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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->HOLOCAUSTO NUNCA MAIS (PsychCity) — Romance Neo-Pos-Moderno -- 26/04/2011 - 04:04 (Sereno Hopefaith) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A BOATE
“BIG APPLE”

Apressada Hallma entra no camarim de “star” da boate “Big Apple”. Os frequentadores do bar convivem com a ansiedade por vê-la e espiá-la, através dos efeitos sonoros e visuais nos três shows noturnos de streaptease. Chegou de táxi quinze minutos antes de subir ao palco. Pede desculpas ao cabeleireiro e a manicura que se aproximam. Os frequentadores ignoram: ela é mãe de uma garota de onze, Lilith, e de um menino de dez, Sasha Kadja.

As vinte e cinco primaveras revelam uma adolescente em pleno gozo de uma superlativa vitalidade. Mulata exportação, completa, para turista nenhum botar defeito, nem o Vargentelli. A pele transmite uma intensa embriaguez sedutora. Suprema sensualidade flui para a platéia estupefata com a elasticidade do corpo dançante, seminu.

Quando no palco, a excitação inusitada prolonga-se através da aura, estende-se a todos, dá-se em fluxos, expande-se pelos pêlos e poros da epiderme da platéia. Faz arrepiar. Ninguém precisa saber, nem se pergunta, como ela consegue esses efeitos especiais. As pupilas, duas esferas verde amareladas, insinuam-se na libido dos espectadores, reflexos da íris diamante, desafia, aumenta o desejo extasiado dos admiradores.

Insidioso calor quântico emana das moléculas dos espectadores e infiltra-se nas moléculas da dançarina. Como grãos de pólen que se irradiam de muitas células. Torna-se a fêmea hospedeira, a exercitar a magia da intersensualidade. Contentam-se com simulação potencial, com sexo virtual. Ela simplesmente os expurga da sensação de, realmente, apesar das aparências, serem fracos e pusilânimes, quase indefinidos. Mesmo os que se acreditam garanhões, poucos poderiam ser páreo para ela.

Enquanto Hallma não chega ao palco, as doses se multiplicam nos copos entornados pela ânsia voyeur dos clientes excitados pela virtualidade de uma cópula sem as condições essenciais para realizar-se. Contentam-se em vê-la e guardar a imagem da fêmea, segundo cada necessidade de idealização.

— Quando dança o Kama-Sutra ao vivo, ninguém se safa de sua sedução. Alguém comenta enquanto admira a stripper, a fazer arder as faces afogueadas:

— Exuberante excitação. Nunca me senti tão estimulado. Outro voyeur, mais idoso: “Com ela dispenso o Viagraw.”

— Por isso pagam ingresso: para desfrutá-la com o olhar:

— “Boa noite Cinderela”.

A imagem da cupidez, a formigar na polpa dos dedos, dos copos e palitinhos, às sinapses e neurônios. A filósofa de balcão, provoca a resposta:
— Quando chegam à cama privada, com o muito pouco que restar dessa volúpia, uma vez ao lado do corpo muito menos atrativo da cara-metade doméstica, vêem que conseguem, quando muito, uma ereção papai-mamãe, uma ejaculação de três segundos.

— O leito conjugal é quase sempre broxante. Os comentários continuam.


Quanto mais tarda a galgar o palco, mais fatura a gerência da casa noturna. A ansiedade transforma-se em drinques que se renovam e tira-gostos que somem dos pratos.

Raro privilégio vê-la, mais sensual que a stripper Semi Loore. Muito mais naturalmente dotada, Hallma alimenta as chamas da fogueira noturna dos instintos saturnais, 50 reais por vez, três vezes por noite, muito aquém do cachê de 12 milhões de dólares da americana. Embora Hallma seja incomparavelmente mais sensual, não atua em filmes pornôs.

Outra página do livro da volúpia arde aos olhos da platéia, quando ela empina o bumbum bulindo, moreno, atraente como uma grande maçã. Em volta do vinco entrecoxas, a angelical curvatura branca da linha do biquíni, cinturão de sacanagem, tatuado no corpo pelo mais picante dos arquitetos: o espaço solar da praia de Maresias, onde passou um ardente fim de semana.

A lascívia flui quente da música de fundo, em compassos que penetram a imaginação das testemunhas, chamas de uma estação que apenas começa: o verão na capital de São Paulo.

Hallma sobe ao palco pela terceira vez, às três horas e trinta minutos. No balcão frontal, Leandro verte um coquetel de vodka, pinga, suco de abacaxi e cerveja caracu. Psitransporta-se do olhar às coxas da striper para a intimidade familiar. Sente-se traído pela mulher, pela filha Sabrina, pelas atitudes padronizadas da rotina. As finanças em baixa, e a sexualidade. Ele faz justiça ao dito popular noturno: Quem não tem dinheiro nem sexo não consegue pensar em outra coisa.

Os ardentes pentelhos pintados de verde-amarelo do xibiu de Hallma expandem-se em sua direção. A caverna rosachoque da mulher desnuda-se em prazerosos nichos ardentes, como se a apenas alguns centímetros da ponta da língua de Leo.

Ele viaja como se as chicotadas vindas do palco, fossem enlaçá-lo, envolvê-lo, fazê-lo participar de uma sessão de sexualidade sadomasô. A ponta do chicote de pelúcia e couro flamejante, estala a poucos centímetros do rosto. Ele solta a língua nas coxas entreabertas que se recolhem. Passa a ponta dos dedos pelas bordas do vinco oferecido. Repete, a sussurrar: “Sabrina minha filha, papai te ama... muito...”

A magia de Hallma faz vibrar o tesão ambiental. O odor de bebida inflama-se, flameja na alimentação dos salgadinhos e coquetéis. Em derredor da bela da noite, as primeiras labaredas de um fogo azulado flamejam. Elas sobem pelas omoplatas, crescem como asas de um arcanjo ígneo, prestes a fazê-la flutuar.

O garçom observa Leo lamber avidamente o que sobrou da água cristalizada no copo. Está a querer fazer penetrar a carranca dentro do minúsculo aro de vidro. O órgão muscular do paladar, alongado, contorce-se para dentro, para cima e para baixo, como se as estrias finas do que resta das pedras de gelo, pudessem ser penetradas pela língua.

— Mais uma dose, doutor? Aceita.

— Essa xana é demais, penetra em tudo, parece assombração. Comenta um advogado que vê a cena com olhar esgazeado. Como se pego em flagrante, Leo desconfia da intrusão. Olha de lado recompondo-se:

— Ah, sim, certeza. E volta a concentrar-se no conteúdo da nova dose: as minúsculas pedras de gelo tilintam ao movimento rotativo do copo. Fundem-se à vodka. Sem conversa.

Rossi, um jornalista que está mais à esquerda do balcão, sorri. Há na cena algo de patético. Não sabe o quê. Acha engraçado. A mulher ao lado também sorri. Hallma, de branco, está a se despir, exceto do véu e da tiara: O corpo a se contorcer ao som mais intenso dos acordes da Rai Orquestra interpretando o Bolero de Ravel sob a regência de Molinari-Prandelli.

Leandro fixa os olhos na dançarina, embasbacado com a beleza da singularidade dos fenômenos luminosos. Chamas azuladas, mais parecem asas angélicas, se destacam dos ombros da stripper. Tremeluzem como se ela fosse um magnífico Serafim, empenhado numa mágica operação de alçar vôo sob a influência e a inspiração transcendental das chamas da música.

Os espectadores, surpresos, embasbacados, reclamam a interferência de um segurança que envolve a dançarina numa toalha úmida e a retira do palco com a ajuda de um garçom e de outra stripper. As testemunhas, estupefatas, presenciam o extravagante espetáculo. Afinal compreendem: o fogo blue, com chamas amareladas, não fazia parte da iluminação do show.

Ela estava ardendo mesmo, na sutileza das chamas. Literalmente. Hallma foi substituída por outra dançarina. Pouco depois, deitada numa maca e embarcada numa ambulância, segue rumo ao pronto-socorro do Hospital das Clínicas.

“Corpo ardente no palco da boate inflama-se em faíscas de paixão”. Dia seguinte Leandro viaja sob a influência surrealista da manchete e do texto do jornal: “Corpo em chamas arde no tablado giratório do teatro...”



CINZAS
PARLAMENTARES

O Jornal Nacional noticia outro caso de combustão humana espontânea (CHE). Aconteceu com o deputado federal Tasso Dwarf, em plena sessão vespertina da Câmara Baixa em Brasília. A notícia desperta a curiosidade de Rossi. Estranha que o diretor da estação de tv da Câmara dos Deputados haja alegado não ter filmado o flagrante incandescente do parlamentar. Dos poucos membros do Parlamento, presentes à Câmara quase vazia, nenhum soube falar à reportagem com precisão.

Apenas vagas opiniões, tipo:

— Essa coisa de autocombustão ameaça transformar-se em epidemia?

O deputado Gondim Neto, do FLP, saiu-se com uma gracinha de mal gosto:

— Sua excelência! O vi ser fulminado por algumas chispas de chamas azuladas. Em poucos segundos transformou-se em cinzas. Que mais posso dizer? Ou é terrorismo dos sem-terra ou uma nova arma do PT.
Outra excelência, o deputado Inocêncio Useful, peremptório:

— Eu vi tudo, estava bem próximo, mas não sabia o que fazer. Levei um susto, uma coisa horrível, uma assombração. Quando aproximaram o facho do extintor de incêndio, o corpo não existia mais. Dissolveu-se sob o primeiro jato.

Os jornais escritos e tvvisivos, assim como as revistas semanais começaram a editar resenhas, artigos, ensaios, opiniões, promover debates sobre os enigmas do fogo. Num artigo da Folha, o articulista dizia que a Física moderna considera o fogo uma manifestação do quarto estado da matéria: o plasma. Não confundir com o plasma biológico. “O fogo é um plasma em baixa temperatura”.

A imprensa explora o sensacionalismo implícito nos casos de CHE, denominando-os de “casos malditos”. O “British Medical Journal” republicava a conclusão de uma pesquisa antiga, de 11 de janeiro de 1936, quando um grupo de cientistas chegou a conclusão de que a CHE era uma força natural desconhecida. Algumas tempestades de fogo surgiram em vários pontos do globo. Alguns articulistas lembraram que a cidade de Chicago havia sido destruída nos dias 8 e 9 de 1871. A destruição foi acompanhada de catástrofes a exemplo da destruição da pequena cidade de Peshtigo. Em Chicago, quase dezoito mil imóveis foram destruídos, morreram 250 pessoas. As pedras mais refratárias queimaram. Segundo artigo de Jacques Bergier na revista Planète, criada por ele e Pauwels, na França em 1960:

“O fogo tinha uma cor ora normal ora vermelha ou verde. Não se encontrou jamais nem causa nem sombra de uma explicação. Qualquer coisa no ar alimentava esse fogo que não era como os outros fogos. Se o pó de alumínio e de magnésio já existisse no tempo do incêndio de Chicago, se poderia crer que um estoque tivesse pegado fogo, mas esses pós ainda não existiam.”

O artigo de Bergier estava documentado com o testemunho do piloto de um avião experimental norte-americano, X-15, que havia observado uma tempestade de fogo a uma altitude de quase 246 700 pés. O piloto Joe Walker mostrou as fotos, mas não formulou nenhuma hipótese. A conferência dele foi amplamente noticiada pela “Asssociated Press”, em 11 de maio de 1962.

O astronauta John Glenn declarou que o problema merece um estudo sério e que há concentrações de energia radiante também na estratosfera (há 12 000 metros, onde há, principalmente nitrogênio) e em outras áreas no espaço além aeropausa. Tais concentrações não poderiam atravessar milhares de quilômetros de ar denso para incendiar, cidades nos Estados Unidos, Inglaterra, Espanha ou Portugal. No País de Gales, o jornal “Eco de Liverpool” noticiou, em 18 de janeiro de 1905, que “toda a região estava em mãos de forças sobrenaturais”. O “Times” de 7 de abril de 1947, citou o caso de Woodstock. O inquérito policial mostrou os incêndios que os bombeiros não conseguiram debelar, não tinham sido criminosos e sim naturais.

As reportagens a propósito da CHE causavam estranheza no mundo científico, desde que o corpo humano é composto, sobretudo, de água. Ele não é naturalmente combustível, mas os casos de Combustão Humana Espontânea eram tantos, no segundo quartel do século XIX, que mereceram pesquisa e relatório da Academia de Ciências da França, em 1833. Em 1885, em seu “Tratado de Medicina Legal”, o doutor Dixon Mann descreve com minúcias, a partir de rigorosa pesquisa científica, o caso que horrorizou os vizinhos, os repórteres dos meios de comunicação e toda a comunidade rural dos Estados Unidos. A história, até hoje inexplicável, de um fazendeiro norte-americano que, simultaneamente à sua mulher, incendiou-se. Considerou-se que os corpos haviam atingido a temperatura de 1 800 (mil e oitocentos) graus centígrados. O mais estranho é que nenhum dos objetos próximos aos corpos foi atingido pelo fogo.

As mídias escritas, e as outras citavam casos passados e hipóteses. Dentre estas, a de que o hidrogênio era liberado da água que contém o corpo humano, e dessa forma, os tecidos que se concentravam nas cavidades do corpo pegavam fogo. O absurdo dessa teoria estava em que é preciso uma energia inacreditável para liberar o hidrogênio. Este, uma vez liberado, não há porque ficar concentrado num mesmo local (o corpo), desde que é mais leve que o ar.

O escritor inglês Eric Russel, colecionador de fatos estranhos, no livro “Mistérios Inexplicáveis”, narrou que no dia 7 de abril de 1938, um marinheiro do navio inglês “Ulrich” estava calcinado na cabine de pilotagem. Ele se chamava John Greeley. Não era alcoólatra nem fumava. Os instrumentos da carlinga estavam todos intactos. O soalho encerado e os sapatos da vítima estavam ilesos. No mesmo dia, um caminhoneiro foi encontrado calcinado nos destroços de seu caminhão capotado. Nada mais no veículo havia se incendiado. Ao lado do motorista, uma larga mancha de óleo que não havia se inflamado.

Um dos articulistas do Estadão escrevia uma série de artigos intitulados “Os arcanos da CHE”, que de todos os espantosos testemunhos, um se destacava dos demais. E citava o americano Peter Vesey, que, em 1930, promovia um estudo sistemático da Combustão Humana Espontânea. Um dia ele pediu que a mulher e o filho se ausentassem do apartamento por algumas horas, durante as quais ele tentaria uma experiência. Quando a família voltou à residência encontrou-o calcinado. Os papéis dele que estavam a menos de quarenta centímetros do corpo parmaneceram intactos. Ele havia encontrado e reproduzido a causa das combustões humanas?

No dia 1° de julho de 1951, a senhora Mary Hardy Reeser inflamou-se em São Petersbourg, na Flórida. Restou delas um punhado de cinzas e a perna esquerda intacta até o joelho. Um dos agentes do FBI que investigou o evento disse: “Tudo se passou como se a senhora Reeser tivesse engolido uma pílula que liberou energia atômica”. Não existe esse tipo de pílula, nem de napalm, fósforo ou magnésio. Há quarenta centímetros do cadáver uma pilha de jornais estava a salvo.

As hipóteses, muitas, nenhuma delas conclusiva. Um corpo humano não pode liberar energia elétrica suficiente para se consumir ele mesmo. Seria preciso que o corpo humano, nesses eventos, exalasse energias totalmente desconhecidas pelos estudos experimentais. Uma revista semanal publicou que o doutor Gustaf Stromberg, astrônomo de Monte Wilson, publicou uma tese científica no gênero no “Newspaper of the Franklin Institute”, que se encontra arquivado no volume 239 do mesmo, páginas 27 a 40. Einstein, na época, se interessou por vários desses trabalhos publicados em 1950, apesar de serem teóricos, sem configuração experimental.


JUSSARA E VOLTAIRE

Rossi lembra-se, há dois meses, quando Jussara, a filha de 25 anos, chegou apavorada da faculdade de Química, após ser informada por amigas, que Juan Joseph Voltaire, um aluno de pós-graduação do curso de Geopolítica da USP, havia sido reduzido a cinzas num salão de exposição da faculdade de História. Ele apreciava instantâneos fotográficos de ruínas de uma cidade pré-colombiana. As fotos em preto e branco eram flagrantes ampliados da viagem de um fotógrafo argentino.

Jussara namorou JJ Voltaire, a vítima, daí ter ficado mais chocada. Rossi acha curioso que esses acontecimentos ainda não tenham merecido uma série de reportagens. Ele acredita que os leitores precisam saber mais sobre as causas desses sinistros. Quem sabe explicar ao certo, por que pessoas, supostamente saudáveis, viram cinzas em poucos segundos? Convence-se de que é preciso, urgente, desvendar esse mistério. Em salvando-se o corpo, mesmo que de uma maneira provisória, se salva também a alma dos sobreviventes do atual surto de CHE ?


SÍNDROME
DE PÂNICO

Hélio, sócio de um escritório de consultoria jurídica, mantém a filha de 21 anos, estudante do segundo semestre do 3º ano do curso de Direito na PUC, como secretária. Após ter presenciado Hallma incendiar-se, sabedor de outros casos de combustão espontânea, passa a frequentar a Igreja do Salvador dos Últimos Dias. Por trás desse motivo aparente, se oculta outra motivação: pertence ao grupo das relações de risco, transa com garotas de programa.

Uma hora após fazer doação de sangue no hemocentro do Hospital das Clínicas, em vez de receber o cartão de doador, chega um e-mail solicitando que se dirija a um banco de sangue na Av. Angélica para confirmar o resultado da análise sanguínea. Precisa fazer outra colheita e esperar mais dois dias pelo novo resultado.

Imagina estar soropositivo. Não poucas vezes as camisinhas usadas nas transas de motéis, rompem. Quando isso acontece não há como reverter a situação de risco de contaminação pelo H3V e derivações inusitadas do vírus.

Logo agora! Falta menos de um ano para a aposentadoria. Passa a usar a Igreja para disciplinar a sexualidade e os excessos alcoólicos e de outras drogas. Quer reaproximar-se do Criador, pedir perdão pelos exageros, força moral para frear as taras em noites de lua cheia. A igreja segura os piques do pânico.



RASTEANDO
CINZAS

Rossi telefona da redação do jornal para a filha Jussara. Indaga se conhece os pais de JJ Voltaire.

— Você o frequentou? Sabe onde mora? Quero saber: namorou ele? Transou? Fica ligada, essa coisa pode ser contagiosa, quem vai saber ao certo? Rossi cala as indagações que possam violentar a intimidade da filha.

Acha ridículo insinuar que combustão espontânea possa ser transmitida por contágio, como se fosse vírus. Paciência, poderia ter improvisado melhor argumento.

— Sim, responde Jussara, namoramos por dois meses. A família dele mudou de endereço. Que é isso, pai, todo mundo sabe que combustão espontânea não contagia.

— A exposição de fotografia mantém um livro para registro do nome e endereço dos frequentadores? Posso ver se ele preencheu esses dados, se tem um vídeofone?

— Vejo isso hoje mesmo para você, pai. Calma, mais tarde a gente conversa. A idéia é boa, ele pode ter subscrito o novo endereço.

— Certo, vou chegar tarde...

— Se não cruzar com você, fica um bilhete na mesinha do vídeofone. Escrevo o que tiver anotado no livro de presença da exposição, certo?

— Tudo bem, até.

— Beijim, tchau-tchau.



VÊ SE
DESENCANA

Lisabeth chama Sabrina, 21, que está há mais de duas horas conversando no vídeofone com o namorado:

— Dá um tempo, mãe, estou falando com o Jamil.

— Não vai parar, Sá? Teu pai está chegando, ele não gosta de esperar. Você sabe, está ficando cada vez mais irritado por pouca coisa. Mais de duas horas de masturbação verbal. Amenidades. Não ouvi uma palavra que pudesse interpretar como conversa de bom senso. A conta do vídeofone vai estourar outra vez. Nossa! Não ensinam nadinha nos colégios? As fofocas de minha filha parecem as candinhagens avançadinhas de minha avó. A distância entre as idades e a cultura, em nada melhorou a cabeça dela.

— O intervideofone está chamando, deve ser ele. E você ainda não está pronta.
— Estou mãe, tô pronta sim. Atendi o celular aqui no quarto. Falar no videofone não me impede de me vestir.

— Estamos descendo, Leo. Lisabeth fala no intervídeofone. Sim, Jamil vai nos encontrar no shopping.

— O carro está no calçadão da academia de ginástica. Enquanto desliga o vídeofone público, Leandro mentaliza: Sabrina será melhor se desencalhar logo. A faculdade de administração é apenas um pretexto para fisgar um trouxa mais ou menos abonado. Vai torrar a grana dele nos shoppings. Sabrininha, querida, quem te comprar vai pagar caro. Senão a vida toda, que ninguém é de ferro, uma boa parte de seus dotes.



O
PACIENTE
IRLANDÊS

Uma hora e meia depois, no Gran West Plaza Shopping, após comprar quatro ingressos para o filme “O Paciente Irlandês”, Leandro senta-se com a mulher e a filha em volta de uma das mesas da Praça da Alimentação, onde ficam tomando chope, refrigerantes, e consumindo uma pizza fatiada de escarola, à espera de Jamil e da sessão das 21:30 começar. O namorado de Sá se junta ao trio nos comes e bebes e comenta:

— Este filme lembra o nome de outro a que assistimos há alguns meses, “O Paciente Inglês”, numa retrospectiva de filmes da última década do milênio anterior.

— Vi com você, lembro dele.

— Vi esse filme, diz Lisabeth, sem memorizar enredo ou personagens.

— Vimos, o cara era um gato.

— Hun! Rumina Jamil. Esta é a avaliação que ela faz da maioria dos filmes. Contava a história de um marido traído que se vinga da esposa e do amante, forjando um acidente na aterrissagem de um monomotor no deserto do Saara, no final da II Guerra Mundial. O marido morreu no acidente, o casal de amantes sai ileso do impacto. O nome do cara...Um aristocrata... Almasy... Isso mesmo está a serviço da Real Sociedade de Geografia. Ele vai buscar socorro para a mulher acidentada, através do deserto, mas não volta a tempo de resgatá-la com vida. A direção de Anthony Minghella.

— Isso mesmo, aprova Leo. Lembro das pessoas da platéia comovidas com o enredo, choramingando, passando a ponta dos dedos abaixo dos olhos para disfarçar a garoa de lágrimas. Um drama chorôrô para a glória da bilheteria e da conta bancária do produtor.

— Chorei sim, foi um filme muito bom mesmo, diz Sabrina.
— Este também é um drama, passado durante a 3ª Guerra do Golfo, opina Lisa. Internado com queimaduras por todo o corpo, ele conta a história do namoro para a enfermeira. Vamos, a sessão está começando. Você, hein Sá? Chorar não é motivo para se achar um filme bom. Um comentário inteligente não digo, seria exigir demais de você, mas menos tolo, minha filha. Uma vezinha, por favor, seja menos superficial, menos boba.

Aconchegam-se em quatro poltronas da sala de projeção. Após 15 minutos de propaganda e thrillers, o filme começa. Sabrina e Jamil trocam beijinhos, carícias, palavras murmuradas ao ouvido. O filme na tela, o enredo dosado, com suspense, mantém a platéia atenta. Sá sente a pele aquecer-se com a proteção do corpo enamorado. Na tela, uma mulher pálida, apavorada, contempla hipnotizada, a imagem obscurecida por uma feição vinda do outro lado da superfície embaçada do espelho. Quem?

Os olhos da intérprete começam a serem penetrados por uma tênue névoa que, após se adensar por toda a superfície refletora, alonga-se rumo às pupilas. Finos tentáculos penetram a mente indefesa da personagem. Súbito, a persona cinematográfica desperta do sono para o sonho da realidade. Sai do encanto de Morfeu na direção das surpresas do quotidiano. A platéia aprova, num murmúrio coletivo, de momentâneo esvaziamento da tensão.

Sabrina aperta mais os dedos de Jamil, busca proteger-se da concentração intensa, física e mental, dos nervos retesados como cordas de uma guitarra sendo dedilhada como nos antigos tempos de Hendrix ou Clapton. Ela sente uma carga extra de estranha energia, proveniente de uma força vinda de um forte campo tensorial alhures. Sente que os dedos do rapaz correspondem, apertando-se ainda mais aos dela num morno, abandonado e idílico contágio.

No écran, fascínio, possessão e transfiguração da principal personagem feminina, até que, para alívio dos mais tensos na platéia, o surpreendente final é substituído pelos créditos da produção. As luzes acendem, os espectadores começam a sair da sala de projeção.

Sabrina levanta-se acompanhada dos pais. Chama a mão de Jamil para si, sente certa pressão no braço, volta-se para olhar, emite um incontido “ai meu Deus”. Em seguida abandona-se ao fascínio macabro ao encarar a mão descarnada do namorado frente ao rosto, juntamente com um pedaço do braço queimado de Jamil. Ela oscila por segundos, como se não acreditando. Começa então a balançar, a sacudir desesperadamente o braço. Deseja livrar-se a qualquer custo do adereço macabro, ao sacudi-lo com extrema aflição, para cima e para baixo.

Desespera-se, grita, berra, precisa desfazer-se do apêndice funéreo, fortemente agarrado ao pulso da delicada mãozinha de namorada em estado de choque. A comoção horrível, maior que suas forças, desmaia. As pessoas observam a garota desacordada que há pouco sacudia histericamente a mão cremada do namorado, no esforço de fazer sair entrededos, as cinzas do que restou dela. O braço de Jamil e o resto do corpo, reduzidos às migalhas, desfazendo-se frente ao olhar estupefato dos espectadores.

O medo real, a flagelação dos sentidos. Eles aterrorizaram-se com o padecimento atroz da garota, com este pavor que poderia estar acontecendo apenas na tela, enquanto obra de ficção. Os espectadores estão confusos com esse espetáculo macabro materializando-se frente aos olhos. Como se a realidade fosse um subproduto do que acontecera na tela. A pressão arterial cai, o colapso circulatório faz com que perca a consciência. Sabrina está em algum lugar muito, muito distante. Talvez sem volta.


O PULSO
DA HALLMA

Rossi, ao chegar ao apartamento, lê o bilhete da filha: “Alguém substituiu o livro de assinaturas por outro. Como a exposição de fotos está nos primeiros dias, não sei ao certo por que, ou quem fez isso. Vou obter o endereço com Isaac Rondon, um estudante de Geopoligrafia que se interessava pela tese de mestrado de JJ Voltaire. Não sei ao certo, acho que sobre cidades pré-colombianas perdidas na selva amazônica. Quem substituiu o livro não queria que soubessem dele. Meio misterioso, não? Beijo. Até.”

Ao preparar uma dose de JB com bastante gelo, Rossi conclui que o dia não foi promissor, com um calor de 40º que em nada ajuda. No Hospital das Clínicas, um muro de silêncio: nenhum médico ou enfermeira informou sobre a internação de Hallma. Nenhum soube dizer em que apartamento ou enfermaria está, ou esteve, internada. Se as queimaduras foram graves, se já obteve alta. Nada. É como se Hallma nunca houvesse existido.

O diretor-secretário do Conselho Editorial do jornal de Rossi, marca uma entrevista com o Superintendente do HC, dr. Albertinotti Karamurinja. Está na agenda para amanhã as 10:45. Às 11:45 do dia seguinte, o jornalista adentra a sala do médico.

— Desculpas por tê-lo feito esperar. A princípio mostra-se reticente, aos poucos vai se familiarizando com as perguntas.

Karamurinja afirma ao jornalista que esses casos de combustão humana espontânea não são normalmente divulgados, simplesmente não fazem parte do ensinamento acadêmico:

— Há poucas semanas, nem se sabia ao certo se existiam realmente, se não passavam de especulações de lunáticos.

Alega inexistir uma teoria coerente para analisá-los. O médico justifica o silêncio em torno dos casos de CHE:

— Não pretendo emitir opiniões precipitadas, nem espalhar pânico com explicações pouco ou nada científicas.

Uma hora depois do início da entrevista, o jornalista pergunta sobre o estado de saúde da stripper que havia sido trazida na madrugada de sexta para sábado, passada já uma semana:

— A stripper Hallma, ninguém parece saber nada sobre ela. No entanto, eu estava na boate quando aconteceu o sinistro.

Karamurinja vacila, como se fosse dizer uma tolice, mas acaba por falar que a stripper, quando chegou ao HC estava reduzida a pó:

— O médico de plantão atormentou-se ao sentir o pulso da mulher desfazer-se sob a pequena pressão dos dedos. O protocolo de entrada e internação da paciente, nem chegou a ser preenchido. Ela era apenas um amontoado de cinzas.


DO ANTIGO AO
NOVÍSSIMO TESTAMENTO

Domingo, às 8 horas num dos templos da Igreja do Salvador dos Últimos Dias, Sheila, a mãe; Carla, a filha; Eduardo, o filho caçula, e Hélio dirigem-se às respectivas salas de doutrinação. Sheila sente-se à vontade no papel de mulher eventual: da outra, da mãe e da dona de casa.

Ela aceita passivamente ter nascido para domesticar os filhos. Apesar de saber que não vai conseguir, fará todo o possível nesse sentido, ao transferir para esse objetivo toda a sexualidade reprimida que ficou a meio caminho de desenvolver-se. A intensidade dos desejos irrealizados, canalizada para a “educação” das crianças e a administração do lar. O fanatismo doméstico da mulher impeliu o marido aos contatos frequentes com a prostituição feminina bem remunerada.

Em Hélio, o apetite sexual não domesticado, ferve, quando longe do ambiente íntimo ascético, das roupas, toalhas e panos de prato super limpinhos e arrumadinhos. Ele cisma com as vestimentas impecáveis dentro das gavetas dos armários, cômodas e guarda-roupas. Limpeza e esmero são partes da decência e da honradez familiar, mas irrita-se com as demonstrações de excesso. Uma certa intensidade instintiva requer mais que esse ambiente de excessivo zelo.

Ah ! Agora esses pensamentos. Estar soropositivo é um castigo por ter me afastado dos limites impostos pelas leis da vida familiar. A lei é dura mas é lei. Mulher e filhos para manter. Senhor, permite que não esteja com a peste. Hélio faz novos testes de sangue, em trinta horas saberá o resultado. Pensa que deve se conformar à idéia de estar contaminado.

Apavorado, não pode evitar o fluxo de pensamentos de autocensura. Teme, não a Aids apenas, mas os perigos de uma das variantes fatais, em curto prazo, contra as quais não há coquetel de medicamentos que possa conter a progressão rápida e deletéria dos sintomas:

Não teriam solicitado outro exame para confirmar os resultados. Os Princípios dos Evangelhos ensinam o arrependimento, mas como me arrepender dos melhores momentos de prazer, fora da assepsia do ambiente domesticado do larbirinto?

A alegria desapareceu, como por um milagre às avessas, das festas de aniversário e comemorações do calendário. As dez horas começa o culto público da Igreja. O ritual litúrgico, os depoimentos de fé dos irmãos, os supostos acontecimentos milagrosos narrados em voz embargada pela emoção, a leitura de versículos, os discursos pastorais, as orações.

Antunes, o Bispo, conhece a Bíblia como só os doutos rabinos ortodoxos de Israel. Ou os aiatolás as Suratas do Alcorão. Raros são os pastores pentecostais e evangélicos que possuem graduações, em Teologia (mestrado e doutorado), e outra em Administração de Empresas.

No discurso dominical, Antunes enfatiza a “chegada da hora dos filhos atenderem o chamado do Pai”. Os filhos da raça humana, segundo ele, estão prestes a abandonar esta morada:

— São muitas as moradas do Pai. A Terra está superpovoada de dor, ressentimentos, negação dos ensinamentos dos profetas. Antunes magnetiza a platéia:

— O Filho do Homem pregou, sofreu, morreu para nos doar a chance de ter uma alma íntegra e sã, para migrar em direção às outras moradas, numa outra dimensão de existência. Que aconteceu com nossa alma pessoal? Com nossa alma coletiva? A morte é uma porta que se abre. Desta vida nada se leva, exceto transcendência espiritual. Quando a temos, o espírito encontra forças para sair da atração magnética deste planeta.

Perguntas dramáticas ecoam no silêncio interno da arca do templo. Apenas a persistente tosse de uma criança se faz ouvir. O discurso de Antunes prossegue veemente:

— A raça sapiens/demens degenerou-se, e ao meio ambiente, de forma irreversível. Mas para a generosidade de Deus não há limites. Perguntem-se: Quem danou minha alma e fez meu corpo a morada de interesses que nada têm com minha vontade nem com os desígnios do Pai?

O pastor silencia, ouve a expectativa calada dos fiéis:

— Perguntem-se: Quem perdeu minha geração e a geração de meus filhos? Quem lançou sobre eles a maldição do querer ter sempre mais, como se esta fosse a finalidade única, maior, definitiva, da vida? Quem transformou cada um de vocês em mercadores do Templo Terra? Que acham vocês que a conquista de Lua fez pelo homem, pelo mundo, pela raça humana? Na realidade, pouca coisa a mais do que dar pulinhos e fincar nela, pela primeira vez, a bandeira americana.

Parte dos discursos de Antunes normalmente permanece incompreensível para as pessoas mais simples da Igreja e até para as mais cultas. Interroga:

— Que têm as promessas do Pai com a degradação da natureza e da natureza humana? Quantas horas você passa em frente à tv, a degradar a condição espiritual? A alugar os sentidos para o ibope mais favorável? Quantas horas os filhos passam frente à telinha do computador, interessados unicamente em servir a um deus ex-máquina?

Após explicar que um deus ex-machina, no antigo teatro gregoromano, era personificado por um ator trazido à cena por meio de artifícios, que este ator agora é personificado por computadores de uma tecnologia cada vez mais avançada, de última geração, prossegue:

— As gerações passam, mas a Terra continua. O Amor infinito do Criador trouxe o homem para este planeta. Mas a criação está destruindo cada vez mais e de maneira mais selvagem, os reinos deste Templo Terra. Milhares de espécies de aves, animais e plantas, terrestres e aquáticas, foram ou estão em fase de extinção. Estas espécies também são criação do Pai. Os homens não conseguem conviver pacificamente entre si, nem preservá-las. A cada dia a ação predadora do animal sapiens/demens faz desaparecer, criminosamente, 300 espécies de animais e vegetais.

Antunes baixa a tonalidade, recomeçando outra vez a preleção, cita o antigo professor de biologia, geologia e história da ciência na "Harvard University", Stephen Jay Gould, em meio a argumentos de verdade religiosa:

— Acreditamos em Cristo, mas sabemos que seus ensinamentos foram esquecidos, ridicularizados, principalmente por aqueles que se dizem seus representantes, bispos e pastores de diversas igrejas. O homem parece seguindo uma espécie de inteligência, um intelecto que não tem nenhum compromisso com a sobrevivência de sua espécie, das outras espécies que com ele convivem. O que chamam de progresso é um atalho para a sua própria extinção.

— Deus ama o homem sim, mas não a compulsão que destrói a vida natural e suas possibilidades. Não a compulsão que cria doenças e sofrimentos que a ciência médica não cura. As leis que garantem a permanência do homem sobre a Terra são mais antigas que o Sol e a Via Láctea, mas estão cada vez mais intensamente desprezadas. Todos os dias os homens dizem não a essas leis, como se tivessem sido feitas para não serem seguidas.

— Se a percepção do homem é falha em tantas e inumeráveis coisas, por que não haveria de ser na compreensão do que está reservado para o final da civilização neste planeta? Vocês estarão se perguntando: “De que maneira o Salvador vai agir para acabar com os sofismas que têm destruído a sua e as outras espécies”?

— Não, não será nada espetacular, sem sensacionalismo religioso. De modo que, rabinos, aiatolás, monges, padres, pastores e outras lideranças religiosas, não possam aumentar de maneira oportunista seus faturamentos em dinheiro, com o aumento do medo, das tensões, da dor, das agressões subreptícias ao bolso e às economias dos fiéis. Quem sabe, Ele possa fazer o milagre de unir os seres humanos, em seus últimos dias, numa solidariedade sem demagogias.

— Vocês estão aqui pelos mais diversos motivos, não por serem puros e humildes de coração, pensamentos e ações. No tempo do Êxodo, em ocasiões remotas, o Pai tinha por intermediário os patriarcas, os profetas, os homens de fé: Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, Josué, Davi, Isaías, Ezequiel, Daniel, Salomão, Jó, Oséias, Jonas, Naum, e tantos outros mencionados no Antigo Testamento.

— No Novo Testemunho, João Batista, Mateus, Marcos, Lucas, João, Tito, Tiago, Pedro. No Novíssimo, profetas e homens de Deus, Néfi, Jarom, Mosias, Helamã, Moroni e Joseph Smith, clamam à alma do homem, e a seu corpo, a volta ao Caminho.

— Mas quem poderá ouvi-los e seguir a Senda, se na vida moderna não há tempo para a meditação e a prática dos ensinamentos sagrados, senão para o esgotamento das energias do corpo e da alma na faina impetuosa, nas lidas diárias pelo aumento selvagem dos lucros, pela conquista de espaço para produtos industrializados, granjear o mercado, da pipoca importada à tecnologia bélica de domínio dos satélites.

— Qual o templo do homem moderno, de seus descendentes? Para onde são conduzidas as ambições, o melhor dos esforços, das metas, senão para os shoppings, as casas noturnas de diversões, a tv de 91 polegadas, as disneylândias, os comerciais de tênis, a glorificação da tecnologia, a robotização da vontade.

— Onde está a alma do homem moderno e a de sua descendência, senão na propaganda de bancos, de imóveis, seguros para carros e planos de saúde? Planos que excluem atendimento a doenças que não têm cura. As que mais precisam de tratamento. Vocês acreditam que a alma e o coração do homem podem ser salvos por uma equipe médica num helicóptero?

— A alma do homem moderno é uma caixa de Pandora, uma sucessão infindável de males, injustiças e infortúnios.

O efeito das palavras do Profeta Antunes se faz sentir, a atenção é total. O discurso continua, as dúvidas dos fiéis se transformam em perguntas não verbalizadas.

— Vocês estão aqui porque, de alguma forma, fazem parte dos escolhidos, dos privilegiados pelas promessas e profecias. Há aqui algum covarde com medo de renascer para a vida em outra morada do Pai? Sim, porque a velha Terra não mais serve a Seus desígnios. A velha Terra está perdida, satanizada. Satã e suas legiões dominam a alma coletiva do homem transformada em mercado. Os mercadores do Templo Terra ganharam você, você, você e você. Ganharam todos, até a mim, homem que vive segundo a palavra dos Evangelhos. Não há inocentes. O justo paga pelos pecadores.

