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Contos-->Debutante -- 25/10/2006 - 12:00 (Sereno Hopefaith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Número do Registro de Direito Autoral:130951916301461400
Não pode esconder a memória da ex-mulher. Imagina a profundidade em que a guarda dentro de si, insuficiente para escondê-la. Lembrança definitiva, longe dos olhares alheios. Uma vez que não mais poderia tê-la perto, guarda-a o mais longe possível, num nicho subterrâneo, inconsciente. Esta festa, também uma maneira de dizer a todos que a vida continua, sem ela. Que não sente sua falta. Quem o conhece sabe que o olhar selvagem guarda uma nostalgia inescrutável. O casal de filhos adolescentes, as amizades, os vizinhos, a família, quem desconhece que ela vive com outro em outra cidade? Talvez numa distante e inalcansável planetopia, numa estrela de uma galáxia longínqua. A paixão, quem sabe dela, conhece a força do desejo. A entrega faz girar a matéria dos sonhos de que é feita a fugacidade da carne, como um planeta em órbita solar. Passado o tempo, todos se adaptaram à nova situação. Que idéia a minha vir a esta festa. Os laços de amizade trouxeram-me aqui, em meio a esse arremedo de despojamento, a essa farsa de satisfação, nesse ambiente social de amizades coloridas. Quem conhece o dono da festa sabe: promovesse todas as comemorações de regozijo do mundo, não poderia esconder a falta que ela faz. Mesmo se seu coração fosse transplantado, o novo pulsaria por ela, sempre. Quem a conheceu, fêmea, senhora ímã, libido por vezes vulgar, sabia saber explorar as fraquezas dos homens. Amar, esta palavra mil vezes tola, não tanto que a fizesse esquecê-la. Quem esteve na festa de casamento, lembra. Aquele homem casou há dezoito anos, com uma jovem de branco com dezessete. Na ocasião ninguém diria: seus sonhos derreteriam como neve, tecido efêmero de seu vestido de noiva. Ao vê-lo agora, anfitrião risonho de tantos convivas, posso notar nitidamente a sensação da falta, a carência dela. Não adianta memorizá-la como vagabunda, egoísta, lascívia daninha, Eva venenosa. Alimentar esse ressentimento, tarefa difícil. Concupiscência inatingível, desejar tê-la companheira de cama, de samba, de lama. Ahh, quantas pessoas a crêem mulher desprezível. Embarcar no barco sagrado do matrimônio, os juramentos de estar disponível e fiel, como um cão, na riqueza e na pobreza, na alegria e na tristeza. O abandono da segurança, da vida pesada, regrada, revista. Distanciar-se da copa-cozinha cheia de latarias ascéticas. A sala de jantar, a tv 45 polegadas, os programas de domingo, os confortos do ap. da praia. Desdenhar essas coisas definitivas: filhos, parentes, amigos, todas as expectativas que floresceram anos a fios, no calor das noites insones, no suor dos verões, madrugadas a quarenta graus centígrados. De que adiantou a esse homem sublimar todas as estações vivendo-as como se fossem primaveras? A vadia trocou todas essas coisas sagradas por um filho da puta que nada tem em comum com ele. Vinte anos de vida compartilhada perdidos na noite. Como pode está alheia a todos esses valores, fugir com o amante desprezível, seu canto de cisne. Enquanto observador subjetivo desse drama, nessa festa a qual não deveria ter vindo, a lembrança dessa mulher sugere que talvez tivesse fugindo do ser miúdo, domesticado, insignificante, em que havia se tornado, no qual desejavam que ela se cristalizasse. Optou pela poesia, pela memória da beleza dos que a conheceram. Recordariam seus traços de juventude, seu ímpeto. Haveriam de vê-la distanciar-se, sair da condição de objeto, a girar em torno da força de gravidade de suas solicitações. Ao ver todo esse amontoado de convidados festeiros, imagino-a distanciando-se, como uma astronauta a abandonar a gravidade e a segurança do planeta família, substituindo-o pela aventura de outra gravitação. Fosse Narciso, vaidade, desejo de não ver-se envelhecer na umidade dos mesmos banheiros, entre o abrir e fechar de gavetas, armadilhas arrumadinhas, dos odores vindos da cozinha. Sair fora, desprezar as tramas assépticas divididas entre goles, através da superfície especular dos copos de refrigerantes. Ao olhar essa dor, esse homem, essa saudade dela, penso na coragem do gesto daquela mulher, a projetar-se em direção ao inusitado. O desprezo pela rotina, pelo tatibitate, pelos festejos de aniversários. O tempo passado não foi nem nunca será suficiente para ausentá-la de todo o pó desse aglomerado de narcisos. Vejo-a agora como uma rosa azul que brota para a eternidade. Jovem, bela, imprevisível. Mistério imperecível, como se tivesse mudado para algum universo paralelo, imemorável, longe dessa atmosfera de hipocrisia insensível. O coração apaixonado talvez sofrera por todos eles, extensões da matéria de memória, da carne de sua carne, mas não de sua liberdade. Se um dia ela voltasse, todos mantinham essa silenciosa, angustiada expectativa, todos seus medos, vergonhas, fraquezas e deformidades se derramariam sobre ela como água de cachoeira. Seriam promotor, júri e juiz, como se suas iniquidade e covardia pudessem vir a ser atributos dela. Teriam a oportunidade de jogar em sua cara como estivera errada, ela, que sempre os queimará com sua incandescência. Eles, o pó mútuo da poeira dos retratos, carbonizados pelas intrigas tecidas na teia do larbirinto. Eles, que estariam sempre presos às mesquinharias pavilovianas da sala de jantar, condicionados pelos confetes e serpentinas das rotinas do vidiar. A filha deles passa próxima, arde ao lado sua cor púrpura, sorrir-me. Vejo-a nela. Tenho dúvidas sobre se conseguirão contaminá-la com seus disfarces, fantasias e máscaras, com essa pantomima bufa e festiva respeitabilidade. Ela chegou, e se foi, com a luz do sol nos cabelos.
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