o herói de Mário de Andrade, ao chegar na grande cidade perdeu todos seus referenciais humanistas. Esculhambou-se. Avacalhou-se. Diluiu-se. Fez o jogo do coração das trevas. Que pode um ser humano contra a ganância subliminar inconsciente desta cidade? Viver, morrer, igual, vida e morte severina, como naquele poema que tanto o impressionou: a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte. De sede e fome de justiça, um pouco, todos os dias. Não quer continuar fazendo esse jogo virtual que suga a essência real. Seus heróis, como naquela canção do Cazuza, morreram de overdose, seus inimigos estão no poder: ideologia, eu quero uma pra viver. Tem dúvidas de que, mesmo agora, esses jornalistas, intelectuais, âncoras de jornais, editorialistas, cronistas, psiquiatras, toda essa corja do showbiz do coração das trevas, seja capaz de pensar a prevenção, a saúde. O canibal dentro deles é o “que” que os motiva a investir sempre na morbidez deletéria do dia seguinte. A excitação destrutiva, ornamental, de Conrad, está mais para a do Cavaleiro da Triste Figura. Se todos são inocentes, por que não ele? Acaba de matar três pessoas, ferir cinco. Não se pode pedir desculpas por tirar a vida de alguém. Não se pode pedir desculpas a si mesmo por tomar uma atitude limite, de não querer conviver com o inimigo dentro de si mesmo. Nada a reclamar, é a parte que lhe cabe neste latifúndio fritzlangueano. Julga-se muito, muitíssimo menos criminoso que qualquer desvio de verba para a educação, a segurança, a moradia, a saúde. Pouco, muito pouco perturbado com relação a esses deputados: enquanto fazem discursos para a mídia, dizendo-se contra o aumento dos salários para dez mil reais, subscrevem abaixo assinado na Câmara, para que seja votado e aprovado o projeto. Legislar em causa própria: nisso são exímios, experts, implacáveis paladinos da redundância. Agora mesmo, novembro 99, oitenta e um parlamentares (69 deputados, 12 senadores), se auto-anistiaram ao aprovarem um projeto pelo qual se livraram de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, inclusos no pacotão, nove governadores. O projeto anistia também multas a emissoras de rádio e tv ligadas a políticos. Em 98 foram anistiados até candidatos não-eleitos, quando as multas somaram R$ 21,2 milhões. 261 “incelências” votaram a favor, 110 contra, abstenções treze. FHC de noite vai à tv combater à impunidade, na manhã do dia seguinte pressiona lideranças governistas no Senado a retirar assinaturas para uma CPI que investigaria a lavagem do dinheiro do narcotráfico. Conrad compara os crimes: sabe-se menos, muitíssimo menor genocida, que qualquer administrador político deste Holocausto. O gesto desesperado, eqüivale ao ato simbólico de soprar o “shofar”. Fê-lo soar, ato de extremo desespero, para confundir Satã, inaugurar a reunião dos exílios, a ressurreição dos mortos. Navidad, Christmas, o Natal, poetizado por Rimbaud: O Natal globalizado sobre a Terra devastada, origem futura do Natal, o outro.

 (Shofar (hebraico, significa “trompa”), antigo instrumento de sopro que se toca em “Rosh ha-Shaná” (Núm. 29:1) para despertar as pessoas de sua letargia espiritual e convocá-las ao arrependimento. O shofar mais comumente usado é feito de um chifre de carneiro tornado oco, lembrando o carneiro que substituiu o sacrifício de Isaac, na história da Akedá. Há três sons básicos no sopro do shofar: tekiá, uma nota longa e uniforme; shevarim, três notas interrompidas seguidas; e teruá, uma série de notas curtas e agudas. São cem os toques de shofar na sinagoga, como parte da liturgia do Rosh há-Shaná. O toque se divide em duas partes com o fim de confundir Satã, que pode ser levado a pensar que o segundo toque anuncia o “Dia do Juízo”, quando Elias tocará o grande shofar para inaugurar a reunião dos exílios e a ressurreição dos mortos. Em algumas comunidades toca-se brevemente o shofar toda manhã durante o mês de Elul, até Rosh há-Shaná, e no final do jejum do Iom Kipur. Também é usado no ritual do exorcismo, e quando alguém é excomungado da comunidade.)
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