— Há nesta Igreja alguma alma tão vazia de sentido e digna de piedade, que ame estar a serviço da avassaladora lavagem cerebral da propaganda, que atrai seus filhos, com todos os adereços dos bezerros de ouro neo-pós-liberais da atualidade globalizada?

— Por que suas vidas perderam o sentido? Por que seus filhos se afundam nas drogas? Porque as mídias mostram todos os dias que os pilotos que fazem rodar os carros a mais de 350 km/ph nos traçados dos autódromos para justificar os anúncios da cultura globalizada.

— Há alguém aqui tão alienado que não seja capaz de sentir-se o que realmente é? E o que você é, senão uma mercadoria que consome outras mercadorias? Quem está por trás da mercantilização de sua alma? O culto aos megaatletas, aos megaempresários, aos megasalários, aos mega-shows-off, aos iletrados cantores caipiras e de rock.

— O homem transformado num animal doméstico, a cultuar músicas de roça, para deleite de mentalidades colonizadas pelas rotinas da sala de jantar: beber, comer, arrotar, ir ao banheiro, fazer amor. As rotinas todas da tv que fazem as pessoas vazias e tolerantes.

— Sim, porque cada um de vocês, de seus vizinhos, seus professores nas escolas, seus pais profissionais liberais...Cada um de vocês não é mais que um idiota, por não conseguir ganhar os salários dos Billgathes, Spihellbergs, Steinbruches, Schumatchers, Kuerthens, das Xurxux e Ronalditos. Por não conseguirem as contas bancárias dos Lalaus, Gracciolas, dos Ejotas, verdadeiros ídolos dos costumes políticos domésticos sem espiritualidade. Vontades passivas às ingerências dos tchans, da dança da garrafa. Seus olhos estão fixados não em interesses, enquanto pessoas, enquanto coletividade, mas na ração diária dos noticiários das desgraças, da criminalidade, de uma cultura da quantidade, gerida pelo mercado, sem transcendência, sem alma, sem Deus.

— Alguém nesta Igreja acredita que o caminho ensinado por Cristo e pelas Escrituras é o consumismo desvairado, as perversões humanas? O que faz, o animal homem, do livre arbítrio? É certo que a opção pelo mal não terá um futuro em longo prazo. É chegado o momento do Salvador intervir.

— Chegou a hora do ser humano desabitar este planeta dominado por forças luciferinas, pelos excessos de horrores, de sofrimentos, de derramamento de sangue. Está próxima do “dia D”, a data terminal, o fim do exercício do megaegoísmo, da ultraganância, da globalização satanizada, do vampirismo político-econômico internacional.

— Os sinais estão presentes, o fruto está maduro, o tempo é chegado. Mais simples e surpreendente do que a mais inusitada ficção. No Gênese lemos que Deus criou o homem e a mulher. Hoje, na Gênese do fim, lê-se nos sinais que, em breve, não haverá mais nascimentos, a esterilidade da fêmea humana não propiciará descendentes. À reprodução dos modelos de degradação da realidade do homem e do meio ambiente gera consequências imprevisíveis.

— A realidade ganhou o direito de ser mais inverossímil do que as invenções mais avançadas da tecnologia. A Lei da Causa e Efeito está começando a se cumprir. O tempo do Homo sapiens/demens esgotou-se neste Templo Terra. O atalho agenciado pelos progressos do “Reich dos Mil Anos” terá fim.

Do resumo deste discurso, os fiéis compreendem: a Terra é apenas uma das muitíssimas moradas do Pai. As profecias e promessas do Criador vão se cumprir sem traumas, catástrofes espetaculares e admiráveis. Deus simplesmente fará com que as ilusões luciferinas de consumo sejam extintas, por falta de continuidade genética da espécie. A raça humana será substituída por outra raça neste planeta? De que forma? Sobre essas coisas o pastor Antunes nada disse.

A família de Hélio sai da Igreja com a sensação de que não absorveu adequadamente as mensagens, de que alguma coisa está por ser dita e acontecer. Algo importante e decisivo foi afirmado apenas nas entrelinhas. As palavras do pastor são como um puzzle sem todas as peças. Há uma promessa de redenção, mas ela permanece vaga para a compreensão dos membros da Igreja do Salvador dos Últimos Dias.


COMBUSTÃO
HUMANA
ESPONTÂNEA

Jussara telefona para Rossi no Jornal. Diz ter conseguido o endereço dos pais de JJ Voltaire com Sérgio Russo, mestrado na área de Geopoligrafia. Rossi dirige-se ao endereço. Encontra um casal sexagenário simpático e receptivo, apesar da recente perda do filho em circunstâncias estranhas.

A dor dos pais do estudante vítima da CHE, está presente nos olhos, nas estrias das faces, na contida e penosa comoção da voz. Convidam-no a entrar no apartamento, em edifício localizado numa rua intranquila no bairro do Alto de Pinheiros. Após aceitar um chá verde, pela gentileza do oferecimento, Rossi entra na intenção da visita, tornando-a menos velada:

— Minha filha Jussara estuda Química na USP, ela e seu filho namoraram-se, tinham afinidades, apesar dos currículos com diferentes orientações disciplinares.

— Sim? Lígia, a mãe, mostra-se surpresa, o marido, Heitor, comenta:

— Ora, não será incômodo se ela vier fazer-nos uma visita. Quando o sr. telefonou, pareceu-me que estava marcando uma entrevista, investigando circunstâncias...

— Faltam respostas. Preciso tranquilizar-me. Acalmar os ânimos. O sinistro que vitimou JJ Voltaire...Tenho me perguntado, “como aconteceu?”, de que forma outras pessoas estão sujeitas a ele?

— De que maneira podemos ajudar? Indaga Lígia.

— Seu filho disse à Jussara está preparando uma tese sobre cidades perdidas na Amazônia...

— Como pode isso se encaixar com o que aconteceu? — Surpreende-se Heitor.

— Não sei ao certo, talvez não. Muitas pessoas estão cercadas por estranhas expectativas. Histórias de ameaças, preconceitos, violências. Essa coisa de combustão humana espontânea, que não tem nada de espontânea, um mistério. Ninguém parece ter uma pista. Nem a investigação policial e científica.

— Ora, ora, quer dizer, o sr. acredita mesmo nisso ou... O homem calou-se. Um reticente e incômodo silêncio seguiram-se à interrupção da fala do idoso. Este jornalista está pensando que sou trouxa? Que está querendo, afinal?

— Ele quer dizer, senhor Rossi. Lígia contemporiza, seu jornal não vai fazer sensacionalismo com a morte de nosso filho. Não é isso, Heitor?

Rossi retoma a palavra para dizer que de modo algum usaria de semelhante e mesquinho oportunismo.

— Que quer dizer o senhor com isto, a tese dele e a morte por, por... Olhando a mulher indaga: como é mesmo? Ela também se engasga nas palavras, como se recusando a acreditar nelas, ou talvez, por elas traumatizada.

— Combustão humana espontânea, pronuncia Rossi. Como podem esquecer dessas palavras carregadas de tantas conotações intensas e presentes?

— Pode uma coisa dessa ter ligação com uma tese de Geopoligrafia? Com cidades perdidas na Amazônia?

— Como vou saber, sr. Heitor? Tenho razões para estar preocupado, poderia ter acontecido, com minha filha, ela também esteve na exposição. Esses incêndios espontâneos, têm sido mais frequentes do que se poderia esperar de um fenômeno, até outro dia, raro. Precisa-se investigar o que pode haver por trás desses eventos funestos.

— Não saberia dizer nada, responde ele, gostaria de ajudar, não vejo como.

— Sobre a tese, há arquivo dela em dvd?

— Sim.

— Posso ter acesso a anotações, estudo, analisar indícios? Daí, uma pista, talvez, possa surgir algo. Uma esperança no fim do túnel.

— Aquele amigo de Voltaire. Virando-se para a mulher, pergunta, qual mesmo o nome dele ? Ah sei, é esse, Janos... Não é mesmo?

A memória de Heitor, por vezes falha, a mulher, de pronto, ajuda-o a lembrar de nomes e fatos.

— Agassiz.

— Agassiz, sim, isto, esteve aqui ontem. Ligou o computador, veio buscar coisas, DVDs, acho. Interesses de estudo semelhantes, responde a mulher. Conheceram-se na Amazônia, ficaram amigos, Pesquisavam no sentido de descobrir a exata localização de cidades desaparecidas.

— Por favor, a senhora tem o endereço dele, posso anotá-lo?

— Não sei, acho que ele mora na Vila Madalena. Vou verificar nos arquivos de JJ. Se achar, telefono para o senhor amanhã mesmo.

— Obrigado dona Lígia. Esse rapaz, Janos, também estuda na USP?

— Acho que não, falava portunhol, reservado, monossilábico. Contando com ontem, esteve aqui uma... Duas vezes, não é isso Heitor? Ele balançou a cabeça confirmando.

— Cismas de estudantes! Justificou. Os jovens se iludem facilmente. Sabe como é, por vezes acreditam em miragens, tesouros e arcas perdidas, como se fantasias pudessem ser transformadas em realidades.

— Aventura, concluiu a mulher, como nos filmes dos tempos de nossos avós, tipo Indiana Jones. Esse jornalista não sabe como funciona a cabeça dos rapazes? Esperanças, peripécias, proezas, experiências arriscadas, sonhos. Ele nunca foi jovem na vida?

Rossi nota a disposição do casal em ironizar as pesquisas do filho. Como se ele fosse um tonto, perdendo tempo com “bobagens” ficcionais que ficariam melhores num filme de Spielbergson, ou num roteiro de Tarantinoto, tipo “Um drink com Satã”. A dor de ambos, que notou ao chegar, talvez fosse apenas uma empatia imaginária. Agora não sabe ao certo os sentimentos deles.

Estão comovidos, atenuando a própria mágoa. A intensidade da mesma, se houve, se esvaiu. Não passava de uma encenação, uma farsa? Despedem-se, fica a promessa de, se encontrarem notas manuscritas, ou arquivos informatizados sobre a tese de Voltaire, telefonam.


INCESTO
MACABRO

Sabrina sobrevive em estado psi de letargia, extática e inédia. O corpo não aceita frutas, legumes, sopa, leite ou água. O prolongado jejum não afeta a juventude e a beleza. Sá prossegue jovem e linda, como se não precisasse de nada mais para manter-se viva, do que prana para respirar. Os médicos tentaram alimentá-la com soro. Mas a agulha sempre desconectava da veia até desistirem de repô-la. Analisaram-se os alimentos vomitados: há ausência de qualquer cheiro ou digestão. Seu peso permanece igual, sem atrofia de nenhum membro.

Leo, ao vê-la disponível, indefesa (uma mulher em todos os sentidos), lembra de quando ficava erotizando-se com a filha pequena, sentada entrecoxas, atraída para ele com um chocolate, um brinquedo. Ele a fazia permanecer no colo por tempo suficiente para ejacular no pijama ou na calça.

Ao perceber a adolescente mais linda e acessível que nunca, a paixão incestuosa aumenta. Ela está supostamente indefesa, o corpo ao longo da cama, os membros viçosos, os bicos dos seios redondos, durinhos, róseos, nacarados, um certo convite aos carinhos da língua. Como vai reagir se acontecer, você não vai fazer escândalo, não é filhinha?

Começa a chegar mais cedo no apartamento. Principalmente nos dois dias da semana nos quais a faxineira sai às 18 horas. Lisabeth, a mulher, dá aulas de inglês num instituto de línguas e em um cursinho pré-vestibular. De segunda a sexta, das 15 às 22 horas, está ausente.

Leo, a princípio, fica a contemplar Sabrina, pensando, “que desperdício”. Rumina entredentes: Talvez ela esteja assim por carência afetiva. Sua sexualidade juvenil precisa desenvolver-se. Sim, é isso, o papai vai te curar, filhinha.

Resmungando sacanagens Leandro chega mais cedo, às dezessete. Em uma hora a empregada vai sair. Banha-se e ouve um DVD World Music, Sons de Planeta. 7:25. Entra num hobby, vai ficar em casa. Veste-se outra vez como se fosse sair. Nádia, a doméstica, despede-se, “até a próxima semana seu Leonardo”.

— Meu nome é Leandro, Nádia. Que mulher estúpida. Mais de um ano aqui e não sabe meu nome.

— Até segunda, seu Leandro, desculpe. Um bom fim de semana. Leandro, Leonardo, pra mim não faz diferença, meu salário não vai aumentar se seu nome for Virgulino. Vê se morre esse fim de semana.

Leo destaca uma colher de chá, um açucareiro e a garrafa de uísque com medidor. Faz café com pó moído na hora. Abre uma lata de creme de leite, coloca um pouco de açúcar num copo quente, põe nele duas doses de Logan`s, sobre três doses de café. O espaço superior do copo lambuza com creme de leite, enquanto mexe a mistura bem devagar. Sim, está ok. Leo observa satisfeito o creme flutuar na superfície do coquetel, mas sem nele se misturar. “Delicioso”, diz, molhando os lábios.

Chega ao quarto da filha, senta-se na cama, começa a envolvê-la com os braços, as mãos, a boca, a língua.

— Você está linda, querida, mais do que antes. Está gostando dos carinhos do papá? Vou curar você filhinha. Sei do que você precisa. Após um instante de silêncio, os músculos da moça parecem vibrar levemente. Leo sente nesse brevíssimo tremelicar da epiderme da filha, como se um incentivo. E continua às apalpadelas.

Ela está gostando, cicia, enquanto ingere outro gole do coquetel. As carícias continuam. Sente-se libidinalmente motivado. Pega outra vez o copo em cima do criado-mudo, entorna o que sobrou com um estalo de língua. Volta-se para o corpo inerte da adolescente. Você vai ficar boa, filhinha, papai promete. Juro. Tenho tudo que você precisa.

A jovem está a flutuar a poucos centímetros acima do colchão. Perplexo, Leo admira-se com o fenômeno da levitação. Ao contrário de sentir-se inibido face à extraordinária manifestação de uma força antinatural. Sente-se atraído pelo vinco juvenil, pelas coxas entreabertas, pela penugem do púbis moreno. Extasiado, observa o corpo de Sabrina flutuar, agora, pouco abaixo do queixo. Incentivo à paixão incestuosa.

Movido por dissoluta libido, lança os lábios em direção aos grandes lábios. Após puxar para os pés da jovem a calcinha branca com motivos florais desenhados na superfície transparente, a camisola decai solta sob o corpo. Começa a lamber a parte externa adentrando aos poucos a vulva semi-aberta da jovem. A razão nega a se interpor ao desejo irracional.

Leo “tomou a nuvem por Juno”. Na insensatez dos sentidos, confunde os sussurros plangentes que se fazem ouvir no quarto, provenientes de um murmurar cavernoso, como se originado de cânticos coletivos, monacais, um incentivo à volúpia. Para ele não passavam de murmúrios de prazer.

Se os sentidos estivessem isentos de excitação, poderia reconhecer nessas tonalidades melancólicas e longínquas, o mugir fanhoso de um rebanho de ruminantes, tendo por leitmotiv os badalos de um pêndulo gótico, a marcar, lânguido, a passagem da meia-noite numa remota igrejinha alpina. Como se um coro de anjos houvesse resolvido ampará-la, sentiu a presença de uma energia amorosa e fluida, vinda, não sabe como, de uma grande distância, para, de alguma forma impedir ou castigar o responsável pelo delito torpe. Mas Leo não tinha atinado para as advertências. Tudo que desejava: usufruir a beleza da juventude de Sabrina, e sair incólume do incesto.

No melhor do bem-bom, sente a pressão inexorável, austera, o implacável fechar de coxas ao redor do pescoço. Começa a debater-se como um bailarino tresloucado a tentar em vão equilibrar-se na ponta dos pés para não perder contato com o chão. A ponta dos dedos dentro do sapato distancia-se aos poucos do piso do quarto. Já não consegue contato com ele, as pernas se debatem no vazio.
A cabeça roça a luminosidade do lustre no teto. Agarra-se em desespero de causa às coxas da filha, mas o diáfano tecido da camisola não permite a aderência dos dedos. As mãos escorregam. Ele tenta falar, gritar, se desculpar, argumentar, pedir socorro. A força estranha não quer saber de diálogo. O corpo de Sabrina levita em direção ao pequeno terraço do quarto, no nono andar do edifício.

Nos olhos esbugalhados de Leandro, uma esperança: as janelas de vidro, acesso ao terraço, estão fechadas. Dura pouca a expectativa de permanecer, ainda que incômodamente, no interior do ambiente. As janelas da sacada correm através dos trilhos para os lados, como se alguém as estivesse abrindo. Escancaram-se à esquerda e à direita. Na sala penetra um vento úmido e frio.

Milhares de pingos da garoa gelada adentram o quarto, umedecem os lindos cabelos castanhos, longos e soltos, da jovem. Suspensos na vertical do couro cabeludo, fazem-se esvoaçar lindamente, como se personagem de uma pintura surrealista de Ernst Fisher, Salvador Dali, De Chirico, ou de um desenho de Peticov ou de André Carneiro.

O rosto de Leo, colado aos pentelhos de Sabrina, começa a ficar afogueado ao roçar as proximidades da xereca. Ele move o pescoço para os lados, quer ver a progressão inusitada do estranho evento. O corpo dela, na horizontal, passa quase atritando com a parte superior da meia-lua da janela de formação convexa, arredondada, que separa o interior côncavo e arqueado do vazio. Os vidros das janelas adjacentes estouram.

Lascas rasgam, em cortes profundos, a coxa direita, a face esquerda, as costas e a testa da garota. Ele olha admirado os ferimentos fecharem-se, a pele dela voltando ao normal. Os cortes superficiais em seus próprios braços e na testa continuam abertos. Atrita as pernas, os pés debatem-se inutilmente. No peitoril do terraço, as pontas dos sapatos tentam em vão prender-se nele e impedir que o corpo fique suspenso no espaço que separa da calçada.

A enfermeira de uma senhora idosa, vizinha ao prédio em frente, distraída, está a olhar para algum lugar à esquerda. O velho puxa insistentemente a manga comprida do avental branco da mulher na altura do braço. A princípio ela ignora e afasta-se. Logo depois, virando o rosto para a direita, não consegue sustar o espasmo de espanto ao deparar-se, pasma, hirta, boquiaberta, com o espetáculo fantástico:

Os membros de Leandro a debaterem-se desesperadamente dessa altura fatal, na iminência de despencarem. O corpo preso pela cabeça entre as coxas de Sabrina, luta, patético, em extrema aflição, para não desabar da grande altura. As mãos buscam firmarem-se, ora na ilharga esquerda, ora na direita. Mas o baixo-ventre da moça não oferece nenhum ponto de apoio adequado. Dá graças à pressão das coxas dela que o mantém suspenso.

Um senhor idoso e o rapaz próximo, seu neto, provavelmente estão absorvidos pelo inusitado do acontecimento. Do apartamento em frente, observam a cena. O homem velho recua um passo, a testa sobressaltada, os músculos contraíram, os olhos atônitos, pupilas fixas e dilatadas. As mãos do jovem desprendem-se do parapeito, como se temendo a altura até então subestimada, retrocede dois passos. A enfermeira, levando as mãos ao rosto, pasma-se. Inquieta, ajoelha, volta a apoiar as mãos no peitoril.

O paciente da cadeira de rodas mantém os olhos esbugalhados na direção do evento, numa atitude de quem está possuído de uma indizível curiosidade e ao mesmo tempo tentando esconder-se dela. Apavorados, aos poucos, nem sentem que recuam para dentro da sala, apoiando-se nas cortinas. A brisa molhada do entardecer atinge-os, e os torna mais vulneráveis a essas absurdidades surreais, inacreditáveis.

Trêmula, a mulher persigna-se, enquanto tenta balbuciar a fórmula litúrgica: “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos”. A seguir entra na sala onde o paciente havia se estatelado. Tenta ajudá-lo a erguer-se, mas não pode fazer nada, exceto ligar para os paramédicos da UTI do plano de saúde. Está em curso um ataque cardíaco.

Hesitante ela faz um chamado de urgência, mas as palavras mal conseguem ser pronunciadas. Ao desligar o vídeofone, olha para fora, certifica-se de que, realmente, a imagem surreal continua lá, onde não deveria estar. Sim, essa coisa fere o bom senso, as regras básicas da lógica e da razão: prenuncia algum outro acontecimento estranho e trágico.

A enfermeira-chefe do Heart Point liga de volta, após anotar a sequência numérica do vídeofone através de um identificador de chamadas. A mulher, à meia voz, atende o vídeofone e suplica: “Urgente, depressa, por favor”: as palavras não saem corretamente da boca. Ela gagueja outra vez os apelos de maneira teimosa. Do outro lado da linha uma ambulância especialmente equipada é acionada logo, para atender um chamado tipo “Código Cacau”: urgência máxima. As sirenes são ligadas em direção ao endereço.

Ao sentir as coxas de Sabrina entreabrir-se mais, a superfície molhada do peignoir rasga-se. Ele fica pendente por rápidos momentos. Até as últimas fibras diáfanas da camisola romperem-se por inteiro. Os membros aflitos debatem-se em desespero. Ele berra rumo as pontas afiadas do gradeado de proteção. O baque surdo próximo a um casal de inúteens que estavam sentados num banco a namorar.

O corpo cai a poucos centímetros do casal. Assustados, interrompem um chupão de língua. A agitação dos músculos, as contrações involuntárias do corpo não cessam logo. Súbito, parece, por momentos, imobilizar-se no piso do pátio. O zelador liga para a “justa”. Os tremores continuam até uma ambulância chegar, estacionar em frente. Em poucos minutos Leo é conduzido ao necrotério.



“INIMIGOS
INVISÍVEIS”

Ao caminhar do escritório ao estacionamento, Hélio sente que já não pertence por inteiro a esse mundo. Deve estar realmente infectado pelo H3V ou, pior, por uma de suas malditas variantes. Um dos pés pisa na calçada da rua e o outro no barro turvo da cova. Os transeuntes passam ao redor, mais longe que próximos dele. A sensação esquisita: nem aqui nem além. Como será do outro lado? Haverá mesmo outra dimensão? Sente o corpo a meio caminho dos vermes.

A alma, se existe, vai estar aonde, como? As percepções reduzidas a quê? Se um vírus tem esse poder, Deus também é um vírus? Depois de passar dessa para a melhor, serei também um microrganismo invisível? Ou servirei, apenas e suficientemente, à mesa farta do corpo inerte, banquete dos tapurus?

As indagações do advogado multiplicam-se num contraditório de sensações. Pode ser que não seja hospedeiro, mas, se não, por que os médicos solicitariam outro exame não fosse para confirmar o resultado positivo do anterior? Uma simples macromolécula, invisível a olho nu, tem poder para despachar milhares de seres humanos para nenhures, milhões.

Hélio especula de si para consigo sobre a gênese do H3V e as temíveis variantes. Acredita ser o vírus extraterreno. Como pode ser terrestre, se causa tamanho estrago, engana e aniquila as defesas normais do corpo humano? Se alguém ou um grupo político realmente zelasse pelo futuro da humanidade, o antídoto deveria ter sido pesquisado e descoberto, logo no primeiro ano da manifestação viral. Hélio balbucia frases, numa tentativa para manter-se atualizado na vigília à saúde:

Da primeira vítima identificada na década de cinquenta, muito tempo passou. O registro mais antigo de um caso de Aids, de 1959: um homem de etnia banto, em Leopoldville, atual Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, ex-Zaire.

Mas os cientistas, os políticos, os militares, estão ocupados com verbas para pousar em Marte. Com sondas em direção a Saturno. No momento, toda a água potável da Terra não chega a 1% da água doce disponível...Mas os cientistas e os políticos estão querendo colonizar outros planetas. Se os EUA são mesmo uma democracia, aonde está o plebiscito que autorizou o uso dessas verbas? Ele permanece a especular com seu Eu interior, subjetivamente:

Talvez a Aids tenha sido plantada por inteligências de fora, com a finalidade de diminuir a quantidade de habitantes, para que a Terra possa prosseguir habitável no 3ª Milênio. Hélio segue nessa mórbida autopersuasão: Alguém está sabendo que precisa fazer alguma coisa, ou este planetinha estará, se administrado por terrestres, em vias de se transformar num pasto de moscas.

Está nítido, ele é hospedeiro do H3V. E do ponto de vista do vírus ? Essa coisa a ganhar espaço em suas entranhas, a contaminar e multiplicar-se no sangue, nas células, a infestar corpo e mente, um pouco mais, a todo inevitável instante de medo, angústia em cada palavra, ação, pensamento:

Está aqui comigo, vivendo de minhas células, de meus fluidos, compartilha minhas percepções. Existe comigo. Talvez seja melhor assim. A velhice é uma humilhação das células. Há males que vêm para bem.

Divide comigo o ar que respiro, os alimentos que ingiro. Não é animal, vegetal ou mineral. Talvez seja uma maneira, dentre outras, de algum ser superior, sem conflito, ir retirando aos poucos a raça humana da Terra para que uma outra espécie venha habitá-la. Talvez insetos... Vai saber. As especulações terminam ao avistar a filha.

Carla o espera. Na entrada da garagem, cumprimenta:

— Tudo bem, filha?

— Sim, você está bem, pai? Entram no carro, posicionam a fivela na extremidade fixa dos cintos de segurança. O trânsito está “normal”, ou seja: em transe. Os carros avançam aos poucos, como se aprendendo a fazer rodar os pneus. Os motoristas demoram meia hora para vencer um único meio quilômetro em direção às residências. O de Carla e os outros 10,9 milhões de carros nas ruas e avenidas de Sampa.

Nada está bem, por que perguntar? Hipocrisia: Perguntar se tudo está bem quando tudo está obviamente mal. Esses pensamentos outra vez. Serão influências do vírus ? O farol aberto no verde, mas os carros permanecem parados. Um e outro buzinam nos ouvidos saturados de poluição sonora. O celular contribui com uma sonoridade a princípio tímida, que logo se torna insuportável pela repetição. É desligado.

Em poucos minutos a quantidade de queixas sonoras aumenta. Até que, gradativamente, a poluição auditiva ganha de vez o ar. Os ouvidos doem, as cabeças fervem, os palavrões fluem, a princípio, apenas para dentro, numa implosão do protesto coletivo. Das entranhas dos ressentimentos, as agressões pipocam guturais. Uma aqui, outra ali, garganta abaixo, garganta afora, somatiza-se a inquietação coletiva.

Lábios silenciosos, as buzinas ferem os tímpanos. Na tela colorida da telepublish multimídia, da esquina, o grande painel luminoso mostra as figuras risonhas, supostamente simpáticas, de um banqueiro. Elas se sucedem, a prometer todas as benesses do paraíso perdido para quem abrir uma conta no “Banco que realiza os sonhos. Os sonhos de felicidade de todos os seus correntistas”.

Pai e filha, outros milhares de leitores de jornais, sabem, via reportagens da imprensa escrita, que o banqueiro da propaganda está investindo na imagem institucional, arranhada com o novo escândalo da venda irregular de títulos públicos. A CPI não puniu uma única pessoa física dentre os mandantes. Ao contrário, o “chefe dos chefes” do escândalo ficou mais forte, candidatou-se ao desgoverno do Estado, com a conivência do Legislativo benevolente, do Judiciário complacente e do Executivo incompetente.

Carla e o pai leram os jornais do dia. Eles noticiaram: “O Presidente recebeu, por solicitação pessoal, o candidato mais sub-judice que São Paulo já teve”. Noticiaram também a opinião do deputado Inocêncio Pefelia: “O Congresso está cheio de esqueletos nos armários”. Não se sabe ao certo se estava referindo-se aos desafetos assassinados da bancada de parlamentares ruralistas do Congresso.

Enquanto o trânsito permanece inerte, Carla pensa: Esse sujeito devia estar na cadeia, mas está aí, ampliado, confiante, colorido. Zombando das instituições, em centenas de outdoors e painéis, na Paulista, na Consolação, na Henrique Schaumann, na Av. Brasil, nos shoppings centeres, nas revistas, nos jornais, nos cinemas, nas emissoras de rádio e na tvvisão.

Carla desperta destas conjeturas, assustando-se com sucessivas trombadas no espelho retrovisor. Ele fica avariado pelas batidas dos guidons de motos yuppies e de boys motorizados. As motocicletas continuam colidindo nas laterais dos carros. Os motoqueiros apressam-se em seguir adiante, como se nada tivesse acontecido. A estridente sirene de uma ambulância força passagem entreveículos, outra, a do corpo de bombeiros, em um minuto a substitui.

Outros dois carros do corpo de bombeiros descem a pista do lado oposto da Avenida Paulista, abrindo passagem em direção ao bairro do Paraíso. As diferentes vibrações sonoras das sirenas policiais se misturam à poluição das buzinas, irritam ainda mais a membrana interna dos ouvidos. Os motoristas comprimem os carros para os lados, obtêm espaço para a ambulância, as viaturas, e os bombeiros passarem.

A poucos metros de Carla e Hélio, um carro bate no pára-choque traseiro de outro. O motorista da frente, irritado, começa a praguejar, enquanto o outro responde as agressões aos berros. Um deles saca a arma e atira seguidas vezes na direção do pára-brisa adversário. Os tiros estilhaçam o vidro, ouve-se o grito de uma pessoa atingida por um balaço. Outro motorista, próximo, liga, no celular, para a polícia.

Em quatro minutos uma viatura abre caminho em meio ao engarrafamento. Alarma estridente, aberrações sonoras em direção ao sinistro. A sirena de outra ambulância reforça os ruídos da poluição auditiva. Os tímpanos sobrecarregados, ouvem os berrantes das viaturas pedindo passagem para outro paciente cardíaco com urgência de chegar a UTI mais próxima. Carla sente os ouvidos sangrarem enquanto olha o motorista agressor, ainda empunhando uma pistola calibre 45, tentar fugir para não ser preso em flagrante.

As crianças nos carros estão por demais quietas, concentradas. A mocidade de Carla, ao lado do pai, está em transe. Olhos fechados, rosto inexpressivo. Talvez esteja a acontecer um contato inconsciente entre mentes infantis e juvenis, ou entre todas as mentes afeitas a uma certa onda de vibração psi. O certo é que, pela primeira vez na vida, muitos desses jovens não estão sentindo-se escravizados e inúteens.

Um contato psi coletivo, secreto, inusitado, está em andamento. Alguns adultos praguejam e buscam acalmarem-se ouvindo os Cds e as fitas, os vidros dos carros levantados, o ar refrigerado ligado.

Os mais jovens, como que indiferentes à inadequada realidade perceptiva dos que atingiram a idade vigorosa e, presume-se, o privilégio do uso da razão, estão em outro nível de vibração, adentrados num universo mental paralelo. Uma sonoridade inusitada permeia os níveis mais profundos das mentes. Um timbre de acústica imperceptível, suave e harmonioso, possivelmente acessível apenas às crianças e aos inúteens, se faz presente. A intensidade da ressonância influi no sistema nervoso central de algumas pessoas de idade intermediária.

Carla, de olhos fechados, fixa o olhar interior no atirador fugitivo. Para ela é como se o criminoso estivesse num campo de força dentro do qual ela tem condições de fazer valer a vontade. O asfalto falta sob os pés do criminoso. Outra vez ele tenta equilibrar-se e sair correndo, mas os sapatos não aderem ao solo. O corpo curva-se em direção ao chão, ele protege-se da queda frontal com as mãos, para logo descobrir, estupefato, que está flutuando a poucos centímetros do asfalto. É um acontecimento tão fantástico, que outras pessoas que estão a observá-lo nem notam.

O cara não sabe ao certo o que está acontecendo. Mesmo achando muito estranho, supersticioso, indaga-se: Talvez algum tipo de energia da pessoa que acertei com os tiros esteja a impedir-me a fuga. A tentativa repete-se outras vezes com o mesmo resultado inútil, até que um policial pega a arma e o conduz ao calçadão onde é revistado. Pernas abertas e mãos estendidas na vertical da parede. O prisioneiro é algemado e conduzido à viatura estacionada sobre a calçada. Carla sente a incrível sensação de ver tudo sem precisar abrir os olhos.

Dentro de um carro Ford ultraracing, uma senhora reclama do trânsito cada vez pior. Olha para o menino ao lado, superconcentrado, olhos fechados como se em transe. Ela apenas intui, sem admitir racionalmente, que ele está somando forças, provocando os eventos, de alguma forma fazendo parte deles. A mulher começa a sacudir o braço do garoto e a chamá-lo:

— Laércio, queridinho, fale comigo, vai, pára de fingir que está dormindo. Fica esperto que eu te levo ao McDonald`s.

Neste momento o capô do carro começa a vibrar, ameaçando desprender-se da parte frontal, a partir de uma força que ameaça se transformar em violência generalizada. Uma espécie de névoa impede a visualização através do vidro do pára-brisa. A mulher grita, berra, entra em pânico.

Em seu histriônico desassossego, imagina estar num pesadelo. O traseiro do filho flutua a quinze centímetros acima do banco de passageiro. Ela pressiona os joelhos da criança para baixo na tentativa de fazê-lo voltar à posição normal. Não consegue. Fica ainda mais histérica e, rápida, abre a porta, sai do veículo aos brados, no momento em que o capô faz ranger as dobradiças, impulsionando-se para o alto com vigor extraordinário, a desafiar a força da gravidade.

O capuz de outro carro, impelido por uma energia física semelhante e sobre-humana, voa sobre sua cabeça, forçando-a a voltar para a proteção "uterina" dessa sua extensão, desse deus globalizado, o automóvel. Ela acompanha a trajetória de outro capô que também escapuliu da estrutura mecânica de outro carro, entortando-se com estardalhaço frente ao pára-brisa de um veículo próximo. Alguns estilhaços do vidro frontal a atingem. Ela está a apenas cinco metros. Apressada, apavorada, volta, abre a porta, e senta-se outra vez no banco do motorista.

— Está possessa. Esta avenida está endemoninhada. Esta cidade está enfurecida. Acorde Laercinho, filhinho. Pelo amor de Deus, acorde. Fale com a mãe. A mamãe te ama filhinho, fale comigo, agora, prometo que te compro aquele nike novo.

Em outro carro, outra mãezinha promete à filha: “Meu bem, pare com isso e mamãe te dá aquele conjunto recém lançado da Nikeplus.” Lançamento novo. Aquele que você viu na tv.

Logo após ganhar outro absurdo e inexplicável impulso para o alto, como se fosse levantar vôo e levar o carro na vertical consigo, a parte anterior de uma camioneta Cherokee 2035, cabine dupla, é suspensa. Os faróis acesos do veículo apontados em direção às nuvens. Parece querer acelerar ruma a elas, o capô projetando-se para o alto.

Quando o capuz do carro, de volta ao chão, impacta no asfalto da avenida, a água transborda do radiador em jatos quentes que se projetam à distância, provocando reações extravagantes e barulhentas do motor. Ao voltar à posição original, as rodas mais se pareciam as superfícies elásticas de um iô-iô gigante. A visão é absolutamente impressionante. Por fim pára, ao bater as rodas do lado direito no teto de outro automóvel e virar, ficando com as quatro rodas para cima, capô com capô, sobre o Vectros 8 ao lado.

Pessoas que apenas observam ficam cada vez mais assustadas. A coisa acontece com outros automóveis, em breve poderá acontecer também com elas. Um motoqueiro surpreende-se ao cair da moto sobre o teto de uma banca de revistas, enquanto a motocicleta projeta-se para dentro de um basculante semi-aberto de vidro fumê, no segundo andar de um prédio de escritórios.

O cantor e apresentador João Grow, ao lado da Lila Couto, estão num carro da MTVex. Enquanto o Grow sorri inquieto, ela olha para os lados como quem delira, a querer acreditar, mas sem conseguir, nos muitos efeitos especiais que se desdobram ao redor. Parecem estar divertindo-se, pelo menos enquanto não são atingidos por nenhum estilhaço.

As dobradiças do capuz do utilitário de cabine dupla, próximo à perua da MTVex, não suportam o peso total do veículo e desprendem-se. Uns e outros capôs flanaram sobre outros carros como se fossem leves folhas-de-flandres ao impulso de um forte vento que, paradoxalmente, fazem-nos flutuar em câmera lenta.

Uma delas cai sobre o teto de uma viatura policial e a outra se arrasta na superfície superior e lateral de alguns carros. Após bater forte num porte, atinge o teto e as partes laterais de outros carros, causando arranhões na lataria de meia dúzia de veículos. As pessoas encolhem-se nos bancos, amedrontadas. Os eventos acontecem como se em câmara lenta. A parte dianteira de um carro desloca-se para cima e desaba, a seguir, sobre o porta-malas de outro automóvel. Um policial pede reforços pelo rádio, enquanto observa, atônito, o capuz de um carro girar veloz e ameaçadoramente entre os automóveis.

Algumas luminárias dos postes da Av. Paulista, em forma de flor das almas (malmequeres-negros, trevos de quatro folhas), esfacelam-se em milhares de fragmentos. Suas sombras, à luz vespertina, projetam-se no asfalto da avenida como se fossem condecorações nazistas, em forma de cruz gamada.

As sirenas de ambulâncias fazem-se ouvir, os carros de bombeiros e as viaturas policiais concentram-se no perímetro das quadras onde ocorrem os fenômenos. Barricadas policiais são erguidas, fitas de plástico amarelo estendidas ao redor da área privativa, ligam-se aos vários cavaletes, após traçados os limites impróprios para circulação, entrada e saída de pessoas ou veículos. A área está sendo interditada.

Alguns dos motores de explosão alternada dos automóveis explodem, literalmente, pegam fogo. O combustível e o ar de dentro dos cilindros inflamam-se, as labaredas sobem de debaixo dos capuzes, mesmo dos que se mantêm em vibração ou fechados. Pessoas tentam apagar os focos de fogo com extintores de incêndio dos carros. Sirenes ligadas dos bombeiros fazem-se ouvir. Incêndios foram detectados em vários prédios no perímetro da Paulista. Há grande movimentação de viaturas e ambulâncias.

As luzes, ora apagadas, ora acesas, das luminárias em trevo, continuam pipocando. Os sinais de trânsito piscam do vermelho para o verde, sem interrupção. As cores mudam em cintilações coloridas, fundem-se com as dos vidros estilhaçados. Os cacos, sob a influência de uma luminosidade prismática, caem sobre o asfalto e os veículos, como se fossem partes desprendidas de cristais. Os passageiros saem dos coletivos e dos táxis, refugiam-se sob as marquises dos prédios, lugares supostamente mais seguros onde buscam abrigo. Os estilhaços das paredes de vidro dos prédios continuam a projetarem-se, ora para dentro, ora para fora dos ambientes fechados. Algumas pessoas estão caídas, com membros a sangrar. Transeuntes tentam protegê-las, conduzindo-as para dentro das portarias dos prédios, à revelia das dificuldades impostas pelas normas de segurança dos condomínios, onde esperam ser socorridas.

Os porta-malas abrem-se subitamente, são puxados para cima, forçados a um movimento surpreendente de verticalização. Os veículos balançam a partir da mesma força ascensional atuante nos capuzes. Como se fossem cavalos bravios recusando-se a serem domados pelos motoristas. Algumas portas e capôs se desprendem dos gonzos. A ruptura acontece quando o peso torna-se demasiado para a resistência dos eixos que prendem as dobradiças. Elas abrem e fecham, entortam, giram nas portas dos porta-bagagens, impelidas para cima, contra a força gravitacional. O espetáculo alucina. As pessoas não sabem como reagir. As que estão dentro desesperam-se com as dificuldades para sair, as que estão fora não ousam aproximarem-se. Alguns carros permanecem como se os eventos estranhos não lhes atingissem.

Alarmes contra roubos começam a soar incômodos. Os estrépitos, os sons patológicos da cidade, parecem reunidos num campus manicomial, popularmente conhecido por avenida Paulista.

Hélio observa com apreensão as nuvens escuras e muito baixas, encobrindo os últimos andares dos prédios, em incansável convulsão cerúlea. A impressão de um cenário excêntrico, pleno de extravagâncias, pronto a engolfar de vez, e fazer desaparecer sem complacência, os carros e seus ocupantes. Hélio percebe que Carla está ausente dos fatos, como se a alienação reinante, deus queira que provisória, não tivesse ganhado seu coração, sua mente, para a estranha natureza paranormal do evento. O carro de Hélio é um dos que permanecem sem alteração. Não sai do veículo porque Carla está em transe e ele não quer que ela fique sozinha. E há também o medo de ser atingido pelos milhares de fragmentos de vidros projetados para todos os lados.

O olhar de Hélio desloca-se para a vidraça inteira que separa a entrada do banco, principal agente do mais recente escândalo financeiro, que se esfacela com grande estardalhaço. Exceto pelas luminárias de teto das viaturas e ambulâncias, e por algumas luzes das janelas dos prédios, o trecho da Paulista entre a rua da Consolação e a ministro Rocha Azevedo, permanece às escuras, iluminado, de quando em vez, pelas faíscas que se projetam dos motores fumegantes e das luminárias em curto circuito.

Dir-se-ia que os enigmáticos incidentes estão sob severa investigação, e que os policiais não foram de todo surpreendidos por eles. Os socorros são providenciados com presteza, e agem dentro de uma estratégia previamente elaborada, como se já tivessem, em outro lugar da capital, enfrentado ocorrência semelhante.

— Improvável! Pensa Hélio, que outro acontecimento análogo tenha ocorrido, sem que a imprensa tivesse noticiado.

Quando os estranhamentos pareciam ter cessado, uma camioneta, impulsionada por uma catapulta invisível, sobe em arco das proximidades do Museu de Arte de São Paulo, e vai cair sobre uma viatura policial estacionada na calçada, frente ao prédio da Justiça Federal.

Dos policiais que ouviram o estrondo e observaram a incrível impulsão do veículo, alguns deitaram na calçada embaixo das viaturas, outros, saíram correndo às pressas das proximidades, distanciando-se do local do impacto. Duas camionetas da PF ficaram esmagadas. A velocidade de atrito foi posteriormente calculada em 150 km/h. Um cineasta amador filmou tudo e negociou o filme com a Rede Globo, que passou a exibi-lo em seus telejornais.

As pessoas que permaneceram dentro dos apartamentos comerciais, mantiveram as expressões faciais apavoradas e apreensivas, devido às ameaças sucessivas: marcas sanguíneas de ferimentos, rasgos nas vestimentas. Os programas normais das emissoras de rádio e tv vão sendo substituídos por flashes do enigmático evento. Os jornais e revistas não falam de outra coisa. As tiragens aumentam em até três vezes. Para a imprensa escrita, falada e tvvisiva, a coisa estava influenciando os espectadores, ampliando os lucros, fazendo crescer o faturamento.


A “TEORIA
DONE”

Jussara atende ao vídeofonema da mãe de JJ Voltaire, solicitando presença numa visita:

— Estou curiosa para conhecê-la. Só agora sei que meu filho tinha grande carinho por você. Até ontem ignorava, quando achei este envelope, entre seus pertences, com um bilhete e um DVD para ser entregue a você, se algo acontecesse. Aconteceu.

Jussa ignorava ser tão especial. O namoro com o sinistrado pela CHE foi inconsequente. Não para ele. Atração sexual à primeira vista. Um fogo de palha, noventa dias, não sessenta (como havia dito para o pai), sem prejuízo da amizade, das afinidades intelectuais.

Achou estranho que ele estivesse sob pressão. Apressa-se em fazer uma visita à mãe de Voltaire. No dia seguinte, ao chegar ao apartamento dela, sente-se pouco à vontade para confidências, com essa mulher que, nesse momento, parece desolada e sozinha.

Trocam impressões sobre os acontecimentos. Jussara interessada em saber: Voltaire deixou para ela um DVD, por quê? Contém a curiosidade. Conversam, mostrando-se mutuamente impressionadas com os desdobramentos dos fatos.

— O Jornal Nacional está se transformando num evento noticioso mais fantástico do que o Fantástico dominical. Lígia provoca-se: As pessoas estão se dando conta de estranhamentos incomuns. As autoridades não conseguem explicá-los.

— Não há padrão de explicação convincente, exceto a teoria de um escritor brasileiro. Ele concluiu que a mente está revoltando-se contra forças sociais minoritárias muito fortes, que fazem questão de manter as forças sociais majoritárias deformadas e desinformadas.

— Sei! A “teoria Done”. Segundo esse escritor, o império da mídia tvvisiva, através da propaganda subliminar, transforma a mente das crianças dos países pós-neopsicolonizados, em fanáticas ruminantes de hambúrgueres e programas de infantilização mental irreversível.

— Cultura trash, lixo informacional em todos os lugares, a mente coletiva revolta-se, forças virtuais ganham realidade. Eventos parapsicológicos substituem a falta de participação e a política de exclusão social.

— Reação inconsciente, coletiva e subliminar, às pressões que anulam os esforços diários das pessoas por crescer, impedindo-as de desenvolver e progredir, mental, intelectual, espiritualmente.

— Há uma revolta calada contra as impossibilidades. Vêem frustrados seus esforços por melhor qualidade de vida e sobrevivência. Pressões inconscientes chegaram a um tal limite... Tensor das tensões... Ao tentarem se libertar das pressões, criaram um Horizonte Maligno de Eventos.

A resposta de Lígia surpreende a visitante. Ela não é apenas uma mulher de meia idade, mas uma senhora atenta, com uma percepção em estado de vigília, bem mais jovem e informada do que a média dos tvespectadores que se informam via programas de domingo.

Jussara percebe: Voltaire tinha uma mãe cabeça.

Talvez não precise de contato mais íntimo com a realidade. Jussara muda de tom. Cria-se uma atmosfera de respeito mútuo e não de mútua pusilanimidade. A realidade das pessoas é mais que uma mandala neo-pós-new-age, como querem alguns.

— Quem diria, hein! O que é “bom” repete: todo pilantra político quer se reeleger.

— Os políticos continuam deliberadamente ignorando o significado da palavra Ética. Sem Ética, está como sempre esteve. Sem Ética qualquer edifício da cultura e da civilização, desaba, os pilares da argamassa política dos conchavos entre os três poderes da “Lei de Jérseyton”.

A conversa aos poucos se desdobra rumo aos interesses pessoais de Jussara e Lígia:

— O que me surpreendeu mais é que JJ estava prevendo algo estranho. Algum acontecimento nefasto. Por que se sentia ameaçado? Jussa pensava nas frases: “Se algo me acontecer, entregue este DVD a Jussara”.

— Não tenho a menor idéia do que poderia fazê-lo sentir-se ameaçado. Ele não era de falar muito. Andava cismado, apreensivo, inquieto, após ter voltado da última das viagens à Amazônia, onde efetuou as pesquisas sobre as cidades desaparecidas. Nessa viagem conheceu Agassiz.

— Agassiz, esse nome não me é estranho...

— Espere um momento, por favor. Dizendo isto Lígia sai da sala. Ao voltar traz uma foto de uma dúzia de pessoas numa hospedaria no meio da selva.

— É esse, à direita dessa senhora.

— Lembro-me. Era um cara muito “na dele”. Fazia mestrado em Engenharia Florestal na Universidade de Manaus. Espanhol, se não me engano. Antes de vir estudar no Brasil, concluiu um curso... Não sei bem... De Topogeografia, na Argentina. Vidrado nos mistérios da floresta.

— Voltaire sabia convencer, comenta Jussa. De início achei as pesquisas sobre cidades perdidas, veleidades, quimeras. Estava sendo mais realista que o rei. Agora acredito que essas cidades existam mesmo. Uma intuição me diz que elas têm muito com esses eventos fantásticos.

— Por que a mudança de opinião?

— Ele sabia defender as idéias nas quais acreditava. Quando leio sobre Manoa, das evidências que havia colhido nas pesquisas sobre ela, fico achando que existe mesmo. Onde há fumaça há fogo.

— Os índios na Amazônia acreditam que os que buscam por ela sempre desaparecem. É fato que muitos membros de expedições não puderam ser encontrados, apesar das buscas.

— Umas poucas pessoas mais afoitas não despertariam suspeitas, mas dezenas delas sumirem, não é um pouco demais? Pode parecer realismo fantástico, mas a realidade por vezes sabe ser mais surpreendente que a imaginação.

— Perdoe Jussara, se mudo de norte bruscamente. Você se importa em me dizer o que sabe sobre combustão humana espontânea? As condições nas quais pereceu Voltaire são como as das outras vítimas? Essa coisa ameaça tornar-se epidêmica?

— O pouco que sei, talvez a senhora saiba. Um odor forte, adocicado e pegajoso, como se da queima de incenso produzido com resina natural, no local em que as pessoas são reduzidas a pó. Por algum tempo, nele permanece uma espécie de neblina azulada.

Jussara não se sente bem em falar do ocorrido. A senhora parece ter superado o trauma da perda de Voltaire mais rapidamente do que eu. Lígia empatiza o incômodo de Jussara:

— Desculpe minha filha, tudo que sei sobre isso é o que publicam os jornais. Meu marido não fala, nem lê, parece isolar-se, querer esquecer. Você é jovem, está quase todo dia próxima ao local onde aconteceu. Deve saber mais. Se não quiser falar... Compreendo.

— Tudo bem, essa coisa é ainda muito estranha para ser aceita. Há uma teoria estúpida sobre alcoolismo. Pessoas que bebem demais estariam mais sujeitas à CHE, nada científico. Voltaire bebia pouco, não faz sentido. Nas cinzas, finíssimas, há sempre a presença de um líquido arroxeado.

Para Jussara a conversa está mesmo incômoda, pensa em sair o mais breve possível da presença de Lígia. Quer estar sozinha, precisa olhar o que contém o DVD, mas não deseja mostrar-se ansiosa. Afinal, não fosse ela, não teria esta última ligação com a memória de JJ Voltaire. Prossegue como se estivesse à vontade:

— Por vezes sobra algo das extremidades do corpo. Um pé ligado a um pedaço de perna, uma mão, ou o crânio não é de todo queimado. Aconteceu sobrar uma mão, um pé de Voltaire? Gostaria de perguntar. Pelo amor de Deus, que pergunta mais macabra. Não, não vou fazê-la.

— De meu filho só me devolveram cinzas, balbucia Lígia, como se tivesse captado a interrogação da moça. Sim, agora lembra, a cor arroxeada impregnada numa parte das cinzas. A princípio supôs que fosse do colorido do piso, ou de algum objeto que tivesse se dissolvido próximo à combustão. Sombria, essa conversa, por mais amigável e íntima que seja, termina parecendo uma fofoca medonha. Ela, a princípio tão curiosa, sugere:

— Se você não se importa, não vamos falar mais nisso, por favor.

Lígia, agora sim, parece ser uma mãe ainda traumatizada com o desaparecimento do filho. Que preconceituosa, por que deveria ela comportar-se como uma mãe padrão, com sentimentos e reações triviais? Na realidade, tudo que fiz até agora foi impregnar de preconceitos esta conversa.
As duas mulheres ficaram emocionadas ao memorizar o evento. Toda ausência é atrevida, como disse o poeta. Menos quando se trata de uma pessoa morta, exceto em casos extremos, tende naturalmente a ser positiva. Ao se despedir de Lígia, fica a impressão de confiança e amizade.

Ao sair da casa da mãe de Voltaire, Jussara, ansiosa lê a mensagem dirigida a ela em DVD por Voltaire, adia outros compromissos. A ansiedade a conduz para o quarto no apartamento onde se encontra o micro MMX/Live//BG.
JJ costumava trabalhar no programa NEW/2035. Se os arquivos gravados em DVD tiverem nele, ela não terá dificuldade em acessá-lo.

Ligou o micro, encaixou o DVD no drive, a telinha solicitou uma senha. Senha? Como vou saber qual? Tentou uma, duas, várias vezes. Uma crescente ansiedade dela se apodera à proporção que digita nomes que não permitem acesso. Até que, como não pensou nisso? Simples, mais simples do que poderia imaginar. Voltaire a chamava de JU. Após digitar a primeira sílaba do próprio nome, o “Arquivo Jângal” abre-se, afinal. A ansiedade dilui-se. Esses breves momentos pareceram anos-luz.


O “ARQUIVO
JÂNGAL”

Após digitar a senha Jussara vê aparecer na tela do monitor um bilhete: JU, alguma coisa definitiva aconteceu comigo para que Lígia tenha entregado este arquivo em mãos. Por que você? Porque pessoa de minha confiança. Seu pai jornalista, quem sabe possa se interessar pela história. Os fatos podem parecer fantásticos, mas pertencem ao mundo real.

Muitas pistas sobre Manoa (cidade perdida da Amazônia) consegui ainda em São Paulo, em contatos aleatórios dentro da USP. Informações foram investigadas pessoalmente, quando estive em Manaus e Santarém, nas bibliotecas de universidades do norte, através de pesquisas de campo. Outras chegaram às minhas mãos por meio de pessoas que não perderiam tempo com leviandades.

Relatos verbais indígenas confirmam a existência da cidade perdida, mas as tribos estão determinadas a calar. Não fornecem informações mais precisas sobre a localização dessas e de outras cidades. Os índios mencionam vagamente um sítio hostil, na zona leste da Serra do Roncador, no Mato Grosso, próximo aos leitos dos rios Xingu e Verde (também conhecido por Teles Pires ou São Manuel), vizinhos do Rio das Mortes, numa localidade onde pouca gente se aventura a penetrar. Faz justiça ao nome.

O lugar está defendido por membros guerreiros das tribos Xavantes e Morcegos. Eles protegem o lugar de invasores. Lançam flechas com pontas embebidas em substância resinosa vermelho-escura, solúvel em água e extraída da casca de certos cipós (Strychnos) que contêm curarina, alcalóide venenoso de ação paralisante e mortal.

Neste lugar lendário, falam da existência de ofídios com 25 metros, da ferocidade de cãeslobos que perseguem os intrusos, por vezes os estraçalham. Pouca gente ousa dele se aproximar. É difícil falar um pouco mais deste sítio tabu. Os nativos têm medo, muito medo. Em suas proximidades ocorrem coisas que “até Deus duvida”. No dizer popular do folclore regional.

— Já conversamos isso, “aqueles que buscam Manoa desaparecem para sempre...” Ju interessa-se mais pela narrativa.

Manoa, dizem alguns temerários aventureiros que conseguiram sair com vida das proximidades de seu “campo de força”, é habitada por uma raça muito estranha (“Eles”) que, exceto raras exceções, não deseja contato com civilizados, nem com os demais povos da floresta.

Expedições de americanos e europeus, pesquisadores científicos, antropólogos, geólogos, caçadores do tesouro Inca, perderam a vida na tentativa de chegar até ela. As evidências de que uma força estranha atua nessa região são muitas e incontestáveis.

Há indícios de que Manoa permite acesso à entrada de túneis que ligam a América do Sul à capital Tule, da Cidade dos “Muito Antigos” na Antártida. Acreditam alguns historiadores: através dessas passagens subterrâneas, os Incas conseguiram escapar dos colonizadores espanhóis levando um fabuloso tesouro sobre onze mil lhamas.

Uma das entradas desses túneis está na Serra do Roncador. Através dela foram acolhidos pela raça subterrânea, tanto os Incas em fuga dos colonizadores espanhóis, quanto soldados nazis, no período anterior à 2ª Grande Guerra, e no final da mesma. Nazis fugitivos dos exércitos aliados encontraram refúgio nos subterrâneos da selva amazônica. Segundo orientação dos “Muito Antigos”, o “Reich dos Mil Anos” começou pra valer com o fim da II Grande Guerra.

Das histórias noticiadas pela imprensa, esta se destaca por constar dos registros da polícia do Rio de Janeiro: Em janeiro de 1984, o jornalista alemão Karl Albert Brugger passeava no calçadão da praia de Ipanema na companhia de outro jornalista também alemão, quando foi fuzilado à queima-roupa por um suposto assaltante que nada roubou, usando uma arma sofisticada de grosso calibre. O tal amigo saiu ileso, e em depoimentos posteriores se contradisse, como se na tentativa de confundir os investigadores.

Estranha “coincidência”: Karl Brugger estava a escrever reportagens sobre a existência de colônias nazistas fortificadas na floresta amazônica. Milhares de dirigentes e subalternos da Gestapo dirigiram-se para aquela região, tanto no início do conflito, como após a derrota para os aliados, no vôo denominado “O Último Pássaro do Terceiro Reich”.

A trágica saga de Brugger começa em 1971, em Manaus, quando o comandante piloto da Swissair, Ferdinand Schmidt, acompanhado de outros membros da equipe de vôo, ouviu um mendigo aproximar-se do grupo e pedir, numa perfeita pronúncia da língua germânica, uma esmola para uma refeição.

O pedinte poliglota chamou a atenção da tripulação. Enquanto devorava um repasto, disse ter nascido de mãe indígena, da tribo dos Ugha Mugulala (até então desconhecida). O suposto pai era soldado alemão.

Ficou patente, de suas informações, que entre 1937 (pouco antes do inicio do II Conflito Mundial) e 1941, dois mil soldados nazistas se instalaram em locais inacessíveis da floresta amazônica, levando consigo armas e sofisticados equipamentos tecnológicos. Os historiadores sabem que os cientistas nazistas obtiveram auxílios técnicos, ignorava-se de quem, para seus experimentos bélicos, muito avançados para a época.

De volta a Alemanha, o comandante Schmidt conheceu o mencionado jornalista, Karl Brugger, a quem contou o estranho contato. Em 1972 Brugger chega ao Brasil interessado na investigação da história para a revista Der Spiegel.

Após uma semana de buscas em Manaus, consegue localizar o mendigo descrito por Schmidt, conquista sua confiança e fica sabendo da cidade das três pirâmides com nomes indígenas de Akahim, Akakor e Akanis, que designariam três diferentes cidades, mas que na realidade são três sítios de uma mesma localidade.

Em seus subterrâneos teriam sido abrigados os remanescentes do III Reich, acolhidos por seres de uma época muito remota, denominados “guardiães silenciosos do destino final da humanidade”: os lemurianos. Este povo “subway” teria desencadeado o movimento nazi enquanto ponto de partida do “Reich dos Mil Anos”.

Disposto a obter mais evidências, Karl Brugger começa a investigar por conta própria. Acessa documentos da II Guerra catalogados na Biblioteca do Congresso e no Departamento de Defesa dos EUA. Entrevista militares aliados que participaram do desembarque na Normandia, território francês, e da Invasão da Berlim devastada em 1945. Consegue contactar ex-membros do exército Aliado. Compara informações obtidas de várias fontes em diversos países.

Há quase unanimidade na confirmação de que uma esquadrilha de caças da Lufwaffe decolou em vôo de escolta a uma grande aeronave no mesmo dia em que as tropas aliadas invadiam Berlim. Os passageiros que nela embarcaram, eram nada menos que os mais destacados membros do partido nazista, incluindo Hitler e a amante Eva Braun. A essa viagem aérea os Aliados denominaram, repito, “O Último Pássaro do Terceiro Reich”.

Esse vôo bizarro conseguiu burlar os bloqueios Aliados e seguir na suposta direção do Tibet, onde os mais graduados membros da ordem negra da organização militar e paramilitar SS, em cerimônias com rituais geridos pelos “superiores desconhecidos”, tinham acesso a graus mais elevados de conhecimentos tecnológicos muito avançados para a época.

Brugger reuniu depoimentos que confirmam ter “O Último Pássaro do Terceiro Reich” pousado num aeroporto secreto, nas proximidades de um local até então impenetrável da selva amazônica, construído pelos oficiais e soldados nazis que aportaram no norte do Brasil entre 1937/1941.

A localização de Manoa, de muito difícil acesso, estava sendo precisada pelo jornalista alemão. Nesse local, onde a natureza ramificou tanto a vegetação das copas das árvores, é impossível, mesmo aos raios solares, penetrarem no emaranhado de folhas da gigantesca flora florestal. Em suas proximidades, a presença de OVNIs e de outros objetos estranhos em locais próximos à Serra do Roncador, são vistos como se saídos, supõe-se, de bases espaciais não identificadas através das tecnologias fotográficas dos satélites.

Hitler e o estado-maior nazi teriam se deslocado para Manoa ? No mesmo dia à Invasão da Berlim devastada pelos bombardeiros Aliados, em 30 de abril de 1945, num bunker subterrâneo do alto comando nazista, recentemente descoberto, um oficial SS disparou dois tiros com uma pistola modelo Walker: um na têmpora do suposto fuhrer e outro na da fiel Eva Braun. A seguir queimou os corpos com o “fogo renovador”, morte para iniciado nenhum botar defeito.

A encenação não passou de uma farsa: os corpos carbonizados eram de um casal de atores sósias do ditador e de sua amante, cujas arcadas dentárias tinham sido tratadas de modo a fazer crer que eram originárias de ambos. Em verdade Hitler bateu as botas na região norte do Brasil. O casal de atores que se prestou à farsa no bunker subterrâneo, no dia da tomada de Berlim, morreu confiante no futuro do “Reich dos Mil Anos”.

Nos primórdios do Partido Nazista, em 1923, o mago negro fundador da hierarquia da sociedade secreta Tule (!) Dietrich Eckardt, afirmara que Hitler conhecia as técnicas de contato com “ELES”, e que ele, Eckardt, teria influenciado o futuro da história mais que qualquer outro humano.

Parece-me evidente que hoje, o “Reich dos Mil Anos” está em pleno andamento. Em todas as partes do planeta há a presença de uma forte inquietude e de uma intensa tendência para o mal. Os seres humanos estão como que submergidos na inversão de valores, no consumismo desvairado, nas vibrações de conflito, e numa aviltante involução da dimensão do espírito. O mago negro Eckardt, aonde quer que esteja, deve sentir-se vitorioso na profecia de “influenciar o futuro da história do planeta mais do que qualquer outro humano”.

Dez anos depois da fundação da sociedade secreta Tule, a 30 de janeiro de 1933, a hierarquia da ordem negra treinara e iniciara os SS da Gestapo, os oficiais comandantes e os fanáticos soldados da morte. Forças satânicas dominavam a Alemanha e se preparavam para expandir esse domínio por toda a Europa, África, Ásia e Américas. A crença de que, direta ou indiretamente, sairiam vitoriosas, persistiu. Confirmou-se.

Por que vieram? Quantos nazis seguiram para a Amazônia ? Dos setenta mil oficiais nazistas, apenas vinte mil foram localizados no pós-guerra. Ninguém substituiu o trabalho de Simon Wisenthal na caça aos boches evadidos do fuhrer? Ou o Mossad teme enfrentar a magia dos “Muito Antigos” nos túneis subterrâneos quilométricos, que supostamente ligariam a Amazônia à cordilheira do Himalaia e à Terra de Mary Byrd na Antártida?

Ao ler este Arquivo, Jussara sente-se inquieta, inflacionada com estas informações sobre os “Muito Antigos”. E sobre o mago negro instrutor do fuhrer nas técnicas de “entrar em contato com “ELES”. Ela certamente precisa de um tempo para pesquisar a presença nazi na Amazônia.

Pensou: A II Guerra configurada como atalho para a satanização globalizada da sociedade.

Associou o mendigo que falava corretamente a língua alemã, ao jornalista assassinado em Ipanema, às supostas trilhas subterrâneas e túneis que ligam a América do Sul à Antártida.

A coisa toda parece fantástica. Um povo que reside no subsolo, uma civilização subterrânea, habitada por uma raça alienígena que mantém contato com OVNIs: É muita areia para meu caminhãozinho mental.
Difícil, para uma mente condicionada a olhar o mundo e a estudar história de modo convencional, aceitar. Não é fácil acreditar nessas informações, mesmo sendo provenientes do estudioso e pesquisador sério e confiável, que foi JJ Voltaire.

Parou a leitura. Carece de um tempo para reordenar estas informações. Desconhece de que forma associar os fatos. Eles, parecem saídos de uma história tipo realismo fantástico. Sim, desconhece onde possam estar as associações aleatórias deste Arquivo, com casos reais, cada vez mais assíduos, de combustão humana espontânea.

O dia foi cansativo, ela não está absorvendo de maneira satisfatória, todas as informações. Elas giram dentro da cabeça, sem encontrarem o nicho propício para se ordenarem de maneira racional, convincente.

Preciso de um sono tranquilo, onde os fios finos dessa teia de Ariadne, de infinitas ramificações, possam vir a tornar-se críveis e coerentes. Posiciona papel na impressora e aciona uma série de rotinas que permitem uma 1ª edição do “Arquivo Jângal”. Antes de ir dormir, posiciona uma pasta azul com a cópia sobre a mesa da sala, e um bilhete dirigido a Rossi:

— Papa, leia e segure a onda. Não se surpreenda se for capaz. Até, Ju.


IBOPE
NEGATIVO

No apartamento da família vizinha ao de Sabrina, crianças assistem a um programa infantil em que a condutora, uma galega bonitinha, sempre sorridente, simpática, feliz, uma Alice no País das Maravilhas da tv, com uma tonalidade de voz propositadamente infantilizada induz a criançada ao consumo de variados produtos comestíveis. Incluso molhos de tomate e mostarda.

A criançada interpreta as diversões do programa como quem não está mais a se divertir com as simpatias da “tia”.

O garoto Ricardo Flores chama a atenção do colega Beto para o monitor da tv. Até para as crianças a programação está intolerável. Os produtores e associados dos conglomerados não estão nem aí para as necessidades de mudar o paradigma da cultura, exigência dos novos tempos, de uma maneira renovada da mente perceber as relações virtuais existentes entre as diversas unidades de significação associativa dos juízos de valores e dos sentimentos que se transmitem no interior do inconsciente coletivo de uma comunidade.

As crianças logo compreendem o que fazer para tentar expressar seu desprazer e descontentamento.

Quando a apresentadora começa a jogar “beijinhos-beijinhos” e a dizer “tchau-tchau” para a garotada, todos aqueles produtos que ela anuncia pessoalmente, e os que são comercializados via comerciais, parecem se acumular dentro do abdome dela. O ventre da mulher começa a crescer mais e mais, até que de tão grande explode.

Os pedaços dos mitos produtos por ela comercializados lambuzam os baixinhos e baixinhas, banhando-os de uma gosma semelhante a vômito. A garotada se limpa com exclamações de repúdio tipo “eca”, arrrhgh, “que sujeira”. Muitos começam a vomitar e arrotar.

A show-woman desperta do pesadelo com uma expressão de alívio. Afinal, aquelas imagens supostamente não passaram de um pesadelo.

O certo é que o Ibope do programa dela caiu assustadoramente em 40 dias, nada menos do que 32%, 33%, 35%. E a tendência continuava. Os ignocratas (burocratas e tecnocratas para os quais as pessoas são apenas números), da emissora em reuniões contínuas com a equipe da “tia”, tentam explicar a queda das avaliações de audiência com argumentos estapafúrdios, enquanto escondem em suas gavetas os resultados das pesquisas, de modo que os patrocinadores não se dêem conta de que, há muito, a galeguinha está abaixo dos índices de audiência das outras emissoras no mesmo horário.

As mães se telefonam e buscam explicações para a mudança de comportamento da molecada.

— Está acontecendo com o Júnior também ? A senhora Astrid parece intrigada.

— Isso pode ser interpretado como um sintoma de que estão mais exigentes? Aquela festividade fabricada de palco de tv não estava do agrado de ninguém.

— A Verinha não assiste mais o programa dela nem que com a promessa de ganhar uma passagem de aniversário para a Disneylândia.

— Estão mudando, pelo visto para melhor. A Ceci e o Lulu, filhos da Neusinha, estão lendo livros tipo contos de fadas, e trocam impressões sobre as personagens, como se tentassem compreender o que há por trás das histórias.

— A cabeça deles parece que está mudando mesmo. A Prata e a Mary Claire, colegas de classe do Júnior, estão trocando obras clássicas, tipo “O Conde de Monte Cristo”, e lendo volume por volume a coleção de obras infantis de Monteiro Lobato.

— Se as crianças forem esperar que a tvvisão acompanhe o desenvolvimento de suas mentalidades, elas vão ter de esperar pelo menos mais um milênio.

— Minha filha, esses donos de tv querem é ganhar dinheiro. Não estão se importando nem um pouco em fornecer programas que incentivem a infância e a juventude a pensar com mais clareza. A compreender o mundo em que vivem com inteligência.

— E inteligência. Eles têm medo de que os baixinhos aprendam a pensar as próprias necessidades.

— Parecem temer que eles resolvam ser outra coisa que não a imitação desses heróis violentos dos desenhos animados, cheios de superpoderes. Como se as crianças pudessem imitá-los a vida toda, até que um dia, talvez tarde demais, descubram que são apenas pessoas comuns e seus poderes estão no conhecimento de que só poderão “crescer” como espectadores de tv.

— Quando jovens vão descobrir que os donos das tvs criaram seus programas para uma vida de ficção barata. Torcedores de futebol, fanáticos de torcidas organizadas, comerciantes da droga do dia. A realidade dessa educação vai transformá-los em imitadores de traficantes e em garotas de programa.

— As adolescentes estão imitando a Bussunda Surfistinha aos milhares.

— Quem é essa? Bussunda Surfistinha?

— Uma garota de classe média que a mídia promoveu, principalmente a Internet. Ficou famosa por ter se prostituído muito cedo, e por ter ganho por seu programa mais barato a quantia de quarenta reais.

— Parece que os Sympsons, os Flintistones, o Mickey, o Scubidu e o Pato Donald, os irmãos metralha, não estão mais agradando. Eles agora querem doses cada vez mais maciças de violência dos heróis dos enlatados de tv.

— Graças a Deus alguns parecem que vão libertar-se pela única via de acesso à inteligência: os livros. A leitura.

— É minha querida, a esses a tv não incentiva. Exceto em rápidos anúncios da propaganda do “faz-de-conta”.

— É covardia, nivelar por baixo uma geração, para quando crescerem desejarem ser jogadores de futebol e garotas de programa.

— E ninguém pode fazer nada para mudar essa programação?

— Há poucas mães politizadas, que sabem que seus filhos têm direitos constitucionais à educação e a saúde mental. Seria preciso uma mobilização nacional no sentido de que os “pra lamentares” não se vendessem aos “lobby” dos donos de emissoras de tv.

— Tvvisão é uma concessão pública. E parte dos políticos quer seus eleitores nivelados por baixo, porque, do contrário, como continuariam a votar neles?

— Iniciativa privada é isso. A disseminação da democracia da latrina e do vaso sanitário. A parte de cima da coluna vertebral servindo, maior parte das vezes para separar as orelhas e gastar no cabeleireiro.

— Este tipo de diálogo, felizmente, está ficando cada dia mais fluente. As famílias já se convenceram que são os pais, as associações de classe, as religiões, os eleitores cobrando dos parlamentares uma atitude. Precisamos preservar nossos filhos dessas influências dos que se tornam cada dia mais milionários às custas da deterioração mental dos tvespectadores de todas as idades.

—Alguma coisa está mudando na mentalidade dessas crianças e adolescentes. Eles sabem que estão sendo usados e não podem fazer nada. Seus familiares, vizinhos, professores, os adultos de modo geral, não estão investindo no futuro diferente do que a tv reserva para eles. E essa revolta do “não poder fazer nada” está criando uma comunicação telepática entre eles.

— Coisas estranhas estão a acontecer. E as crianças e jovens têm participação nisso.

— Muitos nem falam mais com adultos.

— Muitos nem falam mais entre si. Emitem uma espécie de zunido, como se fossem habitantes de uma colméia. Tipos mutantes, semelhantes aos personagens do livro de Arthur C. Clarke. Qual é mesmo o nome? Que memória. Li outro dia.

— “O Fim da Infância”, a Maly Karan me presenteou outro dia. E eu já passei para a Lígia ler.

— Pelo menos estamos sabendo o que está a acontecer.

— Tchau, as dezoito horas no Teresina Shopping, aquele filme, não vamos perder. Como é mesmo o nome?

— Do livro de Jane Austen, “Orgulho e Preconceito”.

— Até parece que estamos falando da “gente fina” dessa cidade. Até mais tarde.


MULTIINTERIDENTIDADE

Ao chegar em casa, Hélio fica a se perguntar se a filha teve alguma espécie de participação nos acontecimentos de há pouco, na Paulista. Talvez seja só impressão, mas ela está muito mais indiferente e concentrada em alguma coisa a qual ele não tem acesso consciente. A concentração, tamanha, que não ousa interromper.

No elevador que os conduz ao apartamento rumina: Que coisa pode está acontecendo? Quer lembrar de algo que parece ser importante, mas a mente se recusa ao exercício da memória, como se esta, de repente, estivesse entorpecida, a bloquear informações.

Uma certa inquietação faz com que Hélio intensifique a sensação de ter sido usado. Uma explicação racional, por mais que se aplique, não consegue encontrá-la. Talvez só fosse possível explicar, via observação do universo paralelo do irracional. A rotina muda e mudam os tvespectadores. A mulher não mais comenta sobre os atrasos. Os imprevistos no trânsito têm sido tantos, que os estranhamentos foram incorporados à força do hábito.

Na sala de jantar da família de Carla, o Jornal da Globo mostra uma reportagem, ao vivo, dos inexplicáveis acontecimentos na avenida Paulista. As imagens reproduzem carros ainda com os capôs fumegantes. Uma câmera localizada no alto de um prédio focaliza algumas travessas da avenida, entre elas a Pamplona e a Consolação, onde há raras luminárias que permanecem acesas. A aparência de uma batalha sem armas visíveis. Mas certamente uma batalha. Que forças contrárias polarizaram-se? Qual a participação real dos seres humanos nela ? Terá sido apenas uma manifestação de revolta do inconsciente coletivo contra a impunidade insensata dos criminosos do colarinho branco ligados à corrupção desvairada nos Três Poderes?

Hélio observa as imagens, a comentar de si para consigo, os acontecimentos mostrados pelo Jornal da Record. De tão estranhos, os acontecimentos em foco parecem ficção de algum roteirista imaginativo. A memória a rápido prazo falha. Persiste nele uma certa e distante sensação de ter participado, ao vivo, dos eventos mostrados. Hélio descarta a possibilidade, alegando-se que talvez sejam distorções surreais da percepção da realidade, na qual está inserido, queira ou não, enquanto ator coadjuvante.

No Jornal da Band a mesma coisa. No Jornal do SPC, Loris Basoy, sem conter uma certa e explicável afetação e perplexidade, comenta:

— Esse lugar parece um campo de batalha. Esses eventos, mostrados pela reportagem, não têm uma explicação racional. Muitas pessoas que estavam na avenida Paulista no momento em que aconteceram, ainda estão em estado de choque. A realidade está ficando mais surpreendente do que se poderia esperar. Isto é mesmo uma coisa muita fora do normal. Isto é uma coisa muito estranha. E que não haja ninguém com uma explicação plausível: “Isto é uma vergonha”.

A âncora do Jornal da Globo mostra entrevistas com pessoas que estavam na Paulista no momento das ocorrências. As impressões e opiniões divergiam, mas todas tinham um ponto em comum: sentiram-se ameaçadas em estar presente aos medonhos acontecimentos.

Hélio usa o controle remoto na tentativa de achar, em outro canal tvvisivo, uma opinião mais técnica, científica, menos especulativa e perplexa. Quer sentir-se parte de uma realidade, não fantoche de uma ficção. A tênue fronteira ilusão/mundo real não está muito nítida. A percepção embaralha as impressões entre realidade e fantasia. Não consegue definir de maneira adequada as diferenças entre ambas. Como poderia ter participado dessa estranha tragédia?

Aconteceram mesmo essas coisas, mas como podem ter acontecido? A realidade, onde está a realidade? Está ficando tão inesperada como um filme de ficção. Hélio lembra que amanhã tem escritório. Sente-se seguro em saber que trabalha nesse lugar, em saber-se acompanhado de companheiros de profissão que também estarão lá, toda manhã, até as dezoito horas. Sim, aposentando-se ou não, vou continuar no batente. É o único modo de sentir-me real e protegido pela rotina do cartão de ponto, já que tudo o mais parece estar a se desmanchar.

Uma rotina, nada melhor que uma bendita rotina, uma maravilhosa rotina de trabalho. É tudo que preciso para manter-me mentalmente são, ou, pelo menos, em condições de exercer certo controle sobre os acontecimentos em minha volta.

Com estes pensamentos deseja lograr resguardar-se, esconder-se, proteger-se das influências, dos mistérios e perigos implícitos nas levitações, nas perturbações e estranhamentos do trânsito, no arrebatamento súbito de veículos, no fogo e nas explosões espetaculares demais, arrojadas demais, para serem assimiladas pacificamente pela parte menor e mais indefesa da psique: o nível consciente. Resultado: aumento da ansiedade e do medo.

No quarto, Carla contempla-se no espelho da parede ao lado, entre pôsteres de exposição de artes plásticas, de filmes, peças de teatro e Cds. Um grande calendário/poster permanece na parede do quarto, brinde aos leitores que adquirem livros na livraria Cultura, no Conjunto Nacional, Rua Augusta com Avenida Paulista. Após o banho passa, em câmara lenta, a escova nas mechas dos cabelos. A outra mão no secador acompanha os movimentos ao redor do couro cabeludo.

Apenas impressão, ilusão de ótica, ou as imagens dos pôsteres, estão sobrepondo-se uma às outras, vindas de dentro do reflexo especular? A sensação de que se misturam acontecimentos recentes, reais e ficcionais, vivenciados por ela: sexo com o namorado, as cenas de filmes fazem-na sentir-se meio parte dos noticiários e jornais da imprensa escrita e tvvisiva.

A sensação de que outra pessoa nela se substitui de dentro para fora. A estranha funde-se a seus sentimentos. O estímulo visual, a comoção pelo temor de estar sendo substituída por outra pessoa. Uma certa intranquilidade emerge da contemplação das personas convergentes no espelho. Elas se adensam e personalizam neste novo rosto ainda indefinido, que não ousa vê com nitidez. Familiariza-se com esta outra, nova face, que é, está nela, começa a atuar como se fossem ambas, uma.

Desperta com o secador ainda ligado, percebe algumas mechas de cabelo queimado, parte do rosto chamuscada. Aplica-se um unguento de picrato de butambeno. Felizmente ainda é cedo. Maioria das pessoas estão adormecidas. Escreve um bilhete para Hélio dizendo que talvez chegue atrasada.

Após a higiene matinal sai apressada, como se a essa hora da manhã pudesse encontrar um cabeleireiro. Energizada quer caminhar, olhar as ruas, as pessoas. De alguma forma a realidade parece nova. A presença de uma convicção de que todas as coisas não são, não estão, nem serão como sempre foram. Há umas curiosidades intensas, inusitadas, como se pela primeira vez estivesse vendo as ruas, os carros, os movimentos das pessoas na cidade.


OS “MUITO
ANTIGOS”

Rossi, ao chegar da redação do jornal, lê o bilhete da filha e a primeira parte da cópia do “Arquivo Jângal”. A história do jornalista alemão da Der Spiegel, assassinado em Ipanema, quando investigava a localização de colônias nazis na Amazônia, não lhe é estranha. Seu chefe de redação diz que, na época, a história não mereceu maiores investigações, devido a forte suspeita de que o mesmo estava envolvido com tráfico de drogas. O que não ficou, de modo algum provado. Apenas suspeitas transmitidas pela polícia. As evidências foram, provavelmente, forjadas.

Um investigador, na época, diz ter encontrado um papelote de cocaína com cinco gramas numa gaveta do quarto de hotel onde ele se hospedava. Os chefes de redação dos principais jornais cariocas não quiseram levar a investigação do crime adiante. Mesmo porque, seu suposto colega de profissão, ao lado do qual foi assassinado, contribuiu apenas com nuvens de fumaça que turvaram ainda mais a investigação.

O chefe de redação de Rossi achou a história do “Arquivo Jângal” meio sensacionalista, mas verossímil. Aprendeu na profissão a valorizar a inexistência de padrões fixos e fechados de avaliação dos acontecimentos.

Um simples grão de areia pode estar em comunicação com uma nebulosa. Ou dela ser proveniente. As formas que me parecem triviais, posso vê-las pela ótica realista da fantástica Mente Criativa, através desse sentimento oceânico mencionado por Freud, pertencente a todos os seres racionais e emocionais do universo. Rossi surpreende-se com estas percepções nítidas. A mente universal está mais comunicativa, interativa, com sua mente pessoal.

Na redação do jornal prossegue a leitura do “Arquivo Jângal”:

As revelações seguem em direção aos portais de entrada dos quilométricos túneis que interligam o norte do Brasil, através de cidades intraterrenas, em busca das quais Percy Harrison Fawcett desapareceu. Em 1925 o explorador embrenhou-se no inferno verde das selvas do Mato Grosso, imediações da Serra do Roncador, a 350 quilômetros em linha reta, rumo leste, a partir da aldeia dos Kalapalos, após cruzar o Rio das Mortes.

O “Arquivo Jângal” de JJ Voltaire revela que Percy Fawcett era irmão de Edward Douglas Fawcett, um dos fundadores da Sociedade Teosófica, autor dos livros “O Divino Imaginar” e “Do Mundo Como Imaginação”. Percy não era apenas mais um aventureiro. Desde os quinze anos seguia carreira militar na escola de Westminster. Em 1886, foi promovido a cadete com alta distinção e as honrarias de praxe na Royal Military Academy, em Wolwich, quando começou a fazer parte da Artilharia Real.

A serviço da coroa britânica, esteve na India, no Ceilão (base inglesa de Tricomalee), destacou-se nos esportes, nas investigações arqueológicas. Viajou várias vezes da Europa para o Oriente, e da Europa para as Américas do Sul e do Norte, conciliando a carreira militar com a de pesquisador da trilha de monumentos e cidades que poderiam vir a ser descobertas em futuras expedições.

Não é mera coincidência ser considerado o verdadeiro Indiana Jones. Ele inspirou a saga do herói de Spielbergson, e o escritor Conan Doyle, autor das histórias do detetive Sherlock Holmes, a escrever, em 1912, “O Mundo Perdido”, livro de ficção inspirada nas conversas amigáveis de Fawcett com Doyle, sobre morros e platôs com mais de oitocentos metros de altura, na selva Amazônica. O “Arquivo Jângal” prossegue com novas revelações:

Fawcett perdeu-se numa incursão solitária na floresta nos subúrbios de Tricomalee, num lugar conhecido por “Lion Rock”, próximo a um dos mais antigos e maiores templos do mundo, com 600 pés de altura: Sigiriya. Na ocasião chovia, na noite fria Fawcett dormiu, a cabeça apoiada numa das colunas do Templo. Ao despertar na manhã do dia seguinte, observa em volta inscrições de um alfabeto desconhecido.

A mensagem revelou-se intraduzível, inclusive para os estudiosos de cultura e religião do Instituto Oriental de Oxford. Eles afirmaram não haver estudos pertinentes sobre aquele modelo muitíssimo antigo de escrita no Ocidente, cifrada em caracteres Áshoka.

Em 1869, três meses depois, lê a legenda de uma ilustração do livro do capitão Richard F. Burton, que mostrava uma reprodução do notório documento 512, sobre uma cidade perdida no Brasil, supostamente visitada em 1753 por bandeirantes.

Os caracteres impressos nos templos e arcos de pedra do documento 512 eram semelhantes aos sinais encontrados no Templo Sigiriya em “Lion Rock”. Esse documento encontra-se arquivado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Rossi sorri e surpreende-se com as informações jornalísticas e o senso de humor de Juan Joseph Voltaire. O jornalista não sabe aonde quer chegar o estudante ao narrar a pesquisa na selva brasileira do famoso aventureiro, mas os indícios conduzem em direção à solução do misterioso sumiço do ilustre engenheiro e militar britânico, na década de vinte.

Neste mesmo ano, 1869, o governo boliviano acerta com o governo peruano, e o Royal Geographical Institute, através da embaixada de Londres, o envio de um engenheiro experiente no trabalho de mapeamento das áreas fronteiriças, em conflitos territoriais. A Bolívia havia perdido, na Guerra do Pacífico, parte do território, incluindo-se o acesso ao mar pelo Chile. O Royal Institute indica Fawcett para promover o mapeamento regional, por ser inglês, e a Inglaterra um país neutro no conflito.

Ainda major, Fawcett embarca no navio Kaiser Wilhelm der Grossie, de Londres em direção a Nova York. Uma vez nos EUA embarca no vapor Panamá em direção ao porto de Cristobal na baía de Lemon. O sonho dele é gerir uma expedição em direção à cidade perdida na selva Amazônia começa a tornar-se realidade. Fawcett fica fascinado, não tanto com o trabalho, mas com a possibilidade de, posteriormente, por sua conta e risco, encontrar Manoa na Amazônia.

A missão de mapear as fronteiras bolivianas e peruanas ganha por seus conhecimentos topográficos exercitados nas grandes montanhas do Ceilão, permite a proximidade com civilizações pré-colombianas e cidades ainda por descobrir, a exemplo de Machu Picchu, no Peru, que, nesta época, não passava de “uma história de índios”, no dizer mordaz de historiadores acadêmicos. Apesar de “lenda”, foi descoberta em 1911, pelo explorador americano Hiram Bingham, que chegou às ruínas escondidas sob séculos de vegetação selvagem.

Pagaram a Fawcett para essa tarefa homérica de adentrar territórios selvagens e inexplorados, e mapear as fronteiras entre Chile e Bolívia, a quantia de 10 mil pesos bolivianos, 80% dos quais em ouro. Na época, uma nota preta.

Fawcett e o ajudante de ordens Chalmers, caminham por montanhas através de estreitas trilhas, desbravando fronteiras latinas. A neve espessa permite uma visibilidade de poucos metros. As mulas patinam no gelo.

Descem e sobem rios infestados de piranhas em balsas de troncos flutuantes. Perdem parte do material técnico, dos mantimentos, num naufrágio. Enfrentam sanguessugas, nuvens de mosquitos, negociam com índios, comem ovos de tartaruga e carne de arraia, caçam macacos com rifles Whinchester 44, para matar a fome, até chegarem a Cobijas, fronteira do Acre com a Bolívia.

Uma aventura por cordilheiras perigosas, lugares inóspitos, tribos desconhecidas, uma das quais de nativos brancos, com olhos azuis e cabelos vermelhos. De volta a Europa, após ter seu trabalho reconhecido em homenagem prestada pelo Royal Geographical Institute, Fawcett ganha em Londres, presente de um amigo, uma estatueta de basalto com 25 centímetros. O presente, do escritor H. Rider Haggard, admirador, amigo e autor do bestseller “As minas do rei Salomão”, traduzido para o português por Eça de Queiroz.

A estatueta traz uma inscrição num alfabeto desconhecido. Traduzida, tal inscrição poderia revelar sua muito antiga origem. Haggard informou a Percy que a estatueta viera do Brasil, trazida pelo filho dele, Haggard Jr., morador há muitos anos numa fazenda do interior do Mato Grosso, visitada certa vez por estranhos índios de cabelos avermelhados, de uma tribo distante e desconhecida.

A peça de basalto tinha poderes incomuns, como atestam depoimentos de pessoas que a viram anteriormente. Fawcett perguntava-se: que diziam as cinco inscrições na tabuleta no peito da imagem? Qual a origem da estranha força magnética da estatueta?

Uma forte corrente elétrica atravessa os músculos do braço de quem, pela primeira vez, a segura. Não raro, o choque fazia com que a largassem. A razão dessa energia permanece desconhecida por Fawcett e pelos peritos do Museu Britânico. Nenhum especialista, ainda hoje, é capaz de decifrar as frases. O coronel busca então a ajuda de um psicometrista.

A Psicometria, ramo da Psicologia do estudo quantitativo das atividades mentais, constitui a base da psicométrica: Medição da memória, da inteligência, da atenção, da fadiga, do tempo de reação motora de determinados estímulos biológicos, catalogados pelos estudiosos da Neuroanatomia e Neurofisiologia.

O psicometrista contactado por Percy Fawcett ficara famoso por interpretar o poder energético de objetos, por decifrar origens memoriais, por ter sugerido uma explicação irracional, com motivação pertinente, ao naufrágio do Titanic. Fawcett passou às mãos do psicometrista, a imagem, coberta com uma toalha de linho branco para que ele não soubesse, pelo olhar, que a estava apalpando.

Ao apalpá-la, o sensitivo diz está vendo um grande continente, de forma estranha que se estendia da costa da África à América do Sul, coberto de montanhas vulcânicas. Foram estas as palavras usadas pelo psi para definir as sensações psicocinéticas transmitidas pelo contato manual com a estatueta de basalto:

“A vegetação muito variada, a população de pele escura, mas mais clara que a negra. Uma civilização muito adiantada com edifícios ornamentados, possivelmente templos. Vejo esfinges semelhantes à que está em minhas mãos, nos vários nichos desse templo. Esta estatueta pertenceu a um sacerdote e magistrado de alta categoria.”

“As águas agitadas do mar afogam grande parte da população. O sacerdote pega a pequena estátua e foge para o alto das montanhas que tremem sob o impacto de forte terremoto. Ele corre em direção leste e desaparece. Uma voz nítida e forte diz que o que ocorre com a Atlântida ocorrerá com todas as civilizações que mitificarem o poder e o narcisismo.”

A partir deste momento Fawcett acredita que a estatueta, antes de chegar ao Brasil, viera da Atlântida, onde pequena parte da população que conseguiu fugir da catástrofe em primitivas embarcações, aportou em terras brasileiras há aproximadamente doze mil anos. O sacerdote atlante refugiara-se nas moradias subterrâneas dos “Muito Antigos”, dos quais tinha conhecimentos.

De um índio do Mato Grosso viera a peça, presenteada ao filho de Haggard. Neste Estado, para Fawcett, está situada a entrada para as cidades subterrâneas dos “Muito Antigos”. Manoa seria apenas sua parte exterior.

Fawcett, pela segunda vez organiza uma expedição. A busca de Manoa virou uma fixação, da qual não pode nem quer fugir. Precisa, a qualquer custo, encontrar uma das entradas para as cidades subterrâneas na América do Sul, mais especificamente, na selva Amazônica. Acredita que os portais para a civilização subterrânea encontram-se situados em terras brasileiras. Esta busca obsessiva termina com seu desaparecimento.

Após Facewtt desaparecer nas selvas do Mato Grosso, o jornal londrino “The Times”, ofertou um prêmio de 10 mil libras a quem indicasse uma pista que pudesse levar ao coronel ou a seus restos mortais. Essa pessoa ganharia, na época, a milionária quantia em libras esterlinas. Dezenas de expedições foram organizadas, dentro e fora do Brasil, 3/5 delas tiveram a mesma destinação misteriosa do coronel: sumiram.

Rossi acredita que possa haver algum folclore nessa história, mas que há algo estranho a ser investigado. Tanta gente desaparece e as autoridades federais prosseguem ignorando as causas. Talvez por achar que são muito esotéricas para merecerem o investimento de uma diligência mais detalhada: uma expedição, por exemplo.

Para as forças armadas existem outras prioridades. Uma remessa de tropas ao interior dos túneis/portais uma vez localizado os mesmos (existem fortes indicações do lugar onde se encontram), pode levar meses ou anos, até que consigam explorar parte das profundidades subterrâneas, se é que isso é possível.

A magia (tecnologia) dos “Muito Antigos”, pode ter engendrado formas de capturar os membros das expedições, ou fazerem-nos se perder em labirintos e armadilhas, há milênios preparadas e aperfeiçoadas para a eventualidade de uma invasão armada às profundidades dos túneis.

Rossi, chamado pelo chefe de redação, abandona outra vez, provisoriamente, a leitura do “Arquivo Jângal”. Se conseguisse despertar o interesse jornalístico do Conselho Editorial do jornal...Bobagem, seus membros têm outras prioridades. Os custos seriam altos, existem muitos outros interesses em detrimento de uma expedição com esta finalidade.



AS CRIANÇAS MÁGICAS
E A MUTAÇÃO
BETHBRONCA

A síndica do prédio onde habita Sabrina, conhecida por Bethbronca, é pessoa que se compraz em mostrar quem manda e desmanda. Eleita pelo autoritarismo de alguns proprietários mais antigos, que nas reuniões do condomínio primam por mostrar “quem é quem aqui”, costuma fechar o acesso da garotada ao único lugar que têm para brincar no prédio: o pátio interno do andar térreo, sem cobertura, onde patinam, jogam dardos e reúnem-se para trocar idéiazinhas, dando um tempo no ambiente enclausurado do interior dos apartamentos.

Pátio fechado é uma dica de que Bethbronca está de mal humor e as crianças pagam por ele. Antes de sair, a síndica ordena ao zelador que informe ao porteiro:

— Hoje o pátio vai ficar fechado.

Quatro meninas e quatro meninos permanecem alguns momentos “conversando” em silêncio, testa com testa, no espaço anterior à porta fechada que separa o corredor da portaria, da área lúdica interditada por Bethbronca. O uso da telepatia pelas crianças tornou-se rotineiro.

A porta do salão de eventos, onde é proibida a entrada, exceto nas festas de batizado, aniversário, reuniões de condomínio e São João, está entreaberta. As crianças entram e ficam contemplando, concentradas na imagem de uma reprodução do quadro Abaporu da pintora paulista, do movimento modernista, Tarsila do Amaral. Concentram-se na imagem alongada, absorvidas pela aura cultural de sentimentos e sensações que transmite.

Racionalmente, talvez não tenham uma compreensão do que significa a pintura enquanto inserida no contexto da Arte Moderna e da Semana de 22. As crianças permanecem alguns minutos absortos na contemplação figurativa, como se em contato subliminar com a latência e a magia de seus significados.

Com o passar dos dias, Bethbronca, mulher robusta, com porte e sobrenome germânicos, nota uma certa “coincidência”: Ao descer ou subir num dos dois elevadores da área social, está sempre acompanhada de, no mínimo, três crianças que, entre o décimo segundo andar onde mora e o térreo, entram no ascensor, fazendo-lhe incômoda companhia.

Bethbronca acha que isto é apenas uma coincidência natural, afinal o elevador é coletivo, não posso impedir que esses pentelhos fiquem a me olhar desta forma, ostensiva, calada e intermitente. Crianças inconvenientes e mal educadas. Chocante.

Quando não as ignora simplesmente, a síndica tenta ser simpática, com seu sorriso de adulta afetada. A gurizada costuma respondê-lo com uma leve, quase imperceptível, vibração dos músculos dos cantos das bocas. Bethbomba, como a apelidam outros inquilinos, procura ignorar as coincidentes companhias, mas a irritação aumenta toda vez que as vê entrar no elevador, como se propositadamente a cercá-la.

Beth odeia sentir a sensação de ficar sendo observada. Crianças para ela, apesar de quatro vezes avó, ainda parece uma coisa provocativa, um incômodo que precisa tolerar. A afetação ao vê-las entrar no elevador, por não compreender as razões desta coincidência que se repete inúmeras vezes, faz com que fique de mal humor o resto do dia.

Este tipo de ocupação do mesmo espaço acontece por trinta dias. Na última semana do mês chega a sentir-se aborrecida com o incômodo de tantas pessoinhas congestionando o elevador, justamente quando estou nele. Por que não vão estudar? Aposto que nem fizeram os deveres de casa. Gurizada sem pai nem mãe essa. Educação do Terceiro Mundo é isso mesmo. Melhor assim.

Dia seguinte a síndica percebe, ao olhar-se no espelho do banheiro do apartamento, que há alguma coisa errada com a aparência, sem atinar o quê. No outro dia, a incômoda sensação de que sua cabeça está diminuindo. Ridículo, impossível, cabeças não diminuem. Realmente, reduzem-se aos poucos, as dimensões éticas, o pensamento moral, quase que muito imperceptivelmente demais, convoca diariamente as pessoas à aceitação desse supernivelamento “pop” por baixo, de suas mentalidades proletarizadas espiritual, intelectual, econômicamente e via satélite. Os ossos encolhem: a idade, a osteoporose.

A princípio ela acha que é apenas ilusão de ótica. Ora, só faltava, minha cabeça reduzindo de tamanho. Em trinta dias, o crânio de Beth está reduzido às dimensões de um pequeno melão de feira. Ela simplesmente não pode ignorar e achar que é apenas uma impressão, uma ilusão de ótica.

Apavora-se, consulta especialistas em doenças neurológicas, refugia-se num sítio em Ubachuva e de lá não quer sair para nada, nem receber visitas. Tem vergonha de mostrar-se. Ela, tão cheia de si e vaidosa ao extremo, força-se a mudar de hábitos. Após mais três semanas, o crânio da mulher está, absurdamente, reduzido a pouco mais do que o tamanho de uma laranja. Então pára de reduzir-se. Se não tivesse parado, hoje estaria sem cabeça.

Os especialistas em medicina craniana de seu plano de saúde providenciam dezenas de radiografias, mas não conseguem detectar as causas fisiológicas das radicais diminuições cranianas, atribuídas apenas à "tecnologia" natural de remotas tribos de caçadores de cabeça nas selvas da Guatemala. A aparência, simplesmente grotesca, causa repulsa, medo e compaixão. A quantidade enorme de cabelos, numa titiquinha de cabeça pouco maior que uma laranja. Lembra a aparência das gêmeas da família Adams, só que mais grotesca.

Bethbronca mostra-se apenas para os médicos. Vira uma personagem reclusa, a tomar sopa de canudinho. Os órgãos dos sentidos, posicionados na face de brinquedo: as orelhinhas, o narizinho, a boquinha, os olhinhos mini-mini, afetados pela inesperada metamorfose. Consolo: um dos médicos diz que seus órgãos faciais funcionam como se fossem tamanho padrão. Não houve perda ou diminuição do olfato, da visão, da audição e do paladar. O tato, normal.


O FUTURO “IN VITRO”
MADE IN
BIOCHIPS COMPANY

Carla chega ao escritório uma hora atrasada. Os parceiros de trabalho perguntam o que houve. Logo ela, que sempre chega na hora. O corte curto do cabelo melhorou a aparência, mais bonita, mais na moda, por que o rosto queimado? Explica ter estado cansada.

— Desmaiei na cama com o secador ligado.

— Será que vai haver carnaval? Com todas essas coisas esquisitas acontecendo? Prata, uma colega de trabalho, pergunta.

— Sem a alegria do carnaval, a coisa toda fica ainda mais difícil, você não acha? Comenta Astrid.

Carla não tem certeza se vai haver carnaval, mas as aulas na faculdade de Direito continuam. A desculpa não convence Hélio. Por qual motivo estaria tão cansada uma moça que nem em período letivo está? É a pergunta silenciosa. Ela deseja, em meio à excitação geral, manter uma certa serenidade.

O pai resolve mandá-la passar o que resta das férias na casa da família em Santo Antônio do Pinhal. Por que tanto estresse se a rotina no escritório tem sido, na medida do possível, normal? Pergunta-se Hélio.

Depois de um dia no sítio, Carla sente a leveza de estar entremontes. Os sussurros do vento na vegetação, o verde farfalhar das folhas, flores e galhos. A sonoridade silenciosa dos elementos da natureza, motivando a harmonia interior essencial. Muito diferente das poluições sonoras, visuais, olfativas. Em suma: da mentalidade deletéria sensorial da metrópole.

Mais tarde um banho de cachoeira na bem-vinda água cristalina, saída das entranhas da montanha, a jorrar, de uns quinze metros, sobre os membros. Uma límpida bênção, sucessiva e brusca: a emoção da maré mineral vertendo-se sobre a cabeça, num batismo natural. A enxurrada limpa-a das poluções mis da capital, de seus múltiplos artifícios, das neuras do convívio profissional.

Sente-se purificar o corpo, a alma. Flui nela a energia pertinente para repensar os acontecimentos de uma maneira coerente. Apesar de coisas aparentemente desastrosas, a exemplo da queima de parte do cabelo e da face, intui que algo positivo está acontecendo. Crê: Inexiste mudança sem dor.

Uma vizinha vem visitá-la, ao mesmo tempo em que faz sala, sente-se comodamente sozinha. Juntas fazem massa para pão de queijo. Contam-se as novidades. Preparam dois sabores de chá, esquentam leite para os filhos da amiga e a garotada acompanhante. Um lanche sem refrigerantes.

Sabem que as coisas na metrópole São Paulo e nas outras grandes cidades do mundo, estão longe de um padrão, que até pouco tempo se convencionava denominar normalidade. Forças estranhas interferem em muitas coisas que vulgarmente se denominavam normais.

A realidade transformou-se num horizonte de eventos. Estranhos fenômenos inusitados: A tvfantasma, a combustão humana espontânea, os acontecimentos no trânsito, as variantes do H3V, o vírus que ameaça a reprodução, com baixas taxas de natalidade. A natalidade zero prevista para futuro próximo, as crianças e seus dialetos com sonoridades intraduzíveis. Ao entardecer sentam-se na varanda para trocar idéias:

— Que será que está se passando? Quem, por trás disso? Natural a pergunta de Anna. As evidências das ocorrências permeiam tudo, dentro e fora dos lares, dos ambientes sociais mais, aos menos festivos. Carla replica:

— Quem sabe? Está todo mundo no ar. As teorias pipocam. Ontem, um Físico entrevistado no Jornal noturno do Canal 2, garantiu que uma antena retransmissora da tvvirtual está localizada na selva amazônica.

— As crianças parecem motivadas por uma intencionalidade alienígena. A mente delas vibra em ressonâncias psi que o cérebro adulto não penetra ou traduz.

— Alguns exaltadinhos fanáticos por ficção científica, insistem que vai se repetir, na real, o final do livro “O Fim da Infância”, de Clarke.

— A literatura de ficção científica brasileira está muito solicitada nas livrarias. Os autores nacionais estão escrevendo uma ficção tipo exportação, com edições em países anteriormente com mercado mui restrito para a literatura latino-americana.

— O mundo está ficando muito perigoso. As crianças isolaram-se. Os adultos masculinos têm um mundo, os femininos, outro. O pessoal de sexualidade paralela, outro, as várias etnias, outros mais, os negros e outras minorias, outros mais...Todos vendem diferente o peixe de suas crenças que dizem ser a interpretação correta dos fatos.

— As feiras de salvação das igrejas, estão clamando todo dia a certeza de que oferecem, nas prateleiras de seus supermercados da Salvação, o produto certo, a interpretação exata, segundo profundos desígnios do Arquiteto Universal.

— “Os cães ladram, a caravana passa”, quem pode impedir?

— Mas nós, Carla, para nossos filhos, passamos depressa demais, ficamos defasadas muito rapidamente.

— A situação de animosidade instintiva está muito presente. É como se ninguém se pudesse salvar, e fosse induzido a agir de maneira inadequada.

— Muitos pontos de vista, mas nenhum ponto de transição.

— Tudo não passa de acerto inconsciente. Carma coletivo da humanidade, em decorrência do sangue derramado nas batalhas da Segunda Guerra, e seus sessenta milhões de mortos.

— Quarenta e cinco.

— Qual a diferença ? 15 milhões, trinta milhões, cem milhões de mortos nas guerras antes e pós-Segunda-Guerra? E os mortos de hoje, não se somam ?

— O “Reich dos Mil Anos” ganhou o coração das trevas do mundo.

— Todos, de repente, estão sendo confrontados com suas limitações, com o bloqueio psi das subjetividades.

— Tudo que é arquétipo de interpretação está solto nas ruas e reivindica para si a Razão das razões, o Jogo dos jogos, o melhor produto do momento para o mercado.

— Os inúteens transcenderam-se para uma condição que representa um salto mental qualitativo impensável para seus tutores. Negam-se a participar dos eventos verbais do mundo adulto, dos lero-leros da terceira década do milênio.

— “Horror, horror”, como diria o personagem central de “No Coração das Trevas”, de Conrad.

Quando as visitas saem, Carla sente outra vez a calma, o deleite espiritual insubstituível: estar sozinha, simultaneamente acompanhada de todas as abençoadas inquietações da natureza em volta: o vento a fazer farfalhar as folhas das árvores. As cigarras, os lagartos e répteis na caça de insetos para jantar. A quietude necessária para superar as tensões da guerra-fria urbana.

Hora de dormir, acende duas velas de sete dias para seus dois Anjos da Guarda. Estende uma esteira sobre o tapete do chão do quarto, relaxa em meio ao silêncio. A luminosidade da lua, das estrelas, penetra pelos vidros e frestas das janelas.

Dorme e sonha que está dormindo. O espelho da parede defronte ganha uma luminescência transparente, cor de luar. Ela caminha em sua direção. Atravessa um corredor com paredes cor de mel, esculpidas com pequenas cavidades que se parecem alvéolos. Estranha estar tranquila. Após caminhar algum tempo, chega até uma sala onde um ser humano adulto passa a impressão de conversar com uma plantinha.

A princípio acha a atitude simpática. Aproxima-se mais. Há uma embalagem em suas mãos. Parece cornflakes. Nela está escrito: nutrifoods for animal/vegetal clones. Aproxima-se mais, até ver com clareza a quem ele está alimentando. Ouve a vozinha infantil de felicidade repetindo algo como, não sabe ao certo se ouve direito: “Mazzi, massi, mashe, shiii... Booom”.

Carla imagina agora que a pessoa esteja alimentando uma criança, que, por algum motivo, não pode levantar-se. Chega mais perto para observar melhor o que está acontecendo. O corpo recua súbito, sob o impacto mórbido da surpresa. Ao recuar, tropeça a perna na poltrona e cai sobre ela, o coração a mil. Não imaginou que pudesse testemunhar uma coisa dessas algum dia. Chocante, muito chocante, terrível. A hata yoga e a meditação (adiana-yoga), têm algo com isso? Ela é contumaz praticante das modalidades de yoga, da bacti-yoga (devoção) e da carma-yoga (no trabalho).

O espanto sonoro do grito de surpresa e horror parece não ter sido ouvido pelo indivíduo e por seu divertimento. Estão, talvez, em outra dimensão, não podem ouvi-la. Como posso ouvir os sons emitidos pelo ser, meio a meio humanóide e vegetal?

Esse pesadelo acontece porque está dormindo. O coração prossegue num bate-bate forte, nervoso. O brinquedo, oh não, é um enxerto vegetal com gen humano. Produto da engenharia genética.

Em frente à poltrona da sala na qual está esparramada, o nariz aponta para a tv. No intervalo de um programa, a face da showgirl, convida os tvespectadores a consumir a mais recente novidade do mercado, exemplar clonado: mistura de planta e gente.

— Não é uma gracinha? Pergunta ela com a característica voz de vovozinha infantilizada: E vai fazer companhia, a você aí, da poltrona, por toda a vida.

A imagem do monitor de tv mostra um pescocinho infantil a ganhar elasticidade, a partir do pequeno tórax projetado de um tronco vegetativo coberto de folhas. A boca começa a lamber mansamente a mão da apresentadora ruminando infantilmente: “Hummm, booom, magi, magze, maigi, shshiii, bomm.”

— Olha gente, continua mostrando a imagem do enxerto vegetal com gen humano: Este é um experimento evolucionário singular. Jamais houve, jamais haverá, outro indivíduo igual a este. É a companhia ideal para você senhora, para o senhor, para o grupo do qual vocês fazem parte. Estarão juntos como bons amigos, e viverão uma longa vida de afeição, camaradagem e simpatia. Seu tempo médio de vida é de 89 anos. Este ser híbrido (“Não é uma gracinha?” Repete ela) vai viver, possivelmente, por mais tempo que você.

— Made, magin, bom, hum, bom, ouve-se outra vez o enxerto balbuciar.

A perplexidade de Carla no atônito olhar. O programa vai ao ar pelo canal cinco. A coisa está acontecendo mesmo, ou vai acontecer? Como, quando? Pega o controle remoto e começa a tentar mudar de canal. Não consegue. Navega no desconhecido.

As teclas do controle remoto não funcionam a contento. O contato dos dedos na superfície digital do controle, não é real nem aderente aos dedos como no forro do sofá. Não sabe ao certo como, mas está num melancólico dia do futuro. Não compreende os paradoxos manifestos.

O adulto vira-se, dirigindo-se para algum lugar fora da sala. Carla puxa as pernas esticadas sobre o tapete para que ele não tropece. Tarde demais, ele vai tropeçar. Surpresa: não há atrito entre as suas e as pernas dele. O que pode ser isso? Esse ambiente, ela mesma, não passam de uma projeção a laser? Ela pode ouvir o enxerto, mas não pode ser ouvida pelo homem da caixa de cornflakes. Não houve contato com suas pernas, mas com a superfície do sofá, sim, pode segurar também o controle remoto, mas não mudar de canal.

Dirige-se então até o local onde se encontrava a pessoa, pega a embalagem de nutrifoods e tenta fazer a mesma coisa que ele, mas não consegue. O implante animal/vegetal causa-lhe grande receio, até mesmo certa repugnância. Ele ignora suas tentativas de charmar atenção, como se ela realmente não estivesse presente, ou não fizesse parte da mesma dimensão de sua existência. Traz para mais perto dos olhos a caixa do produto alimentar onde lê:

XURXUX PARK - For animal/vegetal clones: “Este produto contém todos os melhores nutrientes necessários à alimentação e à recomposição homóloga de seres simbióticos criados a partir de genomas animais e vegetais ultra-selecionados. Produto nutricional para embriões em cujos genomas foram incorporadas sequências de DNA exógenos, clonados por cultura in vitro, multiespécies. Garantido pela Biochips Company e pelo Instituto de Biologia Hereditária e Identificação Individual Genética. Produto aprovado pela lei nacional de biosegurança para seres bioorgânicos simbióticos.”

Continua lendo: “Esta é uma planta ornamental sui generis. Peculiar. É dotada de características que a torna super interessante para cultivo em ambientes internos. O colorido das folhas, dos frutos, a textura das flores, do tronco (animado por uma cabeça humana), configura propriedades decorativas incomuns. Atende às necessidades estéticas e lúdicas do ser humano, tal como a literatura, a música, a pintura ou um game de salão. Pode se tornar muito importante para o equilíbrio e a harmonia da vida do proprietário. Parabéns por esta aquisição.”

Carla gira o rosto em direção à tv, atenta ao garoto propaganda que entra em cena anunciando: “O reveillon está próximo. Esteja presente na ceia de frutos do mar do Clube Agassiz. Venha saborear 99 diferentes pratos de mariscos, peixes, moluscos e crustáceos: do cação-anjo à sardinha, sopa de lulas com azeite de cachalote, polvos, lagostas, mexilhões, camarão, amêijoa ao molho de espermacete, ostras... Réveillon Agassiz: Para quem não tem medo de ser feliz.”

Carla sente com intensidade um formigamento por toda a superfície da pele. Em poucos momentos surpreende-se de volta ao ambiente familiar do quarto de dormir. Não sabe como, mas esteve num lugar decorado tipo quarto quartel do Terceiro Milênio, numa outra dimensão. Está outra vez sobre a esteira, agora em posição de lótus, sem saber exatamente como voltou. Nem como saiu dela. Por mais traumática tenha sido a revelação, a experiência mostrou claramente que tipo de produtos industrializados estará sendo comercializado pela tv em algum lugar do futuro.

Seu rosto faz parte do outro rosto presente no reflexo. Ambas as personas se complementam. Não mais teme a fusão das faces: as diferenças entre seu rosto e o rosto que se fixou ao dela no espelho. As expressões nada mais têm de contraditório. Seu estado anímico não mais sente-se perturbado pela experiência de há pouco. Um pedaço do amanhã se revelou nela. Sente-se presente aqui e em algures.

Duplamente angustiada, os versos de um poema de Richard Wilbur ressoam na mente, resumindo esse trágico sentimento oceânico nela infiltrado pela experiência de visualização do clone animal/vegetal, como se a civilização estivesse condenada a perder os referenciais humanitários:

Sonhai com fluência, irmãos calados, que na infância
Tomastes com vosso leite materno a língua materna
Em cuja pura matriz, unindo mundo e mente
Lutaste para criar alguma linha de verso
Como suave rastro em campo de neve
Não avaliando que tudo podia derreter e sumir.

Como se a despertar do torpor exclama com uma certeza que até então não se presumia capaz:

— Melhor não haver futuro do que viver num tempo que há de vir como esse. A voz repete os movimentos labiais de seu duplo, da criatura, da projeção, a olhar para ela do espelho, a olhar-se nele.

Estaria seu alterego a convencê-la de que, se houver futuro, o caminho do progresso será esse? É, a um só tempo, ela mesma e a outra. E gosta disto, da poesia que um dia leu, em ressonância e sincronicidade com os versos de Walt Whitman:
Em cada objeto, montanha, árvore e estrela
Em cada nascimento e vida
Como parte de cada, desdobrada de cada
Significado atrás da manifestação
Uma cifra mística espera involucrada.





“O ABAPORU”

Bethbronca contempla-se, mas o espelho não é mágico, nem traz de volta a imagem anterior à mórbida metamorfose. Certo, está acontecendo uma coisa por demais absurda. A antiga proporção da cabeça persiste. A sensação de que ainda está aqui, como uma aura. Mas a cabeça, propriamente dita, está ausente, talvez a aguardar o momento de voltar à dimensão normal, consola-se.

Lembra das dores de cabeça que antecederam à miniaturização do crânio. Puxa pela memória. Deseja saber como todo esse absurdo começou. Olhos, boca, ouvidos, nariz, testa, cabelos: como era bonita normal, apesar da idade. Beth escova a cabeleira, a exercitar a antiga, inútil vaidade. Os olhinhos cheios de uma frustração indizível, lágrimas de ódio rolam das facezinhas alaranjadas.

Afirma-se nela a emoção de que perdeu a guerra para um tipo de poder do qual está excluída, exceto enquanto vítima. Nesta realidade inusitada, vale tudo, até fazer com que esteja reduzida àquela personagem surreal, corpo imenso, mente de passarinho, da pintura modernista.

De repente, num rompante, guinchos e berros de indignação:

— Como essa merda foi acontecer logo comigo?

A boquinha mínima abre-se num esgar de vômito. Vômito que ameaça sair, mas não sai, aprisionado ao esôfago, que se encomprida como se fosse de plástico. A cabeça cresce alguns centímetros de diâmetro, o pescoço estica-se para dar passagem à massa de alimentos mal digerida. A carinha, uma grande maçã de fogo, vermelhinha.

Nhéco, brughi, croongh, shungri, vlugt: os restos da alimentação caem às golfadas da boquita pintada de Bethbronca. Pragueja, os lábios contorcem-se de raiva. Os ressentimentos fluem das entranhas mais profundas da alma negra, vingativa:

— Foram as crianças, não sei como. Foram elas, as malditas crianças. Fizeram isso, as bruxinhas, filhas das mães. Aqueles duendes, garotinhos malditos. Terceiro Mundo, como meu avô dizia, é um lugar primitivo cheio de bruxarias.

Lembra das vezes que chamou o elevador no 12º andar. Entre ele e o térreo sempre entravam crianças e a ficavam encarando. Forçando-a ao vexame de ter de esboçar sorrisos de boa educação para elas. Achava esquisita a presença delas toda vez que o elevador parava, entravam, uma, duas, três, num e noutro andares. Jamais imaginou essa consequência.

— Como conseguiram isso? Malditas.

Busca a cabecinha quase perdida entre as mechas de cabelo, alfinete num palheiro. Achou-se parecida com alguém. Mas quem poderia parecer comigo? Ridículo, é impressão, neurose. Ah, sei, sim, a reprodução do quadro daquela pintora modernista, no salão de eventos do prédio. Aquele quadro danado de horroroso, bobagem modernista. De quem foi a idéia de pendurar aquele quadro lá ? Aba...Abu...Abazulu, não, não. Abapu...Abaperu, não, não... Aba, Aba qualquer coisa, Aba não sei das quantas. Malditos baixotes.

Com o narizinho respirou fundo várias vezes. Acalmou aos poucos a animosidade, fez carinha com ruguinhas de injustiçada:

— Mil vezes malditas crianças. Engasgou-se, tossiu:

— Como puderam os pestinhas? Não pode ser. Não pode ser. Bethbronca se contém. Ela sempre primou por parecer educada, senhora de si, européia. Agora, essa postura de gentinha supersticiosa.

— Controle-se Beth, ralhou consigo, com certeza há uma explicação científica para isso.

— Que horror, meu deus! Exclama, olhando-se no fundo dos olhinhos. A medicina moderna descobrirá a cura para essa moléstia maldita? Lágrimas de raiva, em miniatura, escorrem pela superfície lisa e circular das faces. Demoram a descer pelo pescoço demasiado estriado e longilíneo. Vergonha, humilhação, vergonha. Demais, demais. Ahhh, urghs, gruunchm: cai em prantos.


H3V
EXTRATERRENO?

Hélio está menos intranquilo, com Carla passando o resto das férias em Santo Antônio do Pinhal. Com sua própria vida e futuro, não tão otimista. Percebe manchas escuras na parte anterior das mãos, na interna dos braços, assim como à direita e à esquerda do tórax, na pele sobre as costelas inferiores.

Ao seguir para o apartamento, sozinho no carro, fica matutando sobre a irresponsabilidade consigo mesmo e com a família. Bobagem ceder ao impulso de fazer sexo, mesmo sabendo que a vadia poderia estar infectada. Quando a camisinha estourou, nem ouviu o ruído, prosseguiu compulsivamente no fuque-fuque.

Agora sabe como se sente mórbida uma pessoa condenada à morte por esse vírus, complexo demais, possivelmente criado por uma experiência científica de laboratório militar. Até mesmo os extremamente paranóicos militares do Mundo Globalizado da Guerra Fria se impunham limites. Ou não?

Entrou em surto de autopunição, por ter acompanhado os sofrimentos da jovem amante, da qual gostou mais do que da mulher, mãe de Carla. Ela chamava-se Walquíria. Ao invés de apoiá-la, abandonou-a quando soube que estava soropositiva. A culpa o infectou, não apenas o vírus.

Fica matutando sobre os efeitos do H3V. Assola o corpo com fungos e bactérias que destroem gradativamente os órgãos, satura o sangue com novas variantes, entumece e estraga as gengivas, compromete as funções sensoriais básicas, destrói as matérias brancas do cérebro, transformando-as em uma pasta necrosada cheia de grânulos, tumores cancerígenos, quistos do tipo sagu.

— Não, não é possível, murmura de si para consigo. Nenhum cientista seria, talvez, monstruoso de prestar-se a criar esse horror virótico, esse poder destrutivo da guerra bacteriovirótica.

Mesmo com toda a grana que a pesquisa militar destina à compra dos serviços desses cientistas, com certeza, não... Sim, muitos deles se prestam, por dinheiro, a todo tipo de baixaria experimental.

Dinheiro compra tudo. Os cientistas não são nem mais nem menos venais que outras categorias profissionais. São mais perigosos, quando vendem serviços aos militares. A ciência, afinal, não é mais que outra mercadoria etiquetada, em oferta nas vitrines do mercado de trabalho do capitalismo selvagem, a qualquer preço: “Lance um míssel em cima dele, depois aplique um ban-aid”, é a lei.

Hélio prossegue num estarrecido murmúrio subjetivo: A natureza humana por si mesma, não teria recursos quimiobiológicos para criar um inferno orgânico dessa proporção destrutiva. Negação superlativa da condição normal de si mesma. Quanto mais coitadinho e comiserado mais deprê.

Todas essas evidências são suficientes para convencê-lo de que o H3V é extraterreno. Imagina: a criação sádica desse vírus exigiria um superconhecimento hipercientífico, sobre-humano, extraterrenal, desde que produz os aniquilamentos perversos, parcimoniosos, gradativos, das defesas naturais do corpo do infectado.

Passa a creditar que o vírus é obra de algum demônio. Lúcifer, na tradição oculta, representa a alma coletiva dos habitantes de certo planeta cuja estrela explodiu. Migrou de Vênus, as condições deste planeta Terra, mais parecida com as de seu habitat anterior. Seu psiquismo, por imitação mecânica (psicosmose), tem por propósito limite explodir este planeta depois de esgotados os recursos ecológicos.

Em seu diálogo interno, pergunta-se:

Algum ser humano, por mais paranóico, degenerado e psicótico, por mais repulsa que possa sentir por outros semelhantes, por suas idéias, seria capaz, por dinheiro, de desprezá-los o suficiente para investir na criação de microorganismo tão virulento e avassalador? Há ser humano com tanto horror à própria espécie? Com tanto ressentimento e ódio a seus semelhantes? Talvez. Não, com certeza. Há sim.



A DIVINA
CONTAGEM

Domingo. Hélio adentra com a mulher o ginásio coberto no qual se realizam os encontros dominicais no Templo da Igreja do Salvador dos Últimos Dias. O recinto comporta vinte mil e quinhentas pessoas sentadas. Está lotado, com muitas outras em pé. Os ministros da Igreja há muito não viam um afluxo intenso de fiéis ao culto matinal. A explicação está na veemência e no inusitado das mensagens do pastor Antunes.

Ainda que não sejam, exatamente compreendidas, há nelas uma afirmação de que as esperanças dos humildes de coração não são castelos de areia, serão cumpridas em rápido prazo. A prédica começa:

— Desde os tempos antigos, Deus visita e resgata o povo das aflições. No Antigo Testamento os exemplos são muitíssimos. Ele livra o povo ameaçado e inferiorizado, de inimigos cheios de recursos bélicos, e muito mais numerosos. Exerce a misericórdia em favor dos que se mantêm no caminho do conhecimento das verdades mais simples da vida.

— Santo Agostinho dizia que o Novo Testamento está escondido no Velho, enquanto o Velho se revela no Novo. Eusébio de Cesaréia, morto em 340, afirmava que cada Profeta, cada escritor antigo, cada revolução do Estado, cada lei, cada cerimônia do Velho Testamento, aponta somente para Cristo, anuncia somente Ele, representa apenas Ele. Ele, que está no Pai Adão, progenitor dos santos.

— Cristo, inocente e virginal como um mártir em Abel, um renovador da palavra em Noé, abençoado em Abraão, o alto sacerdote em Melquisedeque, um sacrifício voluntário em Isaac, chefe dos eleitos em Jacó, vendido por seus irmãos em José, poderoso no trabalho no Egito, um doador de leis em Moisés, sofredor e abandonado em Jó. Odiado e perseguido, na maioria dos profetas.

Antunes fala ter chegado o tempo do cumprimento das profecias. O discurso causa certa apreensão quando menciona a ""amblose disforme"", doença virótica que impede a multiplicação celular do zigoto, e a formação anatômica do feto. As mulheres infectadas não mais têm condições biológicas de gerar filhos.

— Irmãos, interroga, dramaticamente Antunes: Como separar o joio do trigo ? Quem é joio, quem é trigo? Mulher, você gostaria de ter filhos para serem serviçais de Satã?

— Ele e suas legiões precisam de seus corações e de suas mentes para afirmar esta cultura. Em sua gênese, ajudou o Plano Divino a estabelecer as colônias de desenvolvimento na Terra. Vendo belas as filhas da raça humana, cobiçou-as. Atraído pela beleza natural do planeta, resolve ficar. Daí a alcunha de “anjo caído”: caiu no oceano de luxúria carnal do poder. Através dos milênios reinou, reina. Em breve, não mais reinará. Este planeta Terra será tirado de seu domínio globalizado.

— A raça humana é uma raça de corpos com uma alma coletiva luciferina. Isto explica por que há tanto horror diário no mundo, por que acontecimentos estranhos, violentos, estão a se repetir diariamente nas ruas e avenidas das grandes cidades. Crianças assassinando crianças, pais matando covardemente a descendência. Eles, os filhos, vítimas de infanticídios. A criminalidade de todos os tipos aumenta: parricídios, homicídios quase que gratuitos, irmão contra irmão, guerras, genocídios, centenas de escândalos políticos e econômicos, poluição ambiental, mental, prostituição infantil, fome, miséria, mentira, medo, agressão. Autoridades dizendo que isso é sinônimo de desenvolvimento.

— A alma do homem não pertence ao homem. A alma do homem é uma caixa de Pandora. O sacrifício crístico, a oportunidade de pegar as rédeas de seu corpo e de sua alma, vencido pela evidência diária da condição humana satanizada.

— Vejam a realidade, leiam os jornais, tvvejam a tvvisão: todas estas evidências são mais fortes que qualquer palavra, ideal ou ilusão.

— O que presenciamos hoje é a globalização, a satanização da alma pessoal e coletiva. Os economicamente fortes dominando e submergindo os mercados mais fracos, tornando-os dependentes de quinquilharias que geram riquezas para poucos e aniquilam o princípio espiritual de seus consumidores.

— Deus não gosta que sejamos idealistas e ingênuos. Irmãos, o conflito sempre existiu e sempre existirá. Mas o homem tem direito a uma essência. Livre arbítrio significa poder avaliar a natureza Ética e o valor das coisas, do trabalho, da realidade. O homem tem direito a abrir seu coração individual, a criar soluções e identidade social que não sejam deletérias. O homem tem direito a lutar para não ficar socialmente submerso num mercado de valores de papéis, mais adequado a uma descendência de uma raça de traças.

— Nas ruas, a insegurança aumenta, assim como a percentagem de pessoas afetadas pelo pânico urbano das metrópoles. A força pública de repressão ao crime se confunde com a violência dos marginais, contra membros indefesos da população. A extorsão de bens por parte da força policial, motivada pelos baixos salários, é moeda corrente. As pessoas que defendem os direitos humanos são cada vez mais estigmatizadas como sendo sonhadoras de uma utopia que existe apenas em suas cabeças.

Sheila isolou-se subjetivamente por tempo suficiente para perder a continuidade do discurso de Antunes. Ao voltar a prestar atenção, o pastor está dizendo:

— Deus só sabe contar até um. Para Ele um é suficiente. Cada pessoa é uma, inimitável, inconfundível, irrepetível. O sacrifício de Cristo chamou cada um de vocês à salvação. Mas que dizer de um mundo onde a salvação e a transcendência não são mais possíveis? As motivações luciferinas tomaram conta das vidas das pessoas e as perderam para a eternidade.

—As ruas das grandes cidades explodem em acontecimentos incompreensíveis, sintomas externos de uma guerra que está se travando entre forças, grandes forças internas, impulsionadas pela submissão cega do homem a uma cultura de malefícios tecnológicos, uma cultura do e para o consumismo, uma cultura do sai de baixo espiritualidade.

— Qual de vocês gostaria de ter filhos para a glória de Lúcifer? Para ser por ele explorado e escravizado em suas vidas físicas, ter as almas eternamente sob nefasta coleira? Deus, em sua infinita misericórdia, livra cada um de vocês dessa desatinação. Breve não mais haverá descendência para a satanização humana neste planeta.

— Melhor não haver descendência do que haver filhos caídos para servirem às guerras, calúnias, traições, humilhações, à prostituição do corpo e da alma, ao ódio, à injustiça, à corrupção de um mundo dominado por uma filosofia e uma intencionalidade de comedores de hambúrgueres. De globalizadores de popcorns.

— Qual de vocês gostaria de gerar uma descendência para servir à herança de interesses forjados nos gabinetes dos políticos luciferinos, das organizações mundiais movidas pelas ambições de ganhos, egoísmos pessoais e de classe, por divergências e preconceitos étnicos, tribais, conflitos anímicos, sociais, econômicos e ideológicos?

Pastor Antunes menciona a ""amblose disforme"" enquanto fonte da providência divina para não mais alimentar os espíritos geridos por Lúcifer, e suas tropas de choque. Afirma que o homem sempre necessitou e necessitará de uma força transcendental capaz de mantê-lo na linha. Do contrário, o homem transforma a realidade em sofrimentos, mazelas, aflições, doenças.

— A vida é apenas uma embriaguez. A sociedade se transformou numa tenebrosa rede de intrigas, poder, drogas, crueldade e luxúria. Não há virtude nisso: há confusão cada vez maior, nesse atalho para o progresso de uma civilização que se acomodou à cômoda barbárie das pessoas da poltrona da sala de jantar.

— "Amblose disforme", esse é o único caminho possível. Esse vírus vai permitir um basta nesses fenômenos novos, complexos e destrutivos, parte de uma interação entre compulsão instintiva e exploração “cooperativa” de cada um por todos e todos contra cada um. Deus não está ausente. A "amblose disforme" é a maneira da sabedoria divina dizer basta. Fazer-se presente.

— Basta com os mecanismo sociais da violência urbana. Basta com o genocídio da política de todos contra todos todo tempo. Basta com a desintegração orgânica da espiritualidade, com a manipulação pervertida da violência por grupos que dizem estar fazendo o melhor pela sociedade, quando a liderança desses psicopatas, conduz aos efeitos terríveis que presenciamos todos os dias. De que forma nos livrar da conexão dessa vontade coletiva, interagindo com forças destrutivas que só aumentam nossas necessidades e compulsões?

— A ciência tudo explica, mas não é capaz de achar uma droga que possa impedir a mulher de perder a propriedade de gerar descendência. Por quê? Porque uma descendência para cumprir os desígnios luciferinos? Se Deus disser ao Sol: é hora de se metamorfosear em estrela vermelha, contra todas as expectativas científicas, astronômicas, ele avermelhará...

O discurso religioso termina. Após o culto, Hélio dirige o carro em direção ao apartamento. É como se, alternando com a esposa, fosse sua vez de ficar absorvido por sensações psi. O asfalto oscila, a avenida se abre em infinidades de direções, percorrendo tempos subjetivos diversos, que acompanham a jornada até seu apartamento.

Sim, é possível seja isso, para o Salvador dos Últimos Dias...Está cada vez mais esquisito habitar a Terra...Os escolhidos, desde Giordano Bruno, as pessoas que pensam um mínimo, sabem que existem milhões, bilhões, infinitos lugares diferentes e parecidos com a Terra. Afinal, chegada a hora fortuita, esperada, da migração para outra morada do Pai, onde haja possibilidades, que não apenas a da satanização das almas.

Intimamente Hélio se interroga: Por que Deus criaria todos esses infinitos espaços? Para desperdiçá-los com o vazio, com o nada?... O problema deste planeta é que muitas pessoas mortas estão ocupando cargos políticos de comando, comunicação e controle...Pessoas que não têm a mínima condição de acompanhar e se interessar pelo que realmente poderia mudar para melhor as condições de sobrevivência coletiva. Pessoas dominadas pelas ambições luciferinas do “Reich dos Mil Anos”, que nada mais têm de humanas, e nem sequer desconfiam disso: de que trabalham para a globalização satânica do planeta.

Começa a acreditar: Se esse pastor Antunes estiver falando coisa com coisa, os sinais do fim em breve estarão muito nítidos aos olhos surpresos de todos. Uma nova chance, um novo começar, o eterno retorno da raça humana a uma condição que já se repetiu alhures, mil vezes mil vezes.

Talvez, Lúcifer, espírito, e sua tropa de choque, sua arrogância, e os corpos da raça humana, sejam complementares. E nessa prometida nova morada, após milhões de anos de suposta evolução, a coisa toda da civilização venha a terminar desse jeito, como terá acontecido, possivelmente, em outras supostas moradas do Pai, semelhantes à Terra. Outros mundos talvez tenham acabado da mesma forma, habitados pelo código genético da raça primata sapiens/demens. É essa, a destinação da raça humana, onde quer que tenha habitado, onde quer que venha a habitar.

As interrogações dele correspondem às de centenas, milhares, de outros crentes. A nova habitação do ser humano terá um sol e uma lua parecidos com este sol e esta lua terrenos? A vida humana terá uma continuidade, uma história como neste planeta, terminará como está a terminar, agora? As perguntas de Hélio se multiplicam, e as de Sheila. O casal olha para os filhos que parecem muito, muito concentrados, para crianças com um sistema nervoso disperso, pelas solicitações conflituosas de uma metrópole como São Paulo.


CANAL 10:
A TVVIRTUAL

No quarto de Sabrina duas faxineiras dividem a limpeza do apartamento. Ao adentrarem, por curiosidade, no quarto da moça, ficam circulando, como se numa praça ou parque, como se não soubessem o que fazer. Uma hipótese é que fiquem tão perturbadas com esse corpo belo, jovem, feminino, flutuando como se por mágica, a alguns palmos acima do colchão, que venham a perder a memória de seus afazeres, o contato com a sequência do trabalho doméstico.

A memória delas se dilui. O branco total substitui a mecânica das obrigações. Ficam iguais a recrutas faxineiros, sem ter o que fazer nos quartéis, perambulando pelos pátios e áreas adjacentes. Ou turistas perdidos num bairro estranho, talvez perigoso.

Enquanto isso as crianças habitantes do prédio, não querem mesmo nada com as imagens convencionais de TV. Sintonizam por controle remoto mental, o canal 10. As domésticas que tomam conta das crianças estão simplesmente possessas, por não poderem apreciar os programas vespertinos. As dondocas não sabem como os filhos conseguem fazer, que truque usam para, sem ajuda do painel de controle de canais fixo na tv, na ausência da utilidade do controle remoto, conseguirem sintonizar a tvvirtual. Elas querem ver novelas, mas são bruscamente interrompidas pelas imagens do canal dez.

À noite, na hora sagrada do Jornal Nacional, das novelas do horário nobre, a telinha misteriosamente fica chuviscando, como se com defeito. Os serviços de conserto de tvs faturam uma nota preta. As reclamações no Procon, Decon, e outros, por usuários que ainda estão com suas tvs no período de garantia, chovem aos milhares. Os técnicos alegam que as “consertaram”, substituíram peças, ajustaram, que a culpa não é deles, que o defeito é de fábrica.

A coisa do chuvisco tvvisivo transforma-se em epidemia. Os jornais noticiam que isso acontece em consequência de frequentes explosões solares. Os cientistas dizem que elas estão interferindo na retransmissão dos programas via satélite. Alegam que as antenas retransmissoras das emissoras de tv estão sendo afetadas. As meninas e os meninos parecem saber que não é exatamente isso... Calam-se. Guardam para si, intuitivamente, a causa dos distúrbios.

O povo das poltronas da sala de jantar pergunta-se perplexo: Como conseguem fazer isso acontecer ? Donde vem a força dessas imagens ? Quem as usa quer o quê ? Qual o truque para fazer valer esse Ibope acima das outras emissoras de tv ? O mando do mundo não é mais dos adultos, a raça humana não realizou a mutação entre o símio/sapiens/demens e o ser humano racional. E os gostmovies mostram essa cultura, essa civilização que não é nem de macacos nem de humanos.


QUEM SE
IMPORTA ?

O mundo mudou muito sim. Mas as pessoas apegam-se desesperadamente às antigas rotinas, na esperança de verem tudo voltar ao normal, como se, realmente, os estranhos eventos fossem apenas provisórios.

Carla, ao voltar à rotina do escritório, “está mais nova”, “até a cara mudou”, na opinião de seus companheiros de trabalho. Sente-se melhor, não apenas pelas férias, mas por saber-se outra. Acha que seu ego talvez esteja sendo absorvido e substituído por uma dominação que, ao invés de inquietá-la, traz para si uma enorme sensação de bem-estar interior: as engrenagens que revelam a mecânica perversa da realidade são agora, para ela, simplesmente acessíveis.

Antes da “outra”, tinha um grande medo de que a preciosa seiva natural e passageira de que é feita a vida, estivesse inapelavelmente desperdiçada na ignorância e na inconsciência desse inusitado silencioso, a cercar e envolver as pessoas, sem que elas possam fazer algo, com resultados efetivos, para combatê-lo.
Carla conta agora com certa facilidade em sentir sobre si, a intensidade oceânica dos sentimentos das pessoas que trabalham com ela. É como se seus íntimos temores estivessem claros para ela. Não raras vezes desvia delas os olhos. Ainda não sabe absorver as mensagens de seus psiquismos e devolvê-las com outro olhar, ou palavras, que venham a afirmar outras coisas e valores, diferentes da calada fraqueza de suas carências. Parecem não saber o que fazer, enquanto se agravam os estados patológicos mórbidos.

Sente-se ao mesmo tempo envolvida e distante da antiga identidade. Acha incrivelmente superficial esse enredo burlesco mas relevante, que domina e controla as percepções de suas rotinas. Agora ela pode observar o mundo real por detrás da farsa, um mundo onde vários medos se agitam e interpenetram-se através de vibrações camufladas, em atitudes supostamente agradáveis, despretensiosas, risonhas, inconsequentes.

Agora, Carla vê essas máscaras enquanto sintomas de uma perversão pessoal e coletiva, atuante em suas rotinas subconscientes, como uma “Espada de Dâmocles”, à qual são obrigados a aceitar passivamente. Mas as sequelas, mais cedo ou mais tarde, aparecem: às vezes como uma infecção que corrompe o corpo após ter minado a alma. Mantida por muito tempo, camuflada, finalmente somatizou-se.

Ela se pergunta: Essa espécie de morbidez inconsciente não é a responsável por essas novas séries de virulentas infecções viróticas. ? Se essa morbidez é o túnel, a ponte, por onde penetram as hepatites C, F, H e, as outras mutações macabras do H3V, que estão dando um baile na pesquisa científica, com a proliferação de formas variantes, coloridas, do horror virótico.

Carla capta intercâmbios de vibrações entre as pessoas. Desconfia: essas vibrações estão gerando um certo “campo magnético”. Ele somatiza terríveis doenças que a ciência, aliada à falta de vontade política dos governos, não consegue debelar. A exemplo da variante FLP do H3V, que ferra as pessoas infectadas com manchas amareladas. As manchas geram enormes taxas de desemprego, porque nenhuma empresa quer em seus quadros, funcionários infectados por uma doença terminal, que mata em pouco tempo. Os sintomas são camufláveis, mas não de todo.

Os salões de beleza criaram um novo tipo de consumidores de seus serviços: a maquiagem radical, que camufla os sintomas das variantes do H3V na epiderme. Outras dessas variantes, a do vírus PSDB, apresentam manchas alaranjadas, e as vítimas do PUF são “ferradas” com marcas retangulares, cor preta petróleo, na pele.

É como se as pessoas estivessem sendo marcadas como gado, separadas em lotes, com sintomatologia a cores, para algumas instituições saberem, mais tarde, o que fazer com elas, segundo a identificação, a marca do dono na pele, como acontece com os rebanhos bovinos.

As vítimas infeccionadas, após padecerem das mais escabrosas variantes de degenerescência orgânica, passam entre 12 e 30 meses definhando, perdendo a noção de tempo e a competência orgânica, distanciando-se do princípio de realidade, e do princípio do prazer sem forças para reivindicar o que mais seja, além de sete palmos de chão, com todos os órgãos perceptivos embotados, sem elasticidade ou resistência.

Carla ainda não sabe como usar a percepção extrasensorial para definir semanticamente a causa das doenças viróticas que alguns médicos alegam ser mutações do ADN do H3V. Ela enxerga, com essa espécie de terceiro olho perceptivo, um emaranhado de causas, mas ignora como criar as palavras para comunicar a percepção cinestésica dos fatores e reações químicas, através dos quais, se lhes apresenta a realidade. Sabe que a atuação de tais vírus é, em parte, efeito de intensas interações da energia radiante entrecorpos.

Ela observa esses intercâmbios energéticos, mas não possui uma teoria capaz de explicá-los. Mesmo se a tivesse, quem acreditaria nela? Tal como sugeria o slogan de uma antiga série de tv, Millennium: “Espere, desespere, atormente-se. Quem se importa ?”



OS GRINGOS E MANOA:
A CIDADE PERDIDA
NA AMAZÔNIA


Um dos membros do Conselho Editorial reúne-se com Rossi. O Conselho avaliou a totalidade dos argumentos do Arquivo Jangal. Uma coincidência fortuita permite que Rossi participe de uma expedição à Amazônia, organizada pelo milionário americano Peter Aníbal Norton. Norton, ex-oficial americano da 3ª Guerra do Golfo, participou, como observador militar, da cobertura jornalística à invasão americana à 3ªGG. Ex-agente da CIA, traficante internacional de armas e material estratégico, seu curriculum vitae criminal daria para preencher uma resma de papel de fax, sobre façanhas bélicas, monitoramento cibernético de empresas, prática de espionagem industrial a serviço da guerra biológica.

A reunião tem por objetivo definir a participação do jornal de Rossi, na expedição do americano, sem nenhum vazamento desta informação, até a possível obtenção de resultados. Espera-se ouvir alguma explicação científica razoável sobre as ocorrências incomuns que assolam o dia a dia das grandes cidades. Acreditam alguns observadores, que emissões da tvvirtual são originárias da selva amazônica. Explicações racionais, definitivas, não apenas especulações teóricas de leigos, podem resultar dessa expedição.

Quanto menos pessoas souberem da aventura rumo às entradas secretas aos túneis que supostamente conduzem às cidades subterrâneas na Amazônia, melhor. “O segredo é a alma do negócio”, lembra um membro do Conselho Deliberativo do jornal.

Rossi e um fotógrafo estarão por conta de um periódico diário com sede em São Paulo. O comando da expedição fica com o gringo, Norton, portador da tecnologia de pesquisa vias coordenadas obtidas por satélite, e do resultado de estudos de antropólogos, filólogos, geólogos, de aventureiros e profissionais da ciência, que uma vez tentaram desvendar esse mistério amazônico, e lograram voltar para contar suas histórias. Valeu ouvi-las, ou lê-las.

A orientação científica da expedição inclui dados em Magnometria, ciência que mede a intensidade dos campos magnéticos do planeta, utiliza radares ultrasofisticados e sonares de última geração. Eles permitem mapear, com precisão milimétrica, as extensões de túneis e edificações subterrâneas.

O americano pesquisou dados de centenas de pessoas, as mais e as menos gabaritadas, que organizaram, neste e no século passado, grupos de exploração desses locais lendários da selva amazônica, antes e depois das proezas do cel. Fawcett. A causa dos desaparecimentos de muitas expedições, um mistério, como se a frase indígena, muitas vezes repetida, “aqueles que procuram Manoa desaparecem para sempre”, fosse uma advertência a considerar.

Aníbal Norton e os outros dois membros estrangeiros da expedição hospedam-se no apart hotel NewLorena da Avenida Rebouças: um alemão naturalizado americano, Marcel Hermann Breed, Paul Bayle e Vassari Castelar, ex-oficial naval da marinha americana. Rossi telefona para um primeiro contato. Precisa conhecer a turma do mercenário americano, saber quais os objetivos e interesses em jogo. Por que incluir na expedição um jornalista brasileiro ao invés de outro, de sua própria nacionalidade?

Quais as motivações reais e interesses dos gringos que estão por trás desta expedição ? Talvez nunca descubra. De qualquer forma se questiona se fará ou não parte dela. Tem dúvidas, muitas. Penetrar nos cantões inexplorados, selvagens e isolados da Amazônia, é a melhor coisa a fazer no momento?

Seu sexto sentido conduz a uma atitude defensiva: os propósitos dessa aventura parecem juvenis. Estariam, talvez, melhor situados numa máquina eletrônica de fliperama para divertimento de caras pintadas. Rossi se pergunta se não tem mais a fazer que enfrentar situações de perigo no coração agreste da selva, imitando os aventureiros das antigas produções cinematográficas hollywoodianas.

Precisa ajuizar os perigos, as incertezas, encarar a fragilidade das expectativas otimistas, tendo em vista os resultados frustrados, nada invejáveis, de centenas de pessoas, mais ou menos preparadas, que os antecederam. O quotidiano pode ser alimentado com emoções mais domésticas. É menos arriscado. Por outro lado, trabalho e aventura não costumam estar junto.

Vale a pena buscar as respostas para os mistérios que cercam certos sítios inóspitos, de uma região que nunca foi hospitaleira e amena, mas cruel e implacável, com esses aventureiros menos precavidos, que até então se arriscaram a penetrar em certas imediações despovoadas da selva fechada, próximas à Serra do Roncador. Rossi e Aníbal Norton marcam uma entrevista na sala de visitas do apart hotel NewLorena. Nesse primeiro contato vão avaliar estratégias e possíveis conflitos de interesses.



A LUA
SIMÉTRICA
INVISÍVEL

As pessoas começam a se interrogar: "O quê, afinal de contas, são aquelas imagens tvvisivas do canal 10? De onde provêm, será um novo canal? Que significam os filmes em tempo integral (24 horas de exibição contínua), sem fundo musical, efeitos especiais ou intervalos para a exibição de vídeos publicitários?"

Agora, não apenas as crianças mantêm uma curiosa sintonia. Os índices de audiência dos outros canais caem a níveis alarmantes. Os departamentos financeiros das emissoras convencionais de tv estão deveras apreensivos com a inesperada concorrência.

Os noticiosos tvvisivos, radiofônicos, a imprensa escrita, as autoridades do Ministério das Comunicações, os departamentos jurídicos das emissoras de tv, os intelectuais, os frequentadores de bares e restaurantes, os habitantes das residências sofisticadas, os dos barracos nas favelas, todos comentam: ninguém permanece indiferente a cada história diária desse estranho e insidioso canal 10.

As opiniões divergem e caducam em rápido prazo:

— Não, as imagens do canal 10 não podem ser produto, tal como noticiado anteriormente, de superproduções franco-ibérica-nipônicas. Tais boatos foram desmentidos na semana passada.

Produtores de filmes daqueles países aproveitam a ocasião, chamam a atenção para a qualidade esmerada das produções do “canal virtual”. Advertem sobre uma suposta tentativa secreta de Hollywood, planejada e administrada pela CIA, dirigida pela Agência de Segurança Nacional, de abrir o mercado latino e sul americano para a exibição de filmes que mantivessem o consumo hegemônico das produções daqueles estúdios.

As notícias continuam especulativas, estapafúrdias e divergentes. A situação para os empresários do setor tvvisivo prossegue singularmente vexaminosa. Os comunicados de circulação interna, divulgados pelo Ibope, por outros institutos de pesquisa de audiência, fazem com que fiquem, os executivos das emissoras, cada vez mais apreensivos, impérios econômicos alicerçados nas imagens de tv sentem-se ameaçados e investem capital na investigação eletrônica do incômodo fenômeno das emissões de filmes de invejável qualidade de produção, sem que apareçam os devidos créditos, nem intervalos comerciais.

Nos filmes do Canal 10, são mostradas chacinas de finais de semana, assim como as dos feriados prolongados, na Grande São Paulo, com mais de 150 mortos. Os ânimos exaltam-se ao paroxismo, a ultraviolência banalizou-se. Qualquer trivialidade é motivo para soltar os bichos, abrir a tampa da panela de pressão mental. Dela saltam os conteúdos recalcados do inconsciente coletivo, nas personagens urbanas polarizadas contra si mesmas. Os paranóicos saudosistas da Guerra-Fria dizem ser uma nova estratégia de domínio psi, agenciada pela ex-União Soviética, com financiamento dos paxás do petróleo do Oriente Médio.

Jornalistas da revista Newsweek e do The Times, em reportagens de capa, comentam os custos astronômicos das produções de filmes com 24 horas de duração. Anteriormente, a produção que chegou mais perto, Berlim Alessandreplatz, de Rainer Fassbinder, diretor alemão influenciado por Howard Hawks, Fritz Lang e pelo dramaturgo Bertolt Brech, não chegou a 12 horas de exibição contínua, produzida no terceiro quartel do século passado. Tais filmes virtuais são considerados desperdício de capital, sem retorno do investimento. Agora, o canal 10 parece desmentir este dogma da indústria cinematográfica. Os filmes “full-time” da tvvirtual ameaçam a audiência dos outros programas tvvisivos, inclusive os do horário nobre.

Poucas pessoas podem vê-lo por inteiro, exceto nos finais de semana. Um entrevistado alega:

— Ficar desperto 24 horas, tudo bem, um dia ou dois. Mas três ou quatro vezes por semana é difícil.

Um estudante de Letras da USP opina:

— Tenho de ir trabalhar, estudar, dormir.

Uma “socialite” faz charminho:

— Os afazeres domésticos, a higiene pessoal, meu cabeleireiro, não permitem que os veja por inteiro. Os cientistas e técnicos ainda não chegaram a uma explicação razoável do inusitado fenômeno tvvisivo do Canal 10. Há coisas muito esquisitas acontecendo sem que ninguém saiba explicar.

Em todos os lugares do mundo, pessoas crianças, adolescentes e adultas, de todas as nacionalidades, raças e religiões, comentam os significados das imagens. Sim, porque os filmes exibidos no Canal 10, em São Paulo e no Brasil, são os mesmos em exibição em todas as outras grandes cidades planetárias. Muda apenas a sintonia do canal de tv, e a aparência física das personagens. As imagens são as mesmas. Segundo opinam alguns comentários abalizados, até os enredos se assemelham ao estilo neo-realista de fazer cinema dos diretores italianos pós 2ª Guerra Mundial.

Muitas são as opiniões divergentes:

— As personagens, por vezes perversamente sinistras, parecem inspiradas nos filmes de horror do século passado, nos seriados tipo, A Noite dos Mortos-Vivos, Vampiros, Pânico, O Massacre da Serra Elétrica, Sexta-Feira 13 e demais personagens infantis que imitam Chucky, de Brinquedo Assassino, A Noiva de Chucky, O Filho de Chucky, O Neto de Chucky, O Filho do Neto de Chucky, e outras atuações adultas inspiradas em Freddy Krueger e Jason. O canal 10 é uma mistura deles com os noir-movies, os filmes de suspense e espionagem de Hitchcock, as ficções policiais de muita ação com cenas de violência excessiva, e toques de humor negro.

Um ex-cineasta brasileiro e atual cronista escreve sobre os filmes do canal 10:
— Têm muitos pontos em comum com as superproduções épicas e históricas, neo-atualizadas, tipo Cabíria, de Giovanni Pastrone, Nascimento de uma nação e Intolerância, de David Griffith. Outro cronista opina:

— Na real mesmo, a influência de Samuel Fuller, esse gênio maior de Hollywood, tem tudo a ver com esses filmes malucos da tvvirtual.

Na Itália, muitas pessoas ligadas ao cinema e ao jornalismo, identificaram os filmes sem produtores e exibidores explícitos, sem crédito e nome de autores, com um dia exato de duração, nestes termos:

— Eles estão muito próximos de uma síntese dos estilo dos irmãos Taviani, dos filmes de Lina Wertmuller com os de Gabriele Salvatori, Gianni Amelio, Monicelli, Scola e Fellini. Considerando-se a remota possibilidade de algum novo prodígio do cinema mundial, lograr fazer uma síntese dessa miscelânea de estilos e compilações fenomenológicas da realidade, é parte de um processo de criação de um espírito, individual ou coletivo, de altíssimo grau de extraordinária potência intelectual.

Um ex-guerrilheiro do Greenpeace, e deputado reeleito pelo Partido Verde da cidade do Rio de Janeiro, comentou:

— As opiniões divergentes, originais de diversas fontes de percepção do mundo real da tvvirtual, são um sintoma da doença contagiosa da dispersão, da impossibilidade globalizada de duas pessoas chegarem a um consenso.

— O mundo está como o diabo gosta. Nada contra as herdeiras das mulheres da tv global. Elas tinham como cartão de visita e único “talento”, mostrar o traseiro e o peitoral, via vídeo. Não era preciso representar, bastava para elas o “teste do sofá”. A realidade está em mutação. A olhos vistos.

— Acho que já não é sem tempo se as pessoas começarem a explorar a extremidade superior da espinha dorsal. A opinião da senadora Heronilda da Silva, causa polêmica: As pessoas parecem ignorar que tudo está mudando em volta, e são elas que devem, mesmo sem saber, de alguma forma, ser as agentes dessas mudanças. Mesmo quando inconscientes. O Terceiro Milênio pede, implora, por essa atitude cultural vista nos gostmovies.

Os jornalistas não conseguem sair das abordagens à antiga das velhas estruturas do agir e do pensar. Mesmo sabendo que elas não conseguem proporcionar uma resposta adequada para os conflitos subjetivos desses mundos estranhos, mutantes, inexplicáveis: virtureais. As opiniões são as mais divergentes, produto talvez da inaudita perplexidade:

— As gerações que nasceram no final do século XX e neste século XXI, não desenvolveram uma personalidade, um modo de pensar e agir característicos, personalizados. Daí, as referências dos comentários se aterem a autores e escolas de cinema das décadas do século anterior (Jornal O Globo).

— Por mais absurdo seja, a verdade: interesses estéticos de qualidade finalmente prevalecem nas avaliações de profissionais do cinema, suscitados pelo misterioso monitor virtual do canal 10. Estranho, mas as pessoas parecem, pelo menos provisoriamente, concentradas em emitir opiniões estéticas, mesmo as defasadas, como se as perversões fetichistas fossem mais fortes, e nelas conseguissem refúgio para o medo de não saberem, de outra forma, comentar os afortunados acontecimentos (Folha de São Paulo).

Na França, são apontadas semelhanças de estilo muito sutis dos intrigantes filmes “full-time” tvvisivos, com as produções de baixo custo da Nouvelle Vague, dirigidas por Jean Lodard, Fran Truffaut, Claude Brol, Alainnais, Loumalle, Jacvette e Agnès Wandá.

Críticos ligados aos Cahiers du Cinéma discordaram dessas opiniões, afirmando:

— Em tais filmes predomina a marca registrada do cinema intimista voltado para a observação fotográfica (literal) do quotidiano. Há neles flagrante identificação com a maneira de filmar de cineastas como Alain Nestor Corneau, Régis Wanier, Jean-Pauling Rappenau, Mapialat, Michelville, Erich Hohmer e Jean-Jacques Annaud.

Nos Estados Unidos, comentaristas ligados a produtores do cinema hollywoodiano, manifestaram-se em discordância:

— Os filmes do canal “full-time” são uma síntese dos estilos importados dos diretores de outros países: os australianos Peterweir e Georgetow Millering.

Três críticos, dos três mais lidos jornais da Costa Leste dos Estados Unidos, apontaram semelhanças inconfundíveis com o estilo de fazer cinema do cineasta Hectorio Babencowsky, do francês Barbet Schoeder e do holandês Paulino Verhowen.

Artigos na Play-boy-boy e na Pentehouse, subscritos pelos cineastas nova-iorquinos, Tim Jarmuschen e Johnathan Saylles, faziam filmes baratos, influenciados no estilo de filmar neo-realista. Eles dizem ser os filmes da gosttv “semelhantes ao estilo de filmar de roteiristas que passaram à direção, a exemplo de Holistone, Law Kasdan e de artesãos como Jh. Landison e Joy Carpter.”

Um resenhista do Rolling Quântico Journal sugere:

— Estas opiniões conflitantes são apenas sintomas de uma degeneração, de uma corrupção do caráter das pessoas. Uma confissão de que, na real, ninguém sabe o que está acontecendo. Ao invés de dizerem claramente isto com simplicidade, ficam inventando teorias sobre o cinema “full-time” da “tv fantasma”. Permito-me dizer que eles têm tudo a ver com a mensagem pacifista de To the Rig Sthing, de Spique Lee.

No Reino Unido, na Alemanha, nos países nórdicos, no Japão, na China, Argélia e Argentina, na Austrália, no Canadá, em Cuba, na Grécia e na Holanda, na Hungria, India e Iuguslávia, no México, na Nova Zelândia, na Polônia, no Rio, São Paulo e em Portugal, as argumentações e influências são debatidas com intensidade semelhante. O efeito tvvirtual globaliza a teorização sobre a cultura cinematográfica de hoje e antigamente.

De qualquer forma, os críticos e comentaristas da aldeia global admitem que a “tv fantasma”, segundo a opinião do cardeal arcebispo de São Paulo:

— Trouxe de volta os diálogos e as discussões, as argumentações cheias de sutilezas, geradas pelos antagonismos de opiniões, pelas oposições teóricas que não se resolvem, exceto provisoriamente, num clima dialético, característico da efervescência intelectual e da inquietação dos sentidos, própria dos anos sessenta/setenta do século XX.

— Estamos presenciando o mais avassalador fenômeno de globalização jamais produzido neste planeta, comenta o escritor do romance “Mui Vivace Pueblo Brasileño”. Os barões que produzem a maior parte dos filmes da comunicação cinematográfica e da produção dirigida aos tvespectadores das tvs a cabo, estão espumando bílis pelos cantos da boca, através de todas as mídias falada, escrita e tvvisiva do planeta. De fanáticos defensores da globalização de suas produções, eles não param de investir na execração pública da (ainda) fantástica produção ghost da “TV-full-time”. Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Globalização: boa apenas quando promovida por “eles”.

— “Cada um puxa a brasa para a sua sardinha”, comentário de Leo Cakoff Bisneto, organizador da atual Mostra Internacional de Cinema.

— A “TV-full-time” canibaliza, leia-se globaliza, os outros canibais da globalização. E eles não podem fazer nada: As frases foram pronunciadas pelo deputado Lindbergh Asturias Netinho, ao vivo, num programa de debates num canal de tv.

Nos EUA, a grande indústria pressiona os congressistas, exigindo deles uma mobilização, em rápido prazo, no sentido de acionar os poderes do Estado, através de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, destinada a investigar que interesses subversivos estão por trás da produção desses filmes do canal “full-time” tvvisivo.

Começa uma nova “caça às bruxas” nos EUA, por parte da “Agência Nacional de Segurança”, da Cia, dos agentes secretos modelo “Arquivo 3X”, do FBI. Alegam os barões da produção cinematográfica hollywoodiana:

— É “muito dinheiro mesmo”, para que sejam produzidos movies com 24 horas de duração e com essa excelente qualidade técnica, sem que apareçam os créditos de produção, ou inserções publicitárias.

Maryan Berttrand, relações públicas de grande produtora da Cinécitta, pronunciou-se em nome do estúdio, justificando-se:

— Os filmes do Canal 10 não têm trilha sonora, créditos de produção, legendas, nome da equipe técnica, e os atores são desconhecidos. As autoridades federais americanas em trabalho conjunto com a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço, finalmente conseguem identificar a origem dos sinais em VHF/UHF da tvvirtual.

Atestam os cientistas da NASA que os sinais são provenientes de uma grande estação orbital indetectável por meios eletrônicos convencionais. Ela está simplesmente invisível. Em seu perigeu, encontra-se a pouco mais de 365.000 quilômetros, em órbita elíptica e simétrica, à órbita da Lua, do outro lado da Terra.

A declaração do cientista da NASA soa bombástica em todos os meios de comunicação planetária. As pessoas geralmente comentam as notícias como se as autoridades científicas estivessem inventando coisas:

— Que absurdo, diz alguém numa mesa de bar, enquanto folheia o jornal diário. Como pode um cientista da NASA dizer uma besteira dessa?

— Estação orbital invisível, veja você, os cientistas estão no mundo da ficção científica, opina outro leitor, assinante do segundo maior jornal de São Paulo, ao ler a notícia no café da manhã.

— Com certeza estamos sozinhos no mundo da realidade, quando um cientista da NASA afirma uma bobagem dessa, é porque não há mais parâmetro para sentir o chão debaixo dos pés, escreve em sua crônica dominical Luois Fernandíssimo.

— “Tudo que tínhamos até então por realidade, está a se desmanchar no ar”, comenta o âncora do Jornal da Record.

As notícias da Agência Nacional de Aeronáutica e Espaço afirmam, através de comunicado oficial que, no apogeu, o ponto mais afastado da Terra, essa distância da estação orbital, não visível (porque em outra dimensão da matéria) encontra-se a 406.000 quilômetros. A longitude média entre a Terra e esta estação gigante, orbital, é de 389.321 quilômetros.

As opiniões das ruas, segundo pessoas que aprenderam a ouvir e a transmitir boatos atentam que os governos perderam o controle sobre a situação: atestam que a fonte responsável pela geração de tais imagens cinematográficas do Canal 10 provém do satélite Europa, do planeta Júpiter.

Uma certa confusão se estabelece, ninguém parece ter mais certeza de nada. As instituições governamentais teimam em esconder outras informações científicas pertinentes sobre a “tv fantasma”, da população civil do planeta, talvez para não causar pânico. O abismo de hostilidade amplia o fosso existente entre as classes governantes e a massa crítica desgovernada que exige respostas, mas não as obtém.

O cronista Carlos Grossi, escreve que a atividade dos “serial killers” não é mais característica apenas do american way of life, ou de países do Oriente Médio. O coração das trevas das metrópoles se afirma onipresente, onisciente e onipotente, nos movies full-time da tvvirtual. Afinal, a realidade dos eventos desses filmes, não é mera projeção do que acontece com as personagens supostamente ficcionais do diário coletivo das grandes cidades.

— As autoridades incompetentes não estão nem aí. Seus poderes não servem para nada, exceto para aumentar os níveis de insegurança coletiva: real e subjetivamente. Parecem não saber o que fazer. A maior parte desse caos, que propicia a elaboração de teses universitárias do fim do mundo, é gerado por elas, autoridades (Jornal da Tarde).

Num programa de entrevistas, um repórter menciona o descaso dos representantes dos órgãos do poder público, ao citar o autor da “Teoria Done”, que usou as frases finais do replicante do filme Blade Runner Ten, para externar a própria opinião: “É uma experiência e tanto viver com medo. Isto é que é ser escravo.”

Até que o óbvio ululante é descoberto e aceito por unanimidade: os filmes do canal 10 são uma representação do que está acontecendo na vida diária das pessoas. Elas simplesmente estão em estado de perene compulsividade agressiva: alguns chamam isso de 3ª Guerra Mundial, a continuação dos desdobramentos do “Reich dos Mil Anos”, afirmação do poder econômico-financeiro do “Reich dos Mil Banqueiros”.

Após a intervenção da NASA os ânimos melhoraram. Pelo menos sabem agora de onde a coisa vem. Sua origem não está em nenhuma misteriosa e distante nebulosa, encontra-se logo aqui, no espaço diametralmente oposto à Lua, do outro lado da Terra. Depois que a NASA pôs de pé o “Ovo de Armstrong”, as manifestações de astrônomos, físicos e matemáticos se multiplicaram. O astrônomo Cerqueira Milke, em crônica publicada pelo jornal de maior destaque da capital São Paulo, manifestou a opinião:

— Essa enorme estação orbital invisível, equivalente ao tamanho da Lua, emite os sinais da tvvirtual. Ahá, há uma teoria denominada “Das Faíscas Quânticas”, que sugere que esta é apenas uma estação de reciclagem de um certo tipo de energia radiante proveniente do espectro visível dos seres humanos no planeta Terra. Energia essa que deles se desprende completamente, seis horas, seis minutos e seis segundos, exatamente após a morte cerebral. Esse modelo de captação de ondas cerebrais inclui a participação também de animais. Estes, já dizia Darwin, “também sonham”. Todos podem observar, igualmente,quando aparecem nos filmes da tvvirtual.

Tony Goose, Físico formado pela Universidade Federal do Piauí, em entrevista por vídeofone para a CBN de São Paulo, “o canal que toca a notícia verbal”, emite opinião:

— A transmissão das imagens da tvvirtual provém deste inacreditável, invisível, corpo celeste: provas irrefutáveis, manifestas, de que matéria e energia não são entidades separadas, mas manifestações de um mesmo fenômeno: a tvvirtual é a Teoria da Relatividade na prática.

Stevens Thalking, Físico Prêmio Nobel, garante:

— As faíscas quânticas de transmissão da tvvirtual são raios laser gravitacionais. Esses raios são produtos da unificação das forças do eletromagnetismo e da gravidade. Os raios gravitacionais geram efeitos interdimensionais de deslocamento de massa, ionização atmosférica e “Zeemanização” dos átomos. As câmeras usadas por esses “cineastas misteriosos” têm “sintonia quântica e lentes laser”.

Angélica Binebone, PhD em Física Teórica, teoriza, do alto de sua cátedra na Universidade de São Paulo:

— A ghosttv pressupõe um mistério, até para a ciência mais avançada. As frequências operacionais desse corpo celeste que transmite os sinais, compensam a oscilação de imagens, sem causar uma refração desigual na ressonância da faixa visível. Talvez não haja três pessoas no mundo, ainda hoje, capazes de compreender as sequências de equações elaboradas por Einstein sobre a Teoria do Campo Unificado. O planeta tornou-se um campo unificado por essas forças, concentradas na estação orbital invisível, mas muitíssimo atuante. É a fenomenologia da globalização do “Reich dos Mil Anos”.

Wilhelm Goodchild Fraser, Físico e administrador do Programa de Investigação da Estação Orbital Virtual, gerenciado pela NASA, manifestou-se através da revista especializada, Scientific American:

— Sinais de parabólicas em locais ermos da floresta amazônica, captados por satélites monitorados por técnicos da Administração de Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos, indicam a existência de um sítio na selva fechada, contendo uma infra-estrutura tecnológica que inclui radares, antenas parabólicas, torres de emissão e de transmissão de sinais via satélites, câmaras, monitores, filtros solares, no que parece ser uma grande central de observação radioastronômica. Ao que se sabe, nenhum governo da Terra reivindicou, pelo menos até agora, a titularidade dessa central tecnológica. Ela emite para, e é receptora de sinais, da Estação Orbital Interdimensional.



SINTOMAS POLÍTICOS
DO
“REICH DOS MIL ANOS”

Carla desenvolve certa piedade pelos companheiros de rotina, por suas idiossincrasias, pela “esperteza” redundante da maioria de suas atitudes. Sabe que a habilidade maliciosa, os “jeitinhos”, não passam de frágeis defesas, de atos falhos que os ajudam a suportar os deveres e obrigações de uma vida acossada pela onipresença de vários níveis interinfluentes de necessidade. Em troca dessa rotina de responsabilidades, ganham um salário quase sem dinheiro. Vivem de fazer “mágicas” para sobreviver, em perene estado anímico de sobressalto.

O grupo gerencial da Atendimento Jurídico está entregue ao empenho do faturamento crescente. As prestações de serviço da empresa melhoram a qualidade de atendimento a clientes politicamente incorretos, mas com muito dinheiro para ganhar causas moralmente indefensáveis. Afinal, o mundo gira rápido, todos precisam acompanhar essa velocidade. Parte de seus advogados é paga para monitorar, nas votações do Congresso, deputados e senadores que investigam transferências de grandes quantias em dólar para o exterior.

Dependendo do prisioneiro, uma liminar custa um mínimo de duzentos mil, mas pode chegar a um milhão. “Eles” pagam funcionários aduaneiros e policiais federais para facilitar as rotas de tráfico de drogas, roubos de carros, contrabandos diversos, nos portos, aeroportos e fronteiras. As atividades da Atendimento Jurídico incluem membros da superestrutura dos três poderes. “Eles” garantem que o mal da disseminação das drogas e do crime fique impune, enquanto a diferença entre marginalidade homicida e autoridades, seja cada vez mais tênue.

Os gráficos da Atendimento Jurídico indicam lucros em constante crescimento, mas a realidade salarial mediana, permanece igual. Na reunião de hoje, cafezinho, biscoitinhos, chá e água são servidos. Uma certa excitação otimista se instala. Depois de duas horas de análises e pareceres, a pauta entra na fase da “camaradagem” aparente. Dalton Pitt, diretor-presidente, está em vias de encerrar as avaliações sobre os últimos itens.

Na reunião do semestre, Carla observa um executivo opinar sobre determinado fato político internacional. As opiniões dos membros com menor poder de decisão na hierarquia da empresa, tendem a confirmar a de seus superiores: uma maneira nem sempre eficaz de mostrar que estão sintonizados com idéias e decisões gerenciais.

Carla leu a manchete do caderno “política internacional” de um jornal diário de São Paulo. Nela, o candidato neofascista francês, num discurso de campanha, menciona os fatos bombásticos acontecidos na principal avenida de Paris, entre as 17 e às 20 horas. Os eventos apresentaram um resultado semelhante aos ocorridos na avenida Paulista.

A reportagem mencionava as frases: “Esta noite vocês fazem bem em jogar no fogo essas obscenidades do passado. Este é um ato poderoso, imenso e simbólico, que dirá ao mundo inteiro que o espírito velho está morto. Destas cinzas irá se erguer a fênix do espírito novo.”

Dia seguinte ela lê que a declaração do parlamentar francês motivou protestos em todo o mundo, provenientes das colônias judaicas. Alegaram, os judeus, que estas frases foram pronunciadas por Goebbels, em 10/05/1933, ao censurar o gosto pela leitura e incentivar a queima de vinte mil livros em praça pública, durante a vigência dos primórdios do “Reich dos Mil Anos”. O tal candidato associou aleatoriamente ambos os acontecimentos. Nas pesquisas de urnas, ele conta com nada menos de 35% dos votos. Ela conclui que o bombástico radicalismo político, cromagnon, do candidato a presidente, está a ganhar rapidamente fanáticos adeptos em todo o planeta.

Os analistas da pesquisa, ao tentarem compreender a natureza dos fenômenos de rua, se perguntam se toda essa energia frustrada, das pessoas submersas em rotinas sadomaquiavélicas, não está a encontrar uma maneira aleatória, inconsciente, de sair dos níveis psi mais recônditos, e manifestar-se via eventos coletivos inexplicáveis, que intimidam, atemorizam, e estão a acontecer nas grandes capitais do planeta.

Os ânimos andam por demais exaltados. As pessoas estão mais expostas, explodem a toda e àtoa, pelos mais insignificantes motivos. Ela não está nada confortável nesse ambiente. A convivência com a hierarquia da chefia está tensa. Não dá mais pra conciliar os interesses.

Carla precisa dizer ao pai, sócio menor da Atendimento Jurídico & Associados, que não mais vai permanecer no barco barroco, a pique, desse Titanic das transações financeiras internacionais ilícitas, a serviço de megaespeculadores globalizados, dos governos títeres do FMI.

A imprensa, influenciada pela dramatização do filme do dia do Canal 10, publicou denúncia contra seis instituições bancárias estrangeiras que obtiveram, em questões de horas, um lucro de mais de um bilhão de dólares, no esquema “Fiex”: Os seis bancos transferiram certa quantia em dólares de um para outro país, usando o Fundo de Investimento no Exterior, supostamente para a compra de títulos da dívida externa brasileira. Com relação à moeda nacional, em dez dias o dólar valorizou 24%. Os bancos não compraram os títulos, e o dinheiro deu meia-volta volver, retornando ao país muito mais valorizado.

O canal ghost mostrou, no filme do dia, que o presidente do Banco Central, raposa do mercado internacional, zelando pelos lucros do galinheiro macroeconômico local, socorreu com empréstimos em dólar três bancos privados, numa transação tipo amantes apaixonados do colarinho branco: vendeu-lhes dólar na cotação anterior à da valorização. Sete dias depois, as instituições bancárias estariam aptas a pagar à vista o empréstimo, tendo auferido lucros colossais em uma semana.

O filme do dia de ontem da tv fantasma focalizou como a política dos superprivilégios para poucos, e da esculhambação e avacalhação para o resto da população do país, transforma diariamente em subempregados e marginais, milhares e milhares de pessoas que estão se matando numa guerra civil não declarada, na qual a média de homicídios, por semana, chega a l11 nas metrópoles de São Paulo e Rio.

O vírus político nacional do momento, é um candidato do partido do “rei Mulatinho”. Os eleitores depositaram nele suas esperanças. Elas, as esperanças, não tardaram a se transformar em cinzas. O desgoverno do “rei Mulatinho” sucateou a educação das novas gerações, garantindo-lhes, via edição de medidas provisórias em benefício do ensino privado, uma juventude monitorada por idéias obsoletas, sem motivações culturais pertinentes, destinadas à criminalidade do colarinho branco e à prostituição (feminina e masculina). Uma geração destinada a fazer história a partir da administração do tráfico de entorpecentes, nos morros, periferias e condomínios nas cidades.

Seu desgoverno escancarou o país numa rede totalitária de alienação e impessoalidade, que paralisou as possibilidades de sobrevivência das pequenas empresas. O índice de desemprego desse desgoverno chegou a 20% da população ativa. As formas sociais de marginalidade cresceram tanto quanto, ou mais, que os juros da dívida externa, e a dívida dos Estados. Passou à história popular como “a vergonha de uma nação”, após privatizar, “doar”, quase que uma centena e meia de empresas ao capital privado, nacional e externo. Ficou conhecido também como o tutor do "Apagão".

O Canal 10, num enredo que envolve autoridades políticas e econômicas do grupo G-8, mostra como os países mais ricos do mundo planejaram o futuro da ordem econômica, denominada de “higienização étnica”. Na nova ordem, 75% da população planetária é considerada, teoricamente, lixo humano irreciclável. Na prática, isso já acontece há décadas.

Hoje, 7 de setembro de 2035, o FMI incluiu cláusulas de eliminação social em seus mais recentes acordos macroeconômicos na América Latina. A exterminação em massa, na nova ordem mundial, está praticamente avalizada pelo Vaticano. O Papa, em sua última encíclica reconheceu que Deus pode ser mesmo apenas uma ficção. Os mais modernos modelos de carros têm nomes inspirados em tanques militares de guerra. São sucessos de vendagem.

A indústria automotiva da terceira década do século XXI, reclica rapidamente todos os modelos anteriores, considerados obsoletos. Os novos modelos trazem inovações opcionais, tais como vidros à prova de bala e minimetralhadoras de teto, monitoradas por controle remoto, pelo motorista.

O governo federal oferece benefícios fiscais aos proprietários de veículos automotores, os que ajudarem a força armada a limpar a cidade: a partir de 10 pobres metralhados. Os proprietários dos veículos que promoverem esse genocídio estarão automaticamente escritos no programa oficial de benefícios fiscais. O vírus político do momento, restringiu chances de defesa social da saúde, criou a famigerada “lei da mordaça”, para proteger criminosos do colarinho branco da divulgação jornalística de seus crimes.

Os candidatos dos grandes partidos da tradição burguesa inauguraram, no começo do Terceiro Milênio, negociações com criminosos de facções de presidiários liderados pelo PCC, quando dos chamados "Dias de Guerra" em São Paulo. O candidato do "rei Mulatinho" um político que governou uma cidadezinha do interior paulista chamada Pindamonhangaba, candidatou-se a presidente com o aval das forças mais reacionárias e conservadoras do país.


A
EXPEDIÇÃO
NORTON

Na sala de visitas do apart hotel NewLorena, o americano e Rossi apresentam-se:

— Prazer em conhecê-lo, mr. Norton.

— Tudo bem sr. Rossi. O senhor vai mesmo fazer parte da expedição?

— Mr. Norton, por que esse interesse na Amazônia, esses túneis talvez não passem de folclore. E essas notícias sobre cidades perdidas...Estação retransmissora plurisseriada de tecnologia virtual... Especulações...
Com o sotaque carregado, Norton argumenta:

— Aventura, senhor Rossi, o que temos vale os riscos, não? Ir e voltar, conseguir ser primeiro, todos vão querer ouvir essa história. O senhor, jornalista, saber ser muito estimulante notícias novas.

— A situação de alto risco não fornece garantias de que vai haver retorno. Pessoas, expedições, não puderam prosseguir ou desapareceram. Estaremos sujeitos à mesma sorte?

— Amadores, senhor Rossi. Onde estão, com quem, por que não voltaram, tiveram escolha? Que aconteceu com essas pessoas? Estão presas, foram mortas? Não sei. Vamos descobrir?

— Não há segurança, quem garante...

— Montanhismo também é perigoso, acidentes acontecem, pessoas não voltam. Nem por isso é menos praticado. Ao contrário, os adeptos crescem em grande quantidade. A busca de aventura move as pessoas. Os verdadeiros motivos são talvez de foro íntimo, não é verdade? Sair da rotina já é uma motivação considerável.

Chegam dois estrangeiros identificados como os outros participantes da expedição. Apresentam-se como Hermann Breed e Bayle Vassari Castelar. Cumprimentam Rossi em portunhol. Após trocarem algumas palavras com Aníbal Norton, se despedem, mostrando-se apressados.

— Desculpe senhor Rossi, mas o português deles não é melhor que meus conhecimentos do tupiguarani.

— Mr. Norton, por que um jornalista e um fotógrafo brasileiros? Estaremos numa situação de alto risco, sujeitos à imprevisível sorte de muitas expedições que nos antecederam?

— Quando se escala uma montanha, quem sabe ao certo que acidentes podem acontecer, senhor Rossi. Boa parte de nossos esforços está entregue ao acaso. O senhor estava dizendo: “Não há garantias de nada...”

— O senhor pensa saber as respostas, mas os outros também tinham certeza de que tudo ia sair como planejaram, boa parte dessa expedições não voltaram para contar a história.

— Não há garantias de que teremos mais sucesso. Sempre há incertezas e riscos. Os contatos de seu jornal podem facilitar um pouco as coisas. Há muita burocracia no Xingu, os nativos não mais se contentam com paetês, miçangas e espelhinhos de bolso. Há rivalidades mortais entre as tribos. Temos de acreditar no melhor das possibilidades.

— Sei! O jornal participando as dificuldades ficam reduzidas. Muita burocracia pode ser evitada, o acesso ao Xingu facilitado.

— Está certo. Veja pelo lado positivo. Ao chegarmos aos subterrâneos não faltarão notícias sensacionais: seu jornal estará divulgando-as sozinho. Você poderá escrever um livro, vender direitos de publicação para outros países. Não tenho nada contra esse modelo de participação.

Rossi acredita que o americano não vai querer expor as verdadeiras motivações e objetivos da expedição. O mais que consegue dele são essas opiniões propositadamente juvenis. Sente que ele está escondendo muita coisa, que não está disposto a ser mais explícito em definir propósitos.
— Como o jornal entrou nessa expedição?

— Eu pesquisar banco de dados do jornal, um membro do Conselho estar de posse de um dossiê, um arquivo... Nome, nome dele... Jângal...
— “Arquivo Jângal”.

— Isso mesmo, esse Arquivo, não li, interessou membros do Conselho na expedição. Os interesses de seu jornal se harmonizaram com os da campanha. É isso. Precisa um nome para ela, o senhor vai sugerir?

Rossi percebe a habilidade do gringo em mudar de assunto. Talvez não saiba, nem queira saber: possivelmente, dezenas de casos de combustão humana espontânea, e outros eventos de grande estranheza e impacto na psique social, têm alguma espécie de conecção com os subterrâneos da Serra do Roncador. Seus motivos realmente devem ser outros. “Arquivo Jângal”... Murmura Rossi, “nada acontece por acaso”.

— Como não, responde, Expedição Norton, parece adequado?

— Ah, bom, sorri o gringo, acredito que todos estaremos de acordo. Aqui está o cronograma da Expedição ahn, Norton. Em uma semana, encontro o senhor e a fotógrafo no Hotel Manaus.

— As imunizações, como dizem? Ahn, vacinas, aqui neste endereço na Alameda Jaú. Nome do lugar, Cedipi, contra infecções viróticas, parasitárias, essas coisas. Para entrar no Xingu precisar disso. Imunizar contra mosquitos anofelinos transmissores da malária, micróbios, doenças infecciosas. O senhor sabe, vacina contra malária não existe. Nesse endereço o senhor vacinar contra difteria/tétano, febre amarela, hepatite A, hepatite B e febre tifóide. Precisamos prevenir, como dizem aqui, prevenir para não ter de remediar. É isso mesmo.

O americano pronunciou a palavra remediar como se ela fosse um adjetivo. Mostra uma familiaridade emocional com a fala popular. Despedem-se. Ao sair, Rossi está surpreso com a rapidez com que as coisas estão a acontecer. Repassou ao Conselho do jornal o “Arquivo Jângal”, eles souberam tirar proveito dele. Suas informações não mais estão restritas a ele, à filha Jussara, a Agassiz e à família de Voltaire.

Apesar de jornalista com muito tempo de “basquete” como acreditar que uma reportagem sobre subterrâneos na selva amazônica, em tão curto espaço de tempo, poderia fazer parte da pauta investigativa do jornal ? Imaginou que tal aventura fosse preterida em nome de outras realizações jornalísticas e políticas, todas essas de caráter jornalístico mais urgente. Por vezes não há como negar, a realidade surpreende mais que a ficção. Surge de repente, assusta, como a ameaça do bote de um jaguar. Agora, e somente agora, novembro de 2035, acredita que a Expedição Norton vai realmente acontecer. Ele está dentro desse barco trôpego.


“ARTIGO DO DIA”:
OS NICHOS DA “FÚRIA”

Os leitores, ávidos por uma orientação coerente, a partir da qual possam interpretar os acontecimentos cinematográficos do canal 10, vertem as mais absurdas teorias. Para uma realidade efervescente de surrealidade, nada mais convincente que explicações à realismo fantástico.

As crianças do prédio de Sabrina, comentam entre si no pátio de recreio, que as histórias dos longa-metragens do canal 10, são como assistir no dia seguinte, aos vários programas policiais dos outros canais, de uma vez.

A impressão geral é a de que a Terceira Guerra Mundial, o “Reich dos Mil Anos”, está desdobrando-se nos eventos cinematográficos da tvvirtual, sintoma de outras perturbações não menos impressionantes, presentes no ambiente interno dos edifícios de apartamentos, assim como nas ruas e avenidas de São Paulo. Há uma guerra deflagrada, não declarada, decisiva, entre forças inconscientes que disputam a alma coletiva das pessoas, do mundo globalizado.

Nos nichos do medo urbano, as variantes coloridas do H3V, as mutações em série de átomos de sais e fungos, proliferam em seis variedades epidérmicas de inflamação sebácea, através de pelos e furúnculos a cores, que estigmatizam as pessoas vítimas de contaminação.

Os filmes do canal 10, dizem alguns jornalistas, em crônicas na imprensa escrita, são uma mostra desromanceada de todas as ameaças rotineiras que acontecem com as pessoas nas ruas, nos lares, nos estádios, nas casas de diversões noturnas, nos parques, nos ônibus urbanos e interestaduais. Até dentro de seus edifícios, construídos de modo a superestimar o fator segurança, as pessoas sentem-se ameaçadas.

Os filmes do canal 10 mostram as formas de criminalidade selvagem, o ódio indescritível que prolifera entre seres que não mais podem ser considerados humanos, devido às formas de agressão e criminalidade sem precedentes que agenciam. É como se uma grande onda luciferina houvesse se apoderado de todas as instâncias da sobrevivência metropolitana.

As crianças zunem baixinho, como se não quisessem ser ouvidos, sonegando seus saberes aos adultos. Esses, de orelha em pé, buscam ouvir furtivamente, por detrás das portas, disfarçam motivos para uma proximidade aos grupos de crianças que trocam palavras.

Pais, parentes, vizinhos, fazem tentativas de subornar a criançada com promessas de presentes e viagens que parecem não surtir efeito: os leros das crianças ficam, não raramente, entre elas mesmas. Como se uma linguagem cifrada se tivesse tornado característica de trocas de impressões verbalizadas sobre os acontecimentos inusitados da tv “full-time”.

Quando se sentem pressionadas a falar, em vista dos apelos feitos na intimidade dos lares, a gurizada costuma não ceder ao sentimentalismo das pressões, e respondem:

— Não sei nada, bobagem, sou só uma criança. Apenas uma criança, criança não sabe nada. Adulto é que sabe das coisas.

Em vista de muitas respostas semelhantes a esta, os pais desistem de insistir, ainda que comentem em foro íntimo: Elas sabem o que realmente está acontecendo. São agentes do que está acontecendo.

Normalmente, é do pátio das escolas que saem as dicas na nova linguagem das conversas infantis. Elas invadem as conversas adultas. O inusitado auê do canal 10 toma conta dos tititis e fofocas nos bares e em outros ambientes coletivos das cidades.

Os técnicos em eletrônica não têm uma explicação lógica para o metafenômeno de que, numa residência, para se ter acesso a outros programas e canais, inclusive os da tv a cabo, é preciso que haja um segundo aparelho sintonizado nos very larges movies do canal 10.

As indústrias de tvs aumentaram abusivamente as vendas. Novos modelos são lançados com um dispositivo que permite a ausência de um segundo aparelho de tvvisão, por trazer acoplado, uma segunda opção, junto ao monitor maior dos novos modelos. A propaganda destas novas ofertas chama a atenção do consumidor para a vantagem inquestionável, que lhes permite sintonizar, simultaneamente, o canal virtual e os normais, num mesmo monitor com duas telas e imagens paralelas, tridimensionais, sem interferências entre si.

Os novos modelos de aparelhos de tv são a grande atração. Pessoas interessadas em tvvirtual, e pessoas que preferem assistir aos programas dos canais normais, podem conviver simultaneamente com este aparelho, na mesma sala de jantar. Os fones de ouvido, com regulagem via controle remoto, permitem a concentração da observação visual e auditiva, em uma das telinhas do monitor, conforme a preferência do tvespectador. As promoções de venda desse modelo são um sucesso. É a indústria se adaptando rápido às novas necessidades de consumo.

A economia dos grandes conglomerados tvvisivos está em baixa. Os executivos e vendedores do varejão, comemoram. A tvvirtual aumentou em muito a quantidade de tvespectadores que querem adquirir os novos modelos. Os membros do Conselho de Segurança da ONU estão em frequentes reuniões de cúpula: acreditam que a velha ordem mundial globalizada está preste a ruir.

O medo de sair às ruas não é suficiente para impedir que as noites e as madrugadas estejam cada vez mais povoadas nos fins de semana. A curiosidade, o interesse das pessoas em especular, indagar, participar das excentricidades que estão a acontecer confunde até os mais perspicazes observadores. A fome de participação é muitíssima mais intensa que os temores pessoais motivados pela síndrome “infectocontagiosa” do pânico.

O filme “full-time” do dia conta a história de uma criança, filho de mãe solteira, cobra criada na grande cidade de São Paulo. Cresceu menino de rua, explorado por policiais e traficantes de drogas, desde o tempo de hóspede da Febem. Nela, fez os cursos básicos de tráfico, revolta e violência. Com o tempo, mestrou-se nas escolas de marginalidade nas casas carcerárias das delegacias de polícia. Graduou-se com honra ao mérito PhD na prisão do Carandyroon. Exemplo de promiscuidade em presídio.

Consegue escapar com vida de três atentados organizados por grupos de policiais que tentam monitorar sua existência sobressaltada. Querem apagar a chama bruxuleante de sua subvida, para que não possa testemunhar, em júri, os crimes hediondos presenciados por ele, perpetrados por oficiais militares que tiravam proveito de grupos de garotos e adolescentes explorados pelo tráfico e pela prostituição.

Depois do último atentado frustrado, ficou difícil pegá-lo de jeito. Cobra criada no submundo, a ficha policial por crimes de homicídio culposo, premeditado, contra civis e membros da força pública, seria suficiente para condená-lo a mais de mil anos de prisão. Especializou-se em disfarces, tanto pode parecer uma prostituta atraente num dos “hot-points” do centro da cidade ou dos Jardins, como um jovem michê, solicitado por executivos numa sauna da Augusta, do Jardim América ou da Vila Mariana.

Pós-graduado em ultraviolência, drogas pesadas e promiscuidade sexual, passa a frequentar os inferninhos gays do Jardim América e adjacências. Descobre estar infectado pela mais letal mutação do vírus H3V, o PUF. Acentua a morbidez e a paixão pelo desvio sexual, no convívio com alegres rapazes emergentes, com aviões e aviãozinhos descolados, nos cantões badalados da noite paulista e paulistana.

Conhecido como “A Fera”, seus surtos de agressividade compulsiva são temidos por policiais da Ronda, da Rota, da Garra, e de outros grupos de policiamento ostensivo, como uma espécie muito mais perigosa e mortal, que o folclórico marginal do submundo carioca das décadas de 40/50 do século passado, conhecido por madame Satã.

O QI da “Fera”, 162, explica, em parte, as dificuldades policiais para, através de armações e armadilhas, as mais dissimuladas e traiçoeiras, tentar atraí-lo para uma arapuca onde pudesse ser fuzilado, queimado e desovado.

Ao conseguir escapar de cada trama armada pelo ódio cada vez mais exacerbado das forças da repressão, “A Fera”, encolerizada, promove a execução fria e implacável dos envolvidos direta e indiretamente nas tentativas de exterminá-lo: dos cabos, soldados e oficiais militares, aos informantes pés de chinelo das polícias. Para isso, usa as armas da pressão, tortura, agressão, interrogatório sádico dos envolvidos que, não raras vezes, termina na morte dos mesmos. “A Fúria” circula livremente em todos os níveis do submundo. Todos querem vê-lo por trás, mas, em sua presença, agem com afetada condescendência.

Conhecedor dos meandros obscuros e tortuosos da mente coletiva dos perseguidores, familiarizado com a cotidiana crueldade, a violência, a conduta irresponsável e doentia de alguns maníacos intoxicados pela fome de poder da hierarquia do tráfico, “A Fúria” reage de maneira destrutiva e hostil às tentativas frustradas de vestir seus restos mortais num paletó de madeira. “A Fúria” conhece de perto o uso e o abuso da exaltação encolerizada da autoridade policial.

Segundo a opinião de alguns resenhistas da atualidade, com base numa entrevista a uma repórter de jornal de bairro, publicada posteriormente em editoriais nos principais jornais do eixo São Paulo-Rio, este very large movie do canal 10 de hoje, denuncia, entrelinhas, o marginal conhecido como a Fúria. A Fúria denunciou as conecções de interesse entre os massacres de presos no interior de algumas penitenciárias, definindo-as como queima de arquivo da corrente estabelecida entre autoridades do poder público e algumas personagens da polícia política, graduadas do submundo no crime.

A sociedade espera respostas. Respostas dos pátios dos colégios infantis e infanto-juvenis. A dificuldade está em que as crianças e jovens (os inúteens), se esquivam de contatos verbais com pessoas que não sejam membros de suas turmas. Comunicam-se entre si como se habitantes de colmeias. Pronunciam tão rápidas as palavras, que ninguém, exceto elas, decifram a sonoridade de seus zumbidos.

Psicólogos e parapsicólogos, em programas de debates tvvisivos, expõem teorias sobre essa nova forma de intercomunicação: uma espécie, segundo opiniões doutoradas, de xenofonia: perturbação na voz com tonalidade estranha, ao expressar-se numa pronúncia estrangeira. Outros defendem que essa fala, uma modalidade de xenoglossia, pode ser de influência e intervenção alienígena. As comunicações verbais, agudas e sibilantes, são intraduzíveis, exceto supõem, para as crianças e certos grupos de adolescentes.

De alguma forma, ninguém sabe precisar qual desses fenômenos soma mais intensamente no influenciar às demais sutilezas de uma realidade cada vez mais intensamente surreal.

Os adultos sentem-se premiados quando surpreendem grupos de garotas e garotos, entre oito e dezoito anos, na faixa dos inúteens, trocando idéias como antigamente, falando numa velocidade inteligível, de modo que suas palavras possam ser ouvidas e compreendidas, ainda que, por vezes, o sentido lógico delas não seja imediatamente assimilado.

Quando isso acontece, as pessoas adultas costumam gravar e vender as fitas para os meios de comunicação, interessados em divulgar qualquer novidade proveniente das conversas infanto/juvenis inteligíveis, muitas das quais, a acreditar na opinião de alguns semiólogos, só podem ser assimiladas através de certa velocidade mínima de pensamento, muito mais intensa que a normal. A partir de tal intensidade e rapidez, os sentidos e significações lógicas são por eles percebidos e comunicados entre si. Essa manha os adultos ignoram.

O filme do momento da tvvirtual mostra flagrantes de crianças falando à antiga. Elas ficam surpresas e acabrunhadas, como se um penoso sentimento de vexatória humilhação, provocasse uma reação extremada de indignidade entre seus pares. Passam a impressão de que, quando não se comunicam por meio desse novo padrão de “velocidade de evasão verbal”, na definição de alguns educadores, não conseguem escapar da “prisão gravitacional do campo psi coletivo dos adultos”.



ABISMO INTRANSPONÍVEL
ENTRE DUAS GERAÇÕES

De volta ao apartamento, Hélio comenta a situação não muito favorável, de sócio minoritário. Fala que deve ter uma atitude profissional conforme os interesses da empresa. Sugere que Carla deveria ter mostrado mais afinidade com as idéias de Dalton Pittt e Fred Debret, diretores, presidente e vice, da firma.

— Suas opiniões podem causar estrago em meu poder de barganha na firma. Não é conveniente manter uma atitude polêmica com as idéias de Debret. Ele detém a maior parte das ações, tem poder administrativo para pressionar no sentido de desvalorizar e comprar minha participação, em baixa. E desfalcar minha aposentadoria de certas anomalias jurídicas pouco éticas, mas que permitem duplicar o valor dela.

— Dá um tempo, pai, você está sugerindo que preciso vender minha alma para esses reacionários luciferinos, em troca de favores e da aceitação de uma ideologia à Bobsauro e fóssil Debret? As causas que esses caras defendem, eles se especializaram nisso, são eticamente indefensáveis, você sabe.

— Ética, Carla, infelizmente, nunca dá camisa a ninguém, enquanto o sistema que gera lucros empresariais for capitalista. E selvagem. O planeta está intranquilo, prenúncio de uma mudança que está a acontecer. Até essa mudança acontecer totalmente, se acontecer, esquece a Ética.

— Não vou atrapalhar a estratégia de manter vivo seus interesses na empresa. Sem crise, três meses é tempo suficiente para preparar a Adélia. Ela vai me substituir. O mercado está escasso de ofertas, mas sei que posso conseguir outro emprego. Há algum tempo quero fazer isso. A ocasião é esta. Esquecer a Ética, este é o conselho que pais e educadores dão aos filhos. Talvez por isto as crianças encontraram um meio paralelo de linguagem, ao qual não têm acesso os adultos.

— Carla, você saindo da firma minha posição fica desfalcada.

— Eu ficando lá, pior. Por favor, desta decisão não há volta. Gostarei, se puder contar com seu apoio. Adélia tem tudo para me substituir, ela deseja isso mais que tudo, o tempo da mucama de franjinha, dizendo amém ao feitor da Casa Grande, acabou. Pelo menos para mim. Sua aposentadoria do colarinho branco estará mais garantida do que comigo por lá.

Hélio sabe que a competência de Carla nos serviços de informatização da burocracia da empresa, senso de dever, disciplina, fizeram dela uma funcionária quase indispensável. Sabe também: quando Carla decide, está decidido. Não vai argumentar chamando-a ao que considera bom senso, e às advertências que mais soariam como pedidos de submissão. As razões da filha penetram na mente de Hélio em busca de um nicho propício, ao qual possam posicionar-se sem causar danos aos trâmites de seus interesses pessoais na empresa.

Após o jantar, sente-se sobremodo fatigado. No sofá da sala, tenta concentrar-se nas imagens do filme do Canal 10. Cansado, o cochilar rápido substitui-se por pequenos períodos intermitentes de sono. Até que dormita longamente. A consciência cede lugar ao relaxamento da respiração, dos sentidos, dos músculos. Deseja manter-se desperto, mas a sensação de estar resvalando para dentro de um abismo, de aprofundar-se nele, é mais forte.

Ao dormir, Hélio sonha com a figura 22 do tarô egípcio regido por Vênus. Ela simboliza o grande caos que antecede as grandes mudanças. Nas costas do crocodilo uma jovem atravessa um rio. O réptil sagrado e temido simboliza Seth. Um eclipse lunar no alto da carta indica perigo, mas o altruísmo da adolescente parece garantir a sorte na arriscada jornada.

Não pode estar em seu juízo certo, balbucia Hélio, do contrário, como poderia permitir-se conduzir por esse réptil de dentes alveolados, de enorme força e palato, capaz de devorá-la num momento de fúria, ou afogá-la, conduzindo-a para o leito lodoso do rio.

Apesar das apreensões, ela chega ao outro lado do rio onde um unicórnio a espera. Sabe, não se lembra de onde vem esta certeza, que unicórnio não é feminino nem masculino, que a maldade luciferina fez com que essa espécie fosse extinta. E quando essa espécie é extinta num planeta, significa que a inocência de seus habitantes também se consumiu, que o futuro deles está também a extinguir-se.

Hélio admira-se de que todas essas coisas estejam tão claras. Claras no sonho, na vida real, sempre haveria de manifestar incondicional discordância a qualquer situação de ameaça à integridade física da filha.

O amor de Hélio por Carla é insuficiente para que encontre coragem de seguir para o outro lado do rio. Ela está a chamá-lo, sugerindo que vá até ao lugar em que se encontra, pela insistência dos gestos, insinua que não há perigo, que confie nela.

— Seja mais instintivo e menos submisso a seus medos. Confie em mim. Essa é a ponte. Venha até aqui.

Hélio reluta, sente-se paralisado de medo só em pensar em aproximar-se dos crocodilos que se encontram na margem, talvez à espera de um próximo passageiro.

Por um breve momento imagina poder imitar a filha, ir de carona no dorso do réptil até ela. Não, isso só é possível de acontecer porque está sonhando. Mesmo num sonho, aproximar-se desse animal escamífero, de instintos cruéis, impossível para ele.

Como a filha conseguiu? Mistério. Coisas assim só acontecem em sonhos. Como na fábula, surpreende-se na carapaça de um escorpião grande. Está desconfortável na pele do escorpião zodiacal, por coincidência, nasceu nesse signo. Reduzido da condição de homem, sente a cauda em aguilhão balançar a peçonha em direção ao sapo. Ao chegar perto, pede a ele que o conduza ao outro lado, onde está a filha. Ela lhe parece agora muito, muito mais distante. De alguma forma essa distância tornou-se intransponível.

Hélio tem pressa de convencer o anfíbio. Cada segundo reduz as possibilidades de estar outra vez em companhia da filha. O sapo alega:

—Certa vez, alguém de minha espécie deu carona a um escorpião, foi picado na travessia, ambos morreram. Escorpiões não conseguem evitar isso, é uma compulsão instintiva, diz o sapo, e sugere:

— Porque você não sobe nas costa de um destes crocodilos que estão dormindo na praia? Com sorte, muita sorte, poderá chegar à outra margem.

Hélio/escorpião após considerar a possibilidade, hesita: o medo, maldito medo. E se o crocodilo no meio da travessia mergulhar? Escorpiões podem respirar debaixo d`água? Conseguem nadar longas distâncias? Esse rio parece um mar, imenso, intransponível. Sobe num coqueiro e mira o outro lado, já sem saber ao certo porque está fazendo isso.

— Por que estou a olhar nessa direção? Que bobagem, que perda de tempo. Minha visão não vai tão longe. Que estou fazendo olhando pra toda essa água?

Ao despertar, Hélio lembra-se vagamente do sonho. Com a passagem do dia, esquece por completo as imagens oníricas. Ora, divaga, foi apenas um sonho assustador. No escritório olha para a filha. Carla parece estar tão longe, distante o suficiente para não valer o esforço de tentar alcançá-la. É uma sensação esquisita. Afastando-se dela, sente uma grande onda de nostalgia a percorrer as células de todo o corpo, a circulação do sangue. De coração aflito, pondera: Queria apenas que ela almoçasse comigo.


A EXPEDIÇÃO
PÁRA NO XINGU


Os membros da Expedição Norton seguem de avião para Cuiabá, capital do Estado do Mato Grosso, onde há as reservas no hotel. O americano comunica a Rossi e à fotógrafa Adriane Tauil, que a autorização da Funai para entrada e permanência no Parque do Xingu, chegou via fax, de Brasília. Na capital do Mato Grosso, Norton é notificado que o Jipe modelo Xavante XXI*35, a caçamba e o barco Marajó, de 19 pés, casco de alumínio, para ser atrelado sobre o teto do carro, chegaram, transportados de São Paulo.

Dia seguinte, seguem em direção a Canarana pela BR-158 até o rio Xingu. No outro dia acampam no Parque Chapada dos Guimarães, próximo à sede da reserva das quinze aldeias habitadas por 3600 índios.

Nove e trinta, após banho e café, a primeira etapa na selva da Expedição Norton inicia-se, afinal. Viagem de dia, acampamento ao entardecer. Se estiverem próximos à margem de um rio, alguém vai pescar, outro acender fogueira, outro mais, preparar o rancho. Não querem usar as provisões enlatadas, exceto enquanto complemento alimentar.

Rossi e Castelar armam as barracas. O acampamento acontece na Cidade de Pedra no alto da Chapada, à altitude de 800 metros, local onde podem ser observadas uma série de colunas rochosas alinhadas como se fossem dólmens druídicos, brotando do nada da vegetação rasteira, em direção às nuvens. Nada de hotel.

Cento e oitenta minutos depois Adriane documenta fotograficamente as mechas d`água, prateadas, da cachoeira Véu de Noiva, descendo do alto de seus oitenta e seis metros. Para seu olhar perplexo, é como se a velha natureza, uma fantástica Rapunzel, tão antiga como a beleza de suas tranças de cabelos brancos, estivesse a dizer que a natural beatitude é eterna, não precisa negar antiguidade, nem ir ao cabeleireiro camuflar as cãs.

A paisagem abre-se aos olhos admirados de Adriane: do alto do platô até o vale, são 1020 metros, um dos mais belos pontos turísticos do Mato Grosso, e do planeta. Na Pedra do Jacaré, há conchas petrificadas nas paredes, provenientes de fósseis com quinze milhões de anos, quando o vale “jazzia” submerso no grande oceano miocênico da era terciária.

A marcha da Expedição Norton apenas começa. Aníbal consulta um mapa e um medidor de coordenadas vias satélite, Global Positioning System (GPS), uma bússola ultrasofisticada que capta informações de satélites, e fornece coordenadas exatas de latitude e longitude.

A expedição segue em direção a Paranatinga, situada na reserva dos índios bacaeris. Ao entardecer do dia seguinte, através de trecho asfaltado, passam pela cidade de Primavera do Leste. Mais três horas de viagem, comendo poeira sobre uma estrada de terra, chegam à uma das margens do rio Culuene. Um acaso fortuito proporciona atravessá-lo numa balsa. O porto estava fechado.

A cidade de Paranatinga, a próxima parada da picape Xavante. A pequena carreta coberta com lona conduz as mochilas com munições e instrumentos necessários aos quinze dias programados para a duração da expedição em território Xingu. Neste momento seguem em direção ao Posto Simão Lopes, a quatrocentos e cinquenta quilômetros da Chapada.

Encontram-se na área das gigantescas serras cercadas pelo Paredão Grande, imensas construções naturais de pedras vermelhas e lisas, que, por vezes, atingem trezentos e cinquenta metros de altitude. Delas emana uma aura e uma beleza agressiva, ameaçadora, elementar, primitiva e mística.

Chegam em Paranatinga de madrugada. No centro da cidade, na rua São Francisco Xavier, assinam o livro de hóspedes do Hotel Havaí. A influência do jornal chegou até a esses confins, e os tinha precedido. O gerente do hotel conseguiu o melhor guia da região. Ele estava pacientemente à espera: o índio xamã Kapogi.

Nove horas da manhã, “pé na estrada da Expedição”. Apesar do cedo da hora, parece anoitecer. Faróis acesos seguem por um caminho rústico, pouco mais que uma trilha primitiva selva adentro. Nada de placas indicativas.

A orientação de Kapogi permite que os membros da Expedição Norton não se percam no emaranhado de outras trilhas, que por vezes, nem trilhas eram, uma vez tomadas pela vegetação rasteira e pelo mato mais alto.

Hermann, Vassari e Norton tinham confiança na bússola GPS, sintonizada numa rede com centenas de satélites em órbitas baixas da Teledesic Network, uma supermultinacional, com maioria das ações preferenciais em nome da Microsoft e da Boeing.

Casais de raposas pretas, vermelhas e malhadas, saltam, de um para outro lado da estrada. Pouco antes de meia-noite, a Expedição chega a Canarana, um naco de civilização com 12 mil habitantes, no fim do mundo da selva adentro. Com GPS, sem Kapogi, não haveria como chegar tão depressa.

Arrancham-se numa pensão. Ao despertar às oito horas, são informados: estão impedidos de seguir. Segundo Kapogi:

— Acabou Expedição: a papelada dos burocratas de Brasília não vale nada. Aqui, os índios não permitem a entrada no Parque, mesmo sabendo “exatamente” o que a Expedição Norton vai fazer.

Rossi anota no diário: “Maior parte dos caciques proíbem nossa presença no Xingu, a saída seria mudar o roteiro da expedição. Teríamos, talvez, de seguir dois mil quilômetros de carro, sem descer o rio. Norton tenta resolver o impasse telefonando para o índio Yuruquá, em Brasília, funcionário da Funai responsável pelo Xingu, diretor geral do Parque.”

— Não pode ser assim, responde Yuruquá. Uma autorização dessa leva muitos dias, todas as tribos têm de ser consultadas.

— Sr. Yuruquá, argumenta Norton, esta é uma expedição científica, viemos estudar espécimes da flora e da fauna amazônica, temos um trabalho a fazer dentro de um prazo. Por favor, encontre uma maneira de nos ajudar a seguir, não temos propósitos comerciais. A verdadeira natureza dessa expedição nunca nenhum de vocês vai saber.

— Mas os caciques sempre têm, senhor Norton, propósitos comerciais. Reuni-los pode levar tempo. O senhor aluga um avião, manda buscar os mais distantes para uma reunião no Posto Leonardo. Vou falar com Aritana para fazer sair a permissão de entrada e a autorização para as pesquisas nas terras Kalapalo, mas não posso garantir nada.

— Precisamos da autorização amanhã, nossos recursos são limitados. Como falar com Aritana e resolver esse impasse o mais rápido possível? Temos um cronograma a cumprir.

— Aritana lidera os outros caciques do médio Xingu. O que o senhor conseguir com ele, vai estar valendo para todos. Ele fala com Lokaraja pelo rádio, e com o cacique Afucaran, líder dos kuicuros. Reúnem-se para decidir logo a descida pelo rio, passando pelas aldeias.

Para simplificar: os novos papéis da Funai e a aprovação dos índios, só poderiam ser conseguidos com uma grana preta (verde), desembolsada em rápido prazo. No Xingu, a Funai e os índios são duas coisas que, por vezes, não se entendem, com interesses supostamente divergentes, apesar desses interesses serem mediados por índios funcionários do governo federal.

Agora que a coisa está ficando interessante, eles não podem prosseguir. Rossi sabe que Norton logo encontrará uma saída para o impasse. Não veio de tão longe para ficar no meio do caminho.



RASTREANDO
EXTRATERRENOS


— Vim de São Paulo até aqui para morrer na praia? Não faz sentido. Rossi pronuncia a frase como se pensando em voz alta. Sentada à sua frente numa mesinha, copo de cerveja à boca, na sala do hotel, Adriane acompanha o raciocínio do jornalista:

— Os gringos vieram de mais longe, com certeza têm como resolver o impasse.

— Grana. Índio agora quer grana. Índio não quer mais apito e colares de vidro.

— Sem dólar as portas do Xingu vão estar fechadas. Norton deve saber disso. Prevê tudo.

— Aqui para nosso gasto, o gringo é cheio das surpresas, foi adido da embaixada americana em países do Oriente Médio. Ex-traficante de armas. É judeu e possivelmente membro do Mossad.

— Isso quer dizer “time is money”. As verdinhas vão saltar do baú, pode crer, índio quer verdinha se não der não vai haver Expedição Norton.

— Problema mesmo é saber o que está por trás do interesse deles nos subterrâneos da Serra do Roncador. Aníbal é muito determinado para ser apenas um aventureiro em busca de emoções tropicais. Nesse mato tem coelho.

— Certamente não está em busca do tesouro dos Incas.

— E essa agora?

— Diz a lenda que quando os invasores espanhóis estavam prestes a saquear o Império Inca, 1100 lhamas, carregados de ouro, dirigiram-se para as entradas desses túneis na Amazônia. Os fugitivos da sanha criminosa do colonizador espanhol, os que não acreditavam serem eles os deuses de suas profecias, picaram a mula em direção a uma das misteriosas entradas dos supostos túneis.

— Os sacerdotes incas mantinham contatos com o povo subterrâneo dos “Muito Antigos” e foram por ele aceitos na fuga desesperada do sanguinário Cortez e sequazes.

— Alguém disse não existir acaso, toda a coincidência é significativa. Fugir do colonizador implacável, dos caninos ávidos por sangue e ouro, safar-se para um lugar realmente inatingível, que não estivesse na cartografia de seus mapas muito atualizados para a época.

Adriane nota o interesse de Rossi, fica mais tranquila por sabê-lo ter conhecimentos desses fatos. Isso explica, em parte, ter aceitado participar dessa expedição. Quais seriam seus outros interesses? Ela prossegue:

— Em 1963 foi descoberto um cemitério de corpos embalsamados, remanescentes de uma civilização muito mais antiga do que a incaica, que habitava as encostas orientais dos Andes na cidade de Gran Pajaten, a 2400 metros de altitude. Rossi é todo ouvido.

— Parte do mármore da necrópole em ruínas, depois de descoberto em meio ao emaranhado quase impenetrável da árdua floresta peruana foi retirado dos mausoléus.

Dentro dos sepulcros foram encontradas entradas que conduziam às câmaras subterrâneas, algumas inatingíveis, à grande profundidade.

— Os índios da aldeia de camponeses de Pataz, situada numa região próxima, servem de guia até as ruínas de Pajaten, com dezoito imponentes edificações, paredes cobertas de representações figurativas de homens e animais muito primitivos, e de uma estranha vegetação, classificada pelos estudiosos da exobiologia como sendo de natureza extraterrena.

— Essa necrópole, prossegue Rossi, para surpresa dela, torna obsoletos todos os conceitos da arqueologia e da história clássica. Segundo a doutora Jane Wheele, assessora do doutor Thomas Lennon, do século passado, “há cemitérios intactos de um povo desconhecido e sem nome, localizados em locais quase inacessíveis”. Todos a grande altitude.

— Você sabe.

— Sim, também pesquiso.

— Arqueólogos, etnólogos, e outros homens de ciência, só tiveram conhecimento dela em 1985. Pelos despojos da necrópole, fica evidente que a anatomia dessa raça não é humana. A coisa parece ficção de um episódio da série Arquivo 3X.

— Mas não é, acredite.

A convicção de Rossi, seus conhecimentos dessa realidade pouco divulgada, soa aos ouvidos atentos de Adriane, como mais uma pista do porquê ele está aqui. Rossi disserta conhecimentos sobre este sítio inexplorado, que ela supunha, à pouco, apenas seus, dentre os membros da Expedição.

— A Colorado University, utiliza serviços de pesquisa especial da NASA para rastear a região, com dados telemetrados por satélites. O contrato de exclusividade entre a universidade e o governo peruano foi firmado em meados da década de sessenta, do século passado.

— Certo, você está mesmo por dentro, ela confirma, enquanto Rossi mostra certa erudição sobre esses fatos:

— Etnólogos, estudiosos de formas de vida de alta inteligência, garantem que os despojos não são de trogloditas, elos perdidos, mas de sobreviventes de uma raça alienígena, com uma anatomia diferente da humana.

— Moravam nas muitas centenas de imensas cavernas abobadadas, escuras e frias, mais de acordo, talvez, com seu habitat original. Não se sabe ao certo como vieram parar na antiga e periférica Terra. Talvez atraídos por sinais de acolhida, supostamente provenientes da civilização lemuriana. Ao chegarem aqui, construíram em locais muito altos, reproduções do clima das moradas originais.

Rossi e Tauil continuam a especular:

— Você acredita que os gringos armaram esta expedição por interesses científicos, ou pelo ouro dos incas? Vai saber?, ela mesma responde. Talvez ligações haja entre o vigente “Reich dos Mil Anos”, e os lêmures que habitam o subway amazônico.

— A teoria Done: o “Reich dos Mil Anos” estruturou-se pra valer após a suposta vitória dos Aliados.

— Acredite, as motivações deles podem ser totalmente inusitadas, diferentes destas que você imagina, até mesmo... Vingança.

— Punição, castigo? Contra quem? Você quer dizer o que com isso?

A conversa pára com a chegança de Aníbal. O gringo aproximando-se garante:

— Amanhã os índios vão se reunir numa encenação de assembléia deliberativa. Os caciques e chefes da região, sob a liderança de Aritana vão decidir “democraticamente”, a entrada da expedição em área restrita do Xingu. A nova autorização de Brasília deve chegar até as 14 horas. Foi preciso uma “baba”, mas os arranjos já foram feitos. Adriane e Rossi sorriem, cúmplices.

Ao meio-dia nublado, dois dias depois de chegarem a Canarana, a Expedição começa a descer o rio Xingu no barco. As próximas seis horas são de navegação, mato, jacarés e pássaros de tipos e cores as mais diversas. A beleza natural é simplesmente luxuriante.

No Xingu, os índios não cultivam a terra nem para produzir bens de consumo. A cultura de subsistência exclui a carne vermelha. Alimentam-se de peixes, beijus de mandioca, e de alguma caça, tipo capivaras e antas: há grande quantidade delas, mas seu consumo é resumido.

Norton teve de sacar mais de trinta mil dólares, entre propinas e o pagamento do aluguel do helicóptero, para trazer e levar alguns líderes para a “assembléia” que deliberou em favor da Expedição. Desta forma consegue agilizar os trâmites burocráticos da Funai, fazendo com que corressem em ritmo de maratona. Maior parte do “money” foi distribuído entre os líderes e caciques. Nem tudo foi vitória deles, o gringo marcou um tento nas negociações.

Normalmente os índios não permitem a entrada de ninguém no Xingu sem acompanhamento. Nas três últimas décadas, não se conhece exceção para essa regra. Norton, alegando razões de privacidade do suposto grupo de pesquisas sobre zoobiologia e zoogeopoligrafia, só liberou o “cacau”, após os aparentemente inflexíveis caciques, concordarem em que a “expedição científica”, não seria “monitorada” por nenhum grupo de índios, a partir do porto da aldeia dos kuicuros para onde se dirigem agora.

No trajeto passam pelo povoado kalapalo, o povo mais feiticeiro do Xingu. Numa das margens, dezenas de índios acenam com a mão para que parem. Os membros da Norton acenam de volta, agitando com insistência a ponta dos dedos da mão direita sobre os mostradores dos relógios nos braços, querendo dizer não ser possível parar devido a escassez de tempo.

Rossi volta a escrever no diário: “A rivalidade entre kalapalos e kuicuros, costuma gerar vários incidentes, alguns graves. Torcemos para que o fato de não termos parado não dê origem a hostilidades posteriores. Isso porque, os kuicuros, odiados pelos kalapalos, eram nossos cicerones nesse momento.”

Ao anoitecer ancoram no porto da aldeia kuicuro. Dezenas de jovens usam walkman, os cabelos cortados e vestidos à moda dos brancos. Acima deles uma meia centena de bicicletas, algumas motos incrementadas, estacionadas, correspondem à quantidade de índios que estavam no cais, embaixo. Estão à espera da oportunidade de ganhar presentes: escovas de dentes, relógios do Paraguai, bolas, balinhas, bombons de chocolate, fósforos, apitos, cigarros, isqueiros, pacotes de aspirina efervescente, biscoitos água e sal e doces.

A proibição do índio Angatá de violar os pacotes não foi respeitada. Os jovens abriram as caixas e distribuíram o conteúdo. Mais tarde acampam na outra margem do rio. Não querem que curiosos mexam nas bagagens, equipamentos, câmeras, gravador. Sabe-se que índios não respeitam brancos. No Parque, fazem e acontecem, estão protegidos pela impunidade, mas nunca se teve notícia de terem incinerado, ao vivo, algum espécime de homem branco.

Pela manhã o sol desponta por trás dos enormes jatobás, do tupi yata`i e yata`wa (jatobá-do-campo). O jornal fretou um pequeno avião. Ele permite a Adriane fixar o visor da Nikon F/36, ajustar a teleobjetiva de 600mm, autofoco, e reproduzir centenas de imagens aéreas do Campo do Cavalo Morto, assim denominado pelo aventureiro inglês, coronel Fawcett, quando da segunda expedição deste, em direção às passagens subterrâneas situadas nas imediações da Serra do Roncador, em 1925, no paralelo 11º e 43`` de latitude sul e 54º e 33`` de longitude.

Ao chegar a este local, o cavalo de Fawcett morreu de uma picada de serpente venenosa, daí o nome Campo do Cavalo Morto. Rossi faz novas anotações no diário: “Às 15 horas o barco voa sobre a superfície do rio, conduzido com mestria por Hermann. Devido à velocidade, não se consegue fixar com nitidez a paisagem, do leito e das margens. Penetram num emaranhado de pequenos canais, locais quase inacessíveis, misteriosos, de difícil aproximação e trânsito para quem não estiver familiarizado com as veredas.”

“A água, de limpidez cristalina, permite visualizar a vegetação verde que aflora do fundo do rio, quando o barco é forçado a diminuir de velocidade. Mesmo à grande profundidade, o leito do curso d`água parece estar próximo à superfície.”

“A vegetação de brejo e pântano dá origem a milhares de ilhotas e canais numa paisagem que, de tão bela e inusitada, traz ao presente uma certa nostalgia de algum suposto e romântico paraíso perdido. Adriane sente, com intensidade, a satisfação e a volúpia de estar em meio a esse emaranhado de cores e sons da vegetação e da fauna do arco-íris. Elas fazem com que os sentidos da fotógrafa exilem-se provisoriamente, por segundos, num encantamento arrebatador, transportando-se, suponho, em êxtase místico, para um mundo de fantasia.”

Entardece quando o barco aporta no Posto Leonardo, um sítio alto à margem do rio Tuatuari, com construções antigas que lembram as missões jesuíticas. Maior parte dos prédios estão abandonados, incluindo as escolas. O posto médico e o gerador de energia funcionam normais.

As lâmpadas dos postes são acesas, os índios das nações aueti, mehinaco, iaualapití e trumaí cercam o barco. A caixa com alimentos é esvaziada em segundos pelos adolescentes. O jantar com peixe, pirão, paçoca e macarrão, que o índio Ararapã mandou servir, teve sobremesa de frutas silvestres, com casca muito preta e um recheio transparente tipo pitomba, as “marias pretinhas”, como os índios as chamam, estavam deliciosas.

A Expedição acampa outra vez, do outro lado do rio Tuatuari. As cores do anoitecer aumentam a sensação de liberdade transmitida pela paisagem às margens. Surge em Rossi, leitor atento e fã do Kuarup de Antônio Callado, a idéia de, se voltar, escrever a história da Expedição Norton.

Ignora que o livro PSYCOCITY, que Tauil adquiriu numa livraria do shopping Morumbi, pouco antes de se engajar nesta aventura, conta a história desta Expedição. Seria fantástico demais para qualquer um dos membros da Expedição Norton, associar uma ficção editada em livro, com a realidade que estão a viver.

Ela o trouxe, mas não leu. Rossi apenas folheou e percorreu com a vista, ligeiramente, alguns parágrafos. Uma realidade mais paradoxal que qualquer paradoxo de seu conhecimento, está em andamento. Eles nem desconfiam, mas fazem parte do elenco de personagens do livro. Escrito, segundo avaliação posterior de Rossi, por um viajor do Tempo.

Tauil fica longo período matutando na agilidade com que Hermann singrou a trilha certa no emaranhado de ilhotas das águas. A familiaridade com a trajetória... A certeza de que ele já conhece, há muito, esse labirinto fluvial, pantanoso.

Finalmente param e acampam. Hora de dormir. O sono traz sonhos. Eles avivam em Adriane a lembrança dos estranhos desaparecimentos de centenas de pessoas em expedições que, desde 1925, buscaram comprovar a existência das cidades subterrâneas. As imagens, coerentes, são como um filme revelado com material inconsciente, não sujeito às limitações de tempo e espaço: pensamentos, sentimentos e emoções fluem através de representações de forças da natureza.

Ao despertar, ela quer lembrar-se, sem sucesso, das sequências plásticas que evocavam novas combinações de idéias. Pelo menos uma frase persiste nítida na memória consciente: “Depois de vencer todos esses obstáculos para entrincheirar-se nas entranhas da Terra, você alardearia os seus segredos?” A sensação de que já ouviu ou leu isto antes, não sabe onde. Uma frase complementar se faz nítida: “Você não teria a quem dizer estar a fazer parte do grupo terminal do último casal habitante da Terra.”

Adriane não teve outra oportunidade de trocar idéias com Rossi. Precisa disso, mas, na barraca, ontem, as emoções do dia fizeram com que mergulhasse no sono sem sequer um “boa noite”. Deitou e dormiu antes que o jornalista chegasse à barraca. Ele também achou estranha a habilidade de Hermann Breed na direção do barco. Exigindo tudo do motor de popa de 100 HP, da lancha Marajoara, casco de alumínio, com velocidade de 100 km/h. Está claro que muitas informações sobre essa expedição estão fora do controle deles, jornalistas, e talvez, dos membros do Conselho do Jornal.



AS
MUTAÇÕES
POLÍTICAS

Após trinta e cinco dias ruminando as mais obscuras possibilidades, Hélio recebe uma cartaviso. Dirige-se no outro dia pela manhã ao posto médico. No caminho, lembra-se de uma atendente de cor, na ocasião do segundo exame, quando retiraram a outra mostra de sangue, para a confirmação do resultado anterior.

A enfermeira do posto médico cheia das piadinhas, a fazer gracinhas com a aflição das pessoas da sala de espera. A mulher talvez não estivesse se dando conta do sadismo para com os pacientes. Ou melhor, instigava deliberada e sadicamente a ansiedade deles em saber dos resultados.

Na ocasião, ela cantava, provocativa, para o divertimento das outras atendentes de descendência negra e das de descendência branca e oriental que trabalhavam com ela. Sorriam com as provocações, algumas, “educadamente”, de modo quieto e contido. Todas se divertindo em usar um momento difícil, de angústia, para atormentar os clientes que estão na sala, à espera de fazer um exame de confirmação, e buscar resultados para si ou para parentes próximos. O senso de humor negro delas, saía-se com jóias de provocação, tais como:

— Jesus, Maria José, encomenda essa alma que está de pé. Ah, ah, ah. Ri, ri, ri, risinhos abafados respondiam aos refrãos da enfermeira de cor:

— Glória, glória, aleluia, aleluia, Jesus está chamando. Ri, ri, ri, ah, ah, ah. As descendentes orientais sorriem apenas com os lábios, silenciosamente. O deboche e os risinhos idiotas continuam, em franca demonstração de desrespeito e maucaratismo pela situação de opressão dos clientes na sala de espera.

A ansiedade das pessoas era motivo para banalizar e censurar a conduta dos pacientes, possivelmente portadores de uma ou outra das doenças infecto-contagiosas, detectáveis via exame de sangue.

Desta forma, justifica Hélio de si para consigo, vingam-se dos maltratos profissionais e domésticos, jogando-os sobre pessoas que nada têm com eles. “O inocente paga pelo pecador”. Desde que não tem ninguém inocente, todos ampliam os ressentimentos quando os atiram em direção a outras pessoas. É a lei subliminarmente aceita nesses tempos de ultratensão, de desdobramento das solicitações sociais e políticas do “Reich dos Mil Anos”.

Hélio busca parecer calmo, mas está apreensivo. Afinal, se for portador de uma das variantes do H3V, a PUF, a FLP, a CLL, a BPP, a MAC, ou a PQP, serão breves os dias restantes de sua existência. “Afinal, a civilização danou-se” como diria quando, há trinta anos, chegou a São Paulo de uma capital do nordeste, enfrentando diariamente, preconceitos mal dissimulados contra nordestinos, comparáveis aos dos brancos do “movie” Mississipe em Chamas, recém exibido numa retrospectiva de filmes do século XX, que mostra imagens de comportamentos racistas contra os negros nos EUA.

Preconceitos pipocam na metrópole: contra negros, nordestinos pobres, descendentes de orientais, homossexuais das classe menos favorecidas. Esses, para se defenderem transferem os preconceitos para terceiros. Desta forma criam sua própria intolerância em resposta à exclusão social contra eles.

— É assim, balbucia entredentes, que o caldeirão desse inferno ferve. Leitor de Sartre lembra-se da frase: “O inferno são os outros”.

Hélio sabe, se estiver infectado, para combater o vírus, deve ingerir, por dia, nada menos de 28 cápsulas de diferentes medicamentos, combinados para fazer diminuir a quantidade da presença do H3V nas células. É dureza, e sem nenhuma garantia de que não haverá agravamento posterior do contágio.

As novas infecções viróticas usam a ação dos medicamentos para fortalecer as variações da constituição celular das mutações do H3V: Todas elas são mais letais que o original. Ainda não foi descoberto o coquetel de drogas capaz de impedir que os atuais medicamentos sirvam de alimentação virótica (ou não sirvam para nada) após certo período de uso.

O estômago nunca foi seu forte, nem os rins. Talvez porque quando criança o pai misturava pequenas quantidades de mercúrio odontológico no pão, no café com leite, nas refeições dele. As bolinhas prateadas no café com leite pediam para serem ingeridas, como se fossem confeitos. Sim, porque se o pai as lançava aos alimentos, e a mãe via e não dizia nada, era porque ingerir as porcariazinhas devia ser uma coisa boa. No limbo da inocência infantil, pensava que deveriam fazer alguma espécie de bem. Afinal, pais foram feitos para proteger e providenciar a saúde física e mental dos filhos, ou não?

Nem sempre. Os seus, com ele, faziam tudo ao contrário. Talvez porque fosse o primogênito de uma grande família nordestina, e o melhor mesmo que poderia acontecer, na opinião do resto da família, era ele ficar idiotizado ou morrer. Afinal, um imbecil não sabe que tem direitos à educação e a saúde, nem pode encher o saco dos pais, cobrando-os deles.

Seus irmãos eram incentivados, real e subliminarmente, a tratá-lo com se fosse um intruso, tolerado, aceito à contragosto por todos. “Por que esse filho da puta não morre ?” Era a pergunta calada que faziam. Ele não passava de estorvo persistente. Dureza aguentar os desdobramentos desses preconceitos do lar, no dia a dia da vida social em São Paulo.

Nesse clima de latente insanidade e rejeição, fora criado. Tudo bem, tudo isso é passado. Mas seu estômago e rins ficaram com as sequelas em longo prazo, devido a ingestão das bolinhas prateadas de mercúrio odontológico. Se uma única cápsula faz arder os ácidos estomacais, como será a ingestão de vinte e oito comprimidos a mais por dia ? Nessas condições, melhor morrer. Ora, outra vez derivando. A presença virtual do H3V, ou de uma de suas mutações, faz com que sinta-se um mero entretenimento experimental do vírus.

A mente de Hélio toma rumos diversos, como que querendo se afastar do trauma do momento: a possibilidade de estar infectado, de sua “educação” familiar estar contribuindo, em longo prazo, para diminuir suas possibilidades de prolongar a vida adulta atual.

Kafka, Poe, Camus, Dostoievsky, Nelson Rodrigues, Proust, Tchekhov, Orwell, H. Dobal, O. G. Rego e Vianinha, explicaram nitidamente para ele, os meandros burocráticos das emoções familiares, acadêmicas, que conduzem o homem a uma aposentadoria dantesca, a uma memória mergulhada no fúnebre formol das células avoengas.

Adentrando o carro num estacionamento próximo, pensa: Aqui estou outra vez, pagando para ouvir as gracinhas da mucambinha de franjinha, dessas branquelas e de sua particular platéia de olhos puxados. Um preconceito não justifica outro, mas faz a ansiedade diminuir. Sai do ambulatório. No carro abre o envelope, lê o conteúdo. Porra, afinal a maldita ânsia acabou. Não é hospedeiro do H3V nem de nenhuma das “mutações políticas” do vírus. Todo esse anticlímax felizmente para nada, quase nada: foi diagnosticada uma hepatite HFC.

Hélio descobre, satisfeito, ser hospedeiro de outro vírus menos fatal. Afinal, o equivalente político do vírus, é apenas um intelectual política e ecologicamente incorreto, que caça passarinhos a tiros, acerta em elefantes, e teve a cara-de-pau de confessar publicamente que o coração estava consternado porque um de seus amigos particulares, ex-ministro mão grande de seu governo, não era mais banqueiro.

A falta de ética na política chegou a graus tão deformadores da realidade, que as pessoas apelidavam as infecções viróticas fatais com o nome de participantes do "Pra Lamento", ou do Executivo, denunciando-lhes as mesmas características das viroses. Um ex-presidente de nome com as iniciais HFC, depois de seu período político no Planalto, ainda teve a falta de vergonha de escrever um livro denominado As Artes da Polícia Política (A História do Reich dos Mil Anos Que Vivi).

Outro ex-presidente, conhecido pela sigla CLL, a mesma de uma das várias mutações do vírus fatal, costumava berrar em seus discursos: "Não me deixem só". Obteve 36 milhões de votos. A característica virótica do CLL é que, em apenas duas semanas da penetração no sangue do infectado, consegue disseminar-se por 36 milhões de células.


A TERRÍVEL PUNIÇÃO
DOS “MUITO ANTIGOS”

A Expedição Norton encontra-se, afinal, em Nova Xavantina, cidade dividida ao meio pelo “Rio das Mortes”. Nome conveniente, a se considerar a grande quantidade de pessoas que perderam suas vidas, ou não mais foram vistas, sem explicação racional aceitável, quando próximas a determinados locais de suas margens. A Serra do Roncador já não está tão distante.

Através das péssimas trilhas esburacadas, pedregulhos e lama, a expedição segue em direção às frinchas, em algum lugar da parede de pedra, rumo às indicações mapeadas via satélite, e às reveladas, até então mantidas em segredo. Talvez, tais indicações coincidam com o roteiro indicado na 3ª Parte do “Arquivo Jângal”.

No diário Rossi escreve: “Ao final de dois dias chegamos a uma clareira que se estende em declive até um córrego. Árvores erguem-se altaneiras, frondosas, destaque para as samambaias, em meio ao mato e ao capim alto e espinhoso. Esse, certamente, é o Lugar ideal para fazer valer a lenda da cidade perdida: longos raios sanguíneos do sol iluminam as sombras errantes do crepúsculo, a outra metade da mata, aberta na brenha da selva, permanece sombria.”

As mochilas descem ao chão. Hermann e Vassari curvam e cortam galhos, folhas e cipós para fazer armadilhas ao redor do acampamento. Norton faz reconhecimento do terreno, Adriane e Rossi armam as barracas. Tauil comenta com ele a estranha falta de cansaço: é como se sobrasse disposição e força para mais uma semana de caminhada.

— A tensão, a ansiedade, a perspectiva dos acontecimentos, originam essa sensação, deduz Rossi. Não se permita iludir por ela. Também sinto isto. Estamos a absorver essa enorme energia telúrica. A intimidade inusitada da companhia da natureza neste ambiente de promessas e surpresas, nem todas agradáveis. Quero uma noite de sono como se estivesse na suposta segurança do condomínio, sem pensar nos perigos que possam estar à ronda.

— Que história aquela, a que afirma ser a motivação da Expedição vingança ? Adriane reporta-se à conversa interrompida na pousada em Canarana.

— Você presenciou a habilidade de Hermann na direção da lancha? É como se já tivesse percorrido muitas vezes esses caminhos.

— Não é normal.

— Se Norton falhar, as indicações da 3ª Parte do “Arquivo Jângal”, podem ser úteis na localização das frinchas de entrada.

— “Arquivo Jângal”, que é isso, um livro de Jack London? Que vingança você mencionou?
— É uma longa história, que me faz sentir preso à teia de aranha cósmica, à fiação de Ariadne. Cada fio puxa outro e mais outro, num enredo interminável. Você quer mesmo ouvir?

— Por favor, interessa-se Tauil.

— Vou resumir.

— Prossiga. A expectativa de Tauil fez-se eco através dos tons anasalados da voz. Deseja testar os conhecimentos de Rossi a propósito das verdadeiras intenções dessa viagem. Desafia o jornalista a surpreendê-la com alguma possível informação alheia a seus conhecimentos. A nuança da voz traduz a expectativa inconsciente.

— Voltaire e dois outros alunos da USP, Hermes Vikander e Isaac Rondon, viajam até Barra do Garça, cidade próxima à Serra do Roncador, divisa com Goiás, às margens do rio Araguaia. Objetivo: chegar à sede da seita “Núcleo Teúrgico”, criada por Udo Luckner, morto em 1986, não sem antes se proclamar “Hierofante do Roncador”.

— Para realizar esse objetivo, precisam localizar o casal Armanlubison, sua mulher Dercyna, de origem peruana, que realizam cultos, meditação, e moram no centro de Barra do Garça, para dali, com a orientação dele, seguirem em direção ao ponto “X” de um mapa desenhado a partir das indicações verbais do índio Ianpupiara.

— A motivação prevalecente dos estudantes, não é apenas a da pesquisa e da aventura, mas a confiança deles nas informações colhidas durante uma entrevista realizada num contexto muito raro e fortuito, ao qual Isaac Rondon teve acesso. A irmã de Isaac, Ruth Rondon, assim como seu companheiro, Leogiorusso, estiveram no Xingu, em visita turística e religiosa ao “Núcleo Teúrgico”, março de 1969, um ano após a fundação, quando Udo estava vivo.

— Na entrevista o “Hierofante”, seus principais crentes e assessores, Timothy Paterson, Nina Ibez, e o casal peruano, obtiveram valiosas informações de Ianpupiara, da tribo dos kalapalos sobre a “emboaçaba”, a passagem para a cidade subway. Valiosas porque os nativos sempre se negam a mencionar a menor dica sobre ela, assim como os contatos com OVNIs. Eles têm uma inabalável convicção de que nunca devem falar nada sobre os “Muito Antigos”.

— Daí, esse excessivo zelo pela tradição do silêncio. Guardar os segredos dos antepassados, por medo de represálias e castigos. Os que falam sobre eles, morrem de “acamundú”, uma espécie de hemorragia cerebral, ou desaparecem. Os poderes telepáticos dos lemurianos podem captar o sentimento de culpa do nativo que violar a lei do silêncio, e revelar os segredos da tradição. Daí esta entrevista ser um acontecimento imprevisto, raro e bem-vindo, ainda que, posteriormente, trágico.

— Após ter ganhado presentes do casal de visitantes, e muito bêbedo, Ianpupiara soltou a língua. Disse que os filhos de Fawcett, Jack e Rimell, haviam sido mortos pelos xavantes, agressivos guardiões das fissuras na rocha da Serra do Roncador, que conduzem às ocaras debaixo do chão dos “Muito Antigos”. O coronel foi poupado porque conduzia a estatueta de basalto, de 25 cm, com as inscrições supostamente atlantes. Segundo ele, os morcegos e xavantes foram instruídos por mensageiros, a protegerem e conduzirem o portador da estatueta até certo local no coração da selva.

— Ianpupiara contou que o grupo xavante que conduzia Fawcett pelas trilhas da selva fechada, foi interceptado, ao anoitecer, por “dois brancos muito altos, yucabaras de testas muito altas, olhos miúdos, brilhantes e encovados, muito para dentro da cabeça.”

— A descrição lembrou ao casal Sílvia e Leonardo, que antes de se mudarem para São Paulo moraram na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, o enorme rosto esculpido na rocha no alto da Pedra da Gávea, conhecido por “Caverna do Vicking”.

Os nativos têm superlativo temor deles, dos “Muito Antigos”, também denominados Caiporas, Canguaybas, seres cruéis que espreitam os índios nas matas próximas às ocaras debaixo da terra. Não os mencionam nunca. Não falam nem de suas raríssimas aparições: o tabu mais radical do Xingu é este. Nesta ocasião o casal não mencionou a semelhança entre a descrição física desses dois brancos altos, com a cabeça do Vicking, na Pedra da Gávea.

— Cercados por grande quantidade de índios da tribo dos morcegos, os xavantes não relutaram na entrega do militar inglês aos estranhos. Dalí, Fawcett foi conduzido “para os terraços, corredores e labirintos debaixo da terra. Nenhum índio sabe dizer esse caminho”. Do modo como foi dito, Ianpupiara queria dizer:

— Nenhum índio fala sobre este assunto proibido. Tabu. Não pode nunca fazer isso: homens brancos muito altos viver entocados debaixo do chão, não gostar. Índio falar e ficar jucapira, com dor de cabeça, sangrar pelo nariz, pelos olhos, morrer acamundú. Perigoso emboaba ser inimigo muito mal. Pode acontecer comigo que estou dizendo a vocês. Índio ter sonhos ruins, "yuruparí".

— Na ocasião em que Fawcett foi entregue aos dois homens altos, um adolescente de cabelos escuros, seguiu com o grupo xavante até o “Vale dos Sonhos”, a trinta quilômetros de Barra do Garça, ocasião em que outro homem branco, acompanhado de uma mulher muito alta e loura, após doarem muitos presentes, despediram-se, entraram numa perua e seguiram, segundo informes posteriores, pela BR-070 até Cuiabá, a aproximadamente 440 km do local, onde pegaram o rapaz.

— Vale lembrar que o neto de Ianpupiara, entrevistado em março de 2021, fala de acontecimentos ocorridos no Xingu com seu avô, em 1925, há 96 anos, quase um século. Talvez por isso ele tenha se permitido falar dessas histórias que a tradição verbal do Xingu nunca menciona, e muito menos mencionam aos não-nativos. Ele acreditou que depois de tanto tempo, ninguém mais se importaria com isso. Ledo engano.

— Os que buscam uma solução para o desaparecimento de Fawcett, têm nesta, uma boa história. Mas o objetivo de Vikander e seus companheiros de faculdade, está em entrar nos subterrâneos, encontrar a “emboaçaba”. Para isto precisam do apoio e da proteção mística de Dercyna e Armanlubison, amigos dos familiares de Voltaire. O casal aconselha os jovens a voltar para São Paulo, isto porque, o neto de Ianpupiara, o mesmo índio entrevistado há tantos anos, foi encontrado morto, com a morte dos que são punidos pelos “Muito Antigos”: hemorragia nos olhos, ouvidos e no nariz, precisamente dois dias antes deles chegarem.

Adriane mostra interesse na história contada por Rossi. Tira do termo um chá verde fumegante, oferece uma xícara. Ele aceita e prossegue a narrativa.

— Voltaire volta a se empenhar nas pesquisas bibliográficas, para que a tese não tivesse uma redação considerada incongruente pelo orientador, ou viesse a ser rejeitada com a marca registrada da tirania acadêmica: A manipulação obsessiva do conhecimento oficial, do saber conhecido, por mais obsoleto, nostálgico e pseudo científico que seja.

— Voltaire conversa via Internet com sócios do Clube de Leitores de Ficção Científica de São Paulo. Via e-mail obtém endereços internacionais de arqueólogos, antropólogos e filólogos. Pesquisa bibliotecas a navegar pela rede.

Consegue o site, endereço eletrônico do professor de Arqueologia da Universidade de Israel, Chaimcoch. Comunicam-se via Internet. Coch transmite a tradução de uma “biblioteca” de tabuletas de basalto, gravadas pelo extinto povo dos Naacales. A “biblioteca” havia sido encontrada pelo oficial do exército inglês, coronel James Churchward, durante a colonização inglesa da India, a mais de cem metros de profundidade, numa das incursões do oficial, por uma das inúmeras cavernas abissais de uma cidade no interior do país.



A DESCOBERTA
DO CEL. CHURCHWARD:
OS SUBMUNDOS NAACALES

Rossi prossegue a narração do texto maldito do “Arquivo Jângal”, de autoria de Voltaire, para uma Adriane cada vez mais atenta:

Está escrito nos hieróglifos em basalto pelos Naacales: MU, como era conhecida a Lemúria, tinha um território muito maior que a Atlântica, ocupava toda a área do Pacífico Setentrional, abaixo do arquipélago do Havaí, até a região das ilhas Polinésias. O lemuriano é o povo mais antigo da antiga Terra.

— A aparência pareceria grotesca, certamente incômoda, ao padrão da anatomia humana normal. Mas não é por isso que não se encontram lemurianos na superfície. As condições de radiação solar eletromagnética e cósmica, pressão atmosférica, interna e arterial, impeliram esse povo a construir seu habitat nos subterrâneos do planeta.

— Segundo os hieróglifos, que de tão remotos perdem-se na longínqua noite da antiguidade, os lemurianos habitavam a Terra antes da formação de seus continentes. Por isso são conhecidos na tradição esotérica de muitos povos “a raça dos Muito Antigos”.

Inesperadamente, as trevas envolvem os membros da expedição acampados ao redor da fogueira acesa para aquecer o corpo e as palmas das mãos. Percebem-se os ruídos dos pequenos animais da floresta. As labaredas fazem estalar os galhos úmidos e os pedaços de madeira. Fazer fogo pode ser perigoso, mas as noites são muito frias nas localidades próximas à Serra dos Carajás.

Adriane pergunta a Rossi, que interrompera por momentos a narração:

— Parou por quê ? Por que parou ? O jornalista parece, aos olhos da fotógrafa, concentrado em algum ponto longe da narrativa.

— Essa narrativa, por vezes, provoca arrepios. Das transcrições da biblioteca de tabuletas de basalto descobertas pelo coronel Churchward, saltam descrições de cidades subterrâneas. Elas seriam iluminadas por fótons de oxigênio à base de 20%; de nitrogênio a 79% de vapor d`água, dióxido de carbono e argônio.

— A telepatia lemuriana é exercida com intrepidez e crueldade: Eles simplesmente sabem como lidar com boa parte dos outros 93% da mente dos descendentes cromagnon. Berço da civilização humana, e de suas tradições, nas tabuletas de basalto está escrito que a Lemúria esteve no início e estará no fim da história do homem sobre a Terra.

Sentem a influencia da excêntrica, extravagante, luminosidade lunar entre as árvores da floresta Amazônica. Essa epifania, esse luar de prata, bem-vindo clichê literário, inunda o espaço em derredor.

Aos olhos do jornalista, eles não passam de membros provisoriamente decorativos da paisagem Amazônica. Conduzidos a prosseguirem a aventura, por essa força maior, estranha. Os ruídos bruscos dos animais da floresta voltam a se fazer ouvir. Rossi acredita que são provenientes de pessoas ou animais que estão a observá-los silenciosamente. Norton, Hermann e Vassari prosseguem empenhados em procedimentos técnicos, defensivos. Tauil está muito atenta ao relato de Rossi:

— Os índios não falam. Mas é do conhecimento geral as advertências vêm de grandes quantidades de pessoas que se embrenharam floresta adentro, em grupos, dos quais apenas uma e outra voltaram para contar a história. Tais grupos conseguiram chegar em locais não permitidos, muito distante dos limites do “cinturão de segurança” de alguns sítios misteriosos desse mundaréu amazônico.

— Quando alguém ultrapassa esses limites, não raro faz-se sentir a atuação dos “come-come”, que em outras regiões são conhecidos por “lobisomem”, “chupacabras” e outras denominações regionais. Segundo estudiosos desses fenômenos, cones de luzes sobrevoam as redondezas desses sítios, garantindo a distância regulamentar dos curiosos mais afoitos, e dos aventureiros que ultrapassam os limites das áreas consideradas Tabu.

— Essas luzes, por vezes provocam delírios ou desmaios: fazem reduzir, de maneira drástica, a quantidade de glóbulos vermelhos do sangue dos atingidos, provoca anemia, indisposição, vômitos, dores de cabeça, pesadelos e, por vezes, sérias queimaduras de pele e hemorragia nasal, tendo sido registradas ocorrências mortais com alguns dos atingidos. Os “lobisomens”, os “come-comes”, os “chupacabras”, minaram a resistência de centenas de curiosos dos mistérios dessas regiões.

— Voltaire se perguntava se não estava a meio caminho de acreditar numa hipotética conspiração subterrânea para conquistar luciferinamente o Ocidente, depois de ter submergido alguns povos asiáticos numa cultura tipo adoradores de vacas.

Os ruídos furtivos de folhas secas e galhos sendo pisados ao redor do acampamento acentuam a sensação de que estão sendo observados. Rossi olha Adriane como quem diz: “Você não está sentindo-se observada”? Ela, mais interessada na continuidade da história, responde:

— Continue por favor, são ruídos de animais curiosos, atraídos pelo fogo e a movimentação do acampamento. Rossi não estava muito certo de que era apenas isso.

— Quem, acima do fuhrer, queria o povo judeu nos crematórios? Que mestre da natureza irracional pôde violentar com tanta intensidade e barbárie, a sagrada vida de crianças, adolescentes, adultos e idosos? Onde estava latente tanta crueldade, em que cofres de bancos suíços do inconsciente coletivo, foi-lhes depositada ordens de crédito para serem agentes luciferinos do horror superlativo do “Reich dos Mil Anos”? Do Holocausto?

— As ponderações de Voltaire convidam ao raciocínio: Como um país europeu com uma economia arrasada, liderado por um austríaco maníaco e delirante, súbito se transforma na mais poderosa potência bélica do planeta? Que segredos esse médium negro buscou, com quem os obteve? Com que forças fez um pacto luciferino de poder, em troca do sofrimento e do sangue de sessenta milhões de pessoas, entre elas, seis milhões de judeus?

— Dia 1º de setembro de 1939, quando tropas e aviões do exército do 3º Reich invadiram a Polônia, aquele moço conduzido pelos xavantes até Barra do Garça, seria um adulto com 29 anos, aproximadamente.

— Poderia ter servido de veículo de comunicação mediúnica entre membros da Ordem Negra do fuhrer, e a recepção de mensagens psi, por telepatia, dos magos da capital subterrânea, a Tule dos “Muito Antigos”?: Tule: outra coincidência pertinente: era também o nome da sociedade secreta, com uma hierarquia que tinha como ápice a Ordem Negra do III Reich, sob comando, comunicação e controle do médium maligno Adolfo Hitler.

— O mundo subterrâneo mantinha uma embaixada no coração de trevas do “Reich dos Mil Anos”. Seu principal representante, embaixador e mestre-auxiliar da Ordem Negra, Rudolf Hess, era um dos 20 mil oficiais e altos dirigentes nazistas capturados, de um total de 70 mil deles. Hess era egípcio.

— Afora os que morreram nas batalhas da Segunda Guerra, onde estão os outros 50 mil oficiais nazis que nunca foram localizados e presos, é isso ? Rossi confirma a suposição de Adriane:

— Os pesquisadores das histórias subterrâneas à História, sabem que os fatos acontecem a partir da ação de motivações que atendem a interesses de domínio político e econômico, camuflados por discursos carregados de supostas boas intenções, das quais o inferno está saindo pelo ladrão.

Foi falar no ambiente infernal, para logo meia dúzia de seus representantes diplomáticos aparecerem. Adriane e Rossi levantam-se e recuam dos caninos selvagens pontiagudos, a projetarem-se dos focinhos e dos pescoços que se esticam para cima e para frente, a poucos metros deles.

Olhos azuis irados, o ladrar da matilha, os rosnados ameaçadores de meia dúzia de cães pastores alemães, e outros, com aparência de lobos selvagens, uivantes. Rossi pensou: são os adidos militares do comitê de recepção lemuriano. Certamente não estão querendo pular sobre nossas gargantas, ou já o teriam feito.

Vassari e Norton empunham metralhadoras portáteis de fabricação israelense. Hermann gira no calcanhar, joelho direito no chão, costa a costa com Vassari, como se para permanecer mais atento, apura a audição movendo o pescoço para os lados, enquanto os olhos fixam-se ora à direita, ora à esquerda das órbitas.

Os lobos levantam as patas, e ao posicioná-las outra vez no chão, recuam, a sugerir que devem segui-los. Ninguém se faz de rogado. Sob tal ameaça, “quem pode manda, quem tem juízo, obedece”. Pegam as mochilas e logo seguem a trilha, pela qual correm, em direção a algures. De quando em quando um deles salta mais alto no mato em volta, abrindo caminho à frente, indica, a cada salto, como se adestrados nesta finalidade, por onde devem seguir.

O sobe e desce das valas e valetas, à esquerda, à direita, a determinação dos animais em se fazerem acompanhar, o segue-segue, a pressa prossegue por trilhas insuspeitas. De repente... Surpresa, o imenso dorso de um réptil que, de tão longo, em meio ao matagal dos lados, não se vê as extremidades. Adriane e Vassari tropeçam nele.

Rossi anotou no diário: “Paramos por momentos. Os lobos não gostaram e começaram a rosnar, num balé ameaçador. Bramem, arreganham dentes. Ameaçados, continuamos a segui-los. A quantidade deles, talvez seis ou sete. Membros da matilha circulam por todos os lados, como se não quisessem perder ninguém de vista. Se o cão é o melhor amigo do homem, esses lobos são os melhores amigos de quem ?” Esta, a única coisa em que o jornalista consegue pensar. Teme chegar à resposta certa.

Após uma caminhada apressada de sessenta minutos, chegam a uma pequena clareira, extenuados pela pressão implacável da matilha, que, felizmente, desaparece como que por mágica, de vistas e de rosnados. Os cinco membros da Expedição Norton estão com a pele do rosto rosada, avermelhada. As bochechas afogueadas da Tauil, rubras rubi, as de Hermann e Vassari, sanguíneas como bandeiras nazis, as de Rossi e Norton como flores de papavera.

Olhar penetrante e sentidos aguçados, Tauil sente-se saída da fria e temível, para a quente e perfumada noite. Desconhece se os outros sentem a mesma coisa, mas ela sabe: Precisa abrir-se a essa espécie de erupção vulcânica da consciência. Ceder a essa perturbação, oportunidade única de encontrar uma maneira de se fazer aceita e agradar a esse musgo verdoso imortal, milenar, que se projeta das rochas, por obra de uma magia inesgotável. O musgo a observa e avalia, como se desejando achar uma oportunidade de poupá-la, do que quer que seja: do pior, de uma tragédia.

Tauil sente-se grata, busca não interferir no desdobramento dos fatos. Norton tem em mente que a panóplia das folhas, nesse matagal que se confunde com a musgosidade de púrpuras algas-marinhas, é uma metáfora delirante de rara qualidade natural, a preencher de impressões animadas e sempre pouco pacificadas, os membros desta expedição. Estar nesse lugar certamente não é um dos menores prazeres da vida.

Rossi estranha lembrar-se tão nitidamente de versos do poema traduzido das tabuletas de basalto encontradas pelo coronel James Churchward, transcritos por Voltaire na Terceira Parte do “Arquivo Jângal”:

Wilbe enreda você em sonhos
numa teia Andaluz de medo e vergonha
Sua mente é apenas um túnel
de acesso aos Senhores da Noite.
Em sua concha Wilbe sonha sonhos
para que tenhas pesadelos.
Wilbe, mestre das fadas madrinhas
das bruxas, raposas e doninhas.
O domínio, a única coisa que conhece.
Por que ardes em apressar esse ensejo?
Canta, há um réquiem em tua porta
Seu coração agita-se em melancolia.
Um dia tudo terá acabado numa zona morta
todos os unicórnios e centauros
e nenhum coração a pulsar pela poesia.

Vassari e Hermann se perguntam como, estando aqui, alguém poderia negar que a história desse mundo deve tudo o que é, e o que será, a esta força à qual pertence este lugar.

Por mais fortes e guerreiros sejam, tendo participado como mercenários de conflitos que exigiam plena disposição dos sentidos, para superar as mais diferentes estratégias de combate, aqui, agora, estão cientes do sentimento de suas fraquezas. Aqui, estas armas, fabricadas pela tecnologia de ponta do complexo industrial militar de Israel, valem, enquanto instrumento de ataque e defesa, o mesmo que se estivessem empunhando uma flor.

Os instintos naturais de defesa prevalecem, condicionados pelo combate em campo nas selvas asiáticas e latino-americanas, acionados via mecânica neural paranóica, e treinados para combater inimigos, com armas brancas, de fogo, ou apenas com mãos e pés.

— Nada mal manter o dedo na pinguela, rosna Hermann. Opinião com a qual Vassari concorda, apenas aparentemente. Qualquer inimigo que fosse atraído para essa arapuca, não teria a mínima condição de sair vivo de uma emboscada. Se quisessem atingi-los, já estariam todos mortos.

— Está tudo bem, exceto por esse bafo morno que está vindo de alguma parte da parede de pedra. Adriane sugere a possibilidade de ser uma fissura de entrada subterrânea.

— Não está checando com indicações GPS, duvida Norton.

— Vale investigar. Nesse lugar nada vai checar com suas precisas indicações via satélite, Norton. A garantia de Rossi: "Logo você não percebe isso"?

Vassari e Hermann aproximaram-se para trocar opiniões com Norton, se expressaram numa língua asiática, provavelmente permeada por códigos.

A coisa estava se encaminhando para algum tipo de desentendimento. Talvez estivessem sugerindo que, tudo bem, o pessoal do jornal está livre para fazer suas próprias pesquisas. Não precisamos deles. Os gringos talvez estivessem chegando a alguma conclusão desse tipo, quando se faz ouvir uma sonoridade longa e grave, uma nota musical que soa como um sinal imitando o piar demasiado prolongado de uma coruja. O som se repete, agora, como uma nota sol, soprada longe, de uma flauta andina.

Calam-se, ficam assuntando, os olhos atentos, imóveis, concentrados. De onde quer que tenha vindo, veio de algum lugar dentro do paredão da rocha: hei-lo outra vez. A busca durou uns dez minutos. Da encosta da Serra não há como prosseguir. Basta achar de onde está vindo esse “hálito”.

Meio encoberta por plantas silvestres que descem dentre as fissuras musgosas, mas não muito altas da rocha, a estreita passagem horizontal permite a entrada de uma pessoa por vez e por mochila. Antes de galgar o corpo inteiro para o interior da fissura, investiga a possível presença de serpentes e outros répteis, não querem ser surpreendidos pelos animais peçonhentos do lugar.

Norton consegue atingir este patamar, após subir com um dos pés, usando as mãos de Vassari enquanto estribo. Está a meio corpo para dentro da fissura horizontal, quase imperceptível, a dois metros e meio acima, no paredão da rocha. Após alcançarem a parte interna da fissura, Hermann e Norton acendem lanternas, mas não conseguem que permaneçam acesas por mais de quarenta e cinco metros.

A lanterna de Rossi arrasta a luminosidade meio hesitante do foco, pelo teto. Há pouco mais de um metro e meio de altura. Ao focalizar o quiróptero logo cima da cabeça, pergunta-se: “Essa espécie é hematófaga ou ictiófaga ? De qualquer forma, a coisa não está boa, tenho sangue nas veias e o signo em Peixes.” A décima segunda constelação do zodíaco.

O percurso apresenta uma série de desníveis que em nada facilitam o arrastar às mochilas em fila indiana, na direção do interior da profundidade subterrânea da estreita passagem cavernosa. Problema: as lanternas não têm mais foco. Não é bateria, elas são novas, ninguém vai atrás do que possa ser. O grupo consegue avançar cinquenta metros e pára. Norton passa óculos com lentes infravermelhas que permitem ver no escuro.

Rossi anota no diário: “Felizmente a hora é de parar. A sensação de euforia cede lugar ao cansaço físico. Amanhã, as seis, a façanha continua. Vassari acredita: talvez todos tenham pensado que essa pode ser a toca do ofídio gigante à filme de Spielbergson, visto quando corríamos com os lobos.”

Para Hermann, ficar sem dormir dois dias seguidos não é problema, é uma bem-vinda oportunidade da mente ficar ruminando pacificamente muitos dos horrores presenciados nas escaramuças das guerras de que participou: Aqui há outra espécie de inimigo, minha experiência beligerante, talvez, de nada sirva para enfrentá-lo. Censura-se por acreditar ter pensado uma bobagem. Está exercitando um velho truque de guerra: superestimar o inimigo, para fazer aumentar a adrenalina, o ódio e tudo o mais que a agressividade destrutiva, combustível inflamável do medo, possa trazer à tona, para melhor e mais fanaticamente enfrentá-lo.

Norton está simplesmente eufórico. Leu parte dos arquivos do coronel Churchward sobre o povo dos naacales. Sabe que nas lendas esotéricas desse povo, grandes serpentes de certa espécie, conhecem as propriedades da matéria primeira. Seus membros rastreavam o caminho até ela, em busca da pele que soltou-se da epiderme, para fazer um caldo, após adicionar algumas folhas de relva.

Aquela poderia ser a rainha das serpentes da lenda, a que absorve obrigatoriamente a substância primeva, azul celeste. Quem ingerir certas propriedades específicas de suas substâncias orgânicas (compostos específicos de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio), dota-se de força oculta prodigiosa, de clarividência. Consegue submeter a vontade de outras pessoas. Fica invulnerável a qualquer intenção de terceiros. Rossi também não ignora os arquivos naacales. Acredita agora que a Expedição está no caminho certo. Ele começa a intuir algumas das motivações do mercenário Norton e de sua Expedição.



NO MOSTEIRO
SUBTERRÂNEO
DA AMAZÔNIA

A atmosfera de grotão e certo odor de enxofre são incômodos naturais. Adriane comenta que por essa não esperava: “O inferno ter mesmo odor de enxofre”. Rossi sorri do comentário enquanto matuta sobre a grana preta com os gastos da expedição. Norton não economizou: um óculo desses não está por menos de setecentos dólares, e aqui estão cinco deles. Poderiam ser quatro, três ou um. Para se direcionar, basta uma pessoa na frente em fila indiana.

— Melhor assim.

Meia hora depois, uma tênue luminosidade azulada faz com que os óculos não mais sejam necessários. As rochas não estão mais tão escuras, como se mescladas de piche. Rossi lembra dos versos de advertência, extraídos das tabuletas naacales, citados na tese do estudante morto por combustão espontânea:

As negras paredes das rochas
Sombrias e profundas
Escondem remotos segredos
Ilhados por advertências, incautos
Não percebem a hora de voltar?
A fria e profunda tumba
Esvai toda esperança do peregrino.

Os músculos do jornalista se retraem, ouve-se um estrondo, a impressão de que em breve serão esmagados por pedras enormes, a rolarem na direção deles. Logo não estariam vivos para contar a história. A montanha treme, a tensão aumenta. Felizmente pára. O que quer que seja, parece ter encontrado um encaixe.

A sensação de que seriam esmagados, aumentou a velocidade dos batimentos cardíacos. Haja adrenalina. Passado o susto, fica nítida a sensação de que, mesmo se alguém quisesse voltar, em algum lugar a passagem estará obstruída.

— Esse túnel deve conduzir a alguma espécie de inferno sem saída, comenta Tauil.

— Do contrário, confirma Rossi, como asilar os praticantes de satanismo do III Reich?

Vassari e Hermann começam a dizer coisas para Norton. O chefe da expedição permanece monossilábico, concentrando-se na sequência, mais uma vez imprevisível, dos acontecimentos. Apesar da pressa pronunciada das palavras, Rossi reconhece algumas. Eles falam iídiche, língua judaica-alemã, com inclusões hebraico-eslavas, usadas por grupos de judeus, do século XIV aos dias de hoje.

Após quatro horas e meia aprofundando-se pelas incômodas reentrâncias do esôfago da caverna, a garganta alarga-se, o teto vai ficando mais distante. Até aqui não tiveram de usar o oxigênio dos pequenos cilindros. A Expedição está com sorte. A progressão não encontra empecilhos. É como se estivessem sendo esperados, e o caminho aberto, sem maiores obstáculos. Fazem uma parada e começam a trocar impressões e idéias, quase involuntariamente, após esticarem os músculos intercostais:

— Apesar das aparências, este é um lugar "high-tech". Talvez de necromancia como fonte de magia. Não há segurança de que saiamos vivos daqui. A advertência de Rossi causa apreensão em Adriane:

— Se eu quiser voltar...

— De livre e espontânea vontade, pode ir quando quiser, garante Norton. Leve um dos óculos.

— Não compreende? Não há caminho de volta. Olhe.Todos se voltam para trás buscando uma resposta para o desafio de Adriane. Não há nenhum indício de que o caminho que haviam percorrido pudesse outra vez ser encontrado. Dezenas de trilhas e aberturas de retorno conduzem a um mesmo lugar: uma espécie de platô semicircular, a mais de meia centena de metros abaixo. Um vale cor de argila pardacenta, entre o amarelo flanela e o castanho. Nele encontram-se algumas árvores agrupadas que para Rossi se parecem com Castanheiros-da-India e Baobás.

— Estranha esta gigantesca árvore, Baobá: é originária das savanas africanas. No tronco espesso há grande reserva de água, o mais grosso tronco do mundo.

— Saint Exupery a estigmatizou enquanto um símbolo antiestético da natureza, no livro “O Pequeno Príncipe”. Ninguém se importou com a observação pertinente de Tauil.

— O império de Rama/Abim, exclama Norton, admirando-se. Vassari fala algumas coisas em iídiche. Norton confirma:

— Sim. Contemporâneo da Atlântida. Adriane pergunta a Norton o que Vassari disse. Norton não se faz de rogado:

— Enquanto a Atlântida se destacava por uma tecnologia inventiva, os ramas indianos se notabilizavam por um inacreditável desenvolvimento mental. Aquelas árvores eram conhecidas por Amrit, delas se extraía o elixir da vida, a vitalidade estável do Singh.

— Que isto quer dizer, Adriane repete as palavras Amrit, Sing?

— Amrit, o desejado elixir da vida, Sing na língua Punjab, a coragem e os poderes do leão. Se um dia você for à India, e se dirigir ao Templo Dourado, vai ver nas lojas de souvenirs próximas a ele, centenas de posters com cenas de batalhas contra os muçulmanos, milhares de cabeças decepadas.

— Nossa, por que todo esse... Rossi demora um pouco a achar a palavra... Deslumbramento? Norton responde, sem esconder este tom entusiasta na voz:

— Platão escreveu: "A Atlântida afundou precisamente em 8. 500 a.C., depois de uma existência de milhares de anos". O império Rama, fundado pelos naacals, tinha sua capital em Deccan no ano 7. 000 a.C.... Vêem como a coisa toda faz sentido?

— Claro, é isso, Vassari também acaba por descobrir a pólvora. A estatueta de basalto do coronel Fawcett encontrada em terras antigamente habitadas pelos descendentes naacals... As inscrições em dialeto naacal. Estamos em território Atlante, quero dizer: lemuriano. Fawcett estava se dirigindo para este lugar. Os lemurianos o conduziram até aqui.

Hermann volta de uma incursão pelos arredores, diz ter encontrado uma possível via de acesso ao “planalto”, que, por um paradoxo geográfico, está lá embaixo. Encontram uma escada precária. Dela constam 215 furos na rocha, distanciados, uns dos outros, por sessenta centímetros. Muitos desses orifícios seguem, ora para um lado, ora para outro, na parede da rocha, sem que se atine o porquê, ou o para onde conduzem.

Hermann desce seguido de Vassari, Rossi, Adriane e Norton. A descida é arriscada e incômoda, após sentir com os dedos a borda larga dos orifícios, a profundidade dos mesmos fornece uma certa sensação de segurança às mãos. Uma vez pegas as bordas, há apoio suficiente para sustentarem-se nos pés e mãos.

Vassari adverte que existem escorpiões com cerca de 120 mm dentro de alguns orifícios. A tensão de uma possível ferroada, mesmo sabendo-se que há antídotos na bagagem para essa espécie amazônica, uma variante do escorpião-grande ("tytius cambridgei Pocok"), popularmente conhecida por saraiú venenoso. Adriane, ao tentar tanger com um tapa lateral um deles que se alojara no braço esquerdo, quase perde o equilíbrio. Grita de medo. Por muito pouco não despenca.

Consegue segurar-se outra vez com ambas as mãos. Recompondo-se, busca manter o ritmo cadenciado da descida. Faltam uns vinte e cinco metros. Pouco depois, para provar que perigos e artimanhas nunca vêm sozinhos, uma aranha nanduçu entra pela barra da bermuda de Hermann, para logo depois ser esmagada pela manopla de Vassari que a prende e amassa entre os dedos, por sobre o tecido da bermuda da quase vítima.

— Desta vez você escapou, expressa-se Vassari, meio arrastado, e pela primeira vez à vista de Adriane e Rossi, em portunhol. Após subir dois metros através dos buracos na parede da rocha, apóia-se, por momentos, na perna esquerda de Hermann com uma das mãos, para, com a outra, alcançar condições de manobra e esmagar o aracnídeo, após apalpá-lo sob a bermuda de Hermann.

Adriane, ao olhar para cima, vê a aranha descer pelas costas de Hermann e avisa, gesticulando muito com o braço esquerdo, repete: “aranha, aracnídeo”.

Norton ouve os apelos insistentes, olha para baixo, chama a atenção dos companheiros, e Vassari escala os orifícios de apoio, para cima, a tempo de intervir de modo fortuito, enquanto Adriane exclama olhando para Hermann:

— Este cara está fazendo hora extra na vida.

Aranhas amazônicas venenosas andam aos pares. Logo a outra aparece por sobre a mão destra de Norton. Ele bate a manopla contra a rocha, esmagando de forma compulsiva o artrópode peçonhento, não sem um grito, como se houvesse sido picado.

— Não foi nada. E resmunga alguns sons ininteligíveis.

A escalada às avessas prossegue, agora com muito mais atenção. As tensões aumentam. Nenhum deles, talvez, saiba exatamente o que lhes está reservado. Não são os mesmos.

Sentem uma espécie de solidariedade enganosa, sincrônica. Estão contaminados por essa dimensão que ultrapassa claramente os limites de suas limitadas percepções. Há pouco estavam superenergizados, agora, como que enfraquecidos, concentram-se em cada movimento, como se deles dependesse a tênue sequência de suas frágeis, muito frágeis, existências.

Chegam ao chão mais cansados do que era de se esperar. Todos, enquanto armam as barracas e exploram os arredores da nova paisagem, parecem sentir que esse lugar contamina. Há nele uma invisível e inesgotável chama de poder operante. Seus corpos sentem-se invadidos, devassados, postos a descoberto, por sequências de suaves sonoridades.

Elas trazem perspectivas perceptuais que conduzem ao sono.

Os integrantes da Expedição estão a fazer parte dos estímulos e motivações de sua estrutura. Não se pode estar próximo dessa energia, e de alguma forma não ser parte dela. Já agora suas aspirações se fazem integrantes da ressonância magnética da força do lugar.

O cansaço, a necessidade de relaxar, dormir. Talvez seus corpos se adaptem às incessantes ondas do fluxo magnético do local, sem provocar essa sensação de estafa, estresse, esgotamento. A diversidade da excentricidade da experiência provoca um certo desequilíbrio, uma sensação de pertinente estranheza.

Os membros da Expedição Norton encontram-se absorvidos por um processo comunicativo subliminar. Estão sendo assimilados por essa veemente intensidade que ao mesmo tempo esgota e estimula os sentidos. Sentem-se solicitados a participar de uma aprendizagem perceptual. Essa aprendizagem permite uma superação qualitativa de seus conteúdos culturais, em curto prazo. O que virá depois, só Deus sabe. Que Ele tenha piedade e possa poupar-nos do pior, subjetiva Rossi olhando para Adriane.

O que quer que seja que os absorve e sujeita a esta exposição sumária, deve ser equivalente a um computador eletrônico emocional, blasfemo e sem preconceitos. É como se estivesse analisando o desenvolvimento de cada segmento delineado no código genético de cada um deles. Cada uma dessas vibrações intrusas identifica-se com uma variante de seu próprio projeto de desenvolvimento biológico. Reelaboram e reescrevem, redefinem os critérios de mérito de cada um e todos eles, como se tivessem, por momentos, o poder de investigar e mudar segmentos de seus códigos genéticos.

A situação, longe de ser cômoda, porque incontrolável, produz, ao mesmo tempo, evasão da consciência e uma falsa onipotência, desde que os sentidos mergulham numa espécie de zombaria interior das complexidades, dos paradoxos que os manipulam, completa e informalmente, como se fossem meros seres cibernéticos. Sentem suas almas sob comando, comunicação e controle dessa força estranha. Tentam manter-se em vigília. Gradativamente, apagam, desmaiam. Dormem. Sonham.

Uma frequência, ora sincrônica, ora diacrônica, paradoxal, inespecífica, domina as vontades. Rossi consegue manter-se desperto por mais tempo. Ao observar o sono inquieto de Tauil, lembra de uma frase de Fidelino de Figueiredo, quando da relação entre dois eventos sincrônicos: “Toda gente sabe que os sentidos se extinguem sem sincronismo com a extinção da consciência”. Desconhece o porquê da presença da citação da frase de memória. Está aqui e ao mesmo tempo no passado, lendo na Biblioteca Mário de Andrade o livro Entre Dois Universos.

Através da parede lateral semitransparente da barraca, sem ânimo para levantar-se, mal consegue manter as pálpebras entreabertas, Rossi vê semblantes indistintos, vultos e sombras, muitos espaços obscurecidos em volta do acampamento. Movimentam-se ao redor das árvores, dos sonhos. Muitos sonhos. Mais que sonhos: viagens mágicas, telúricas, astrais.

Tauil imagina, ainda não totalmente distante de uma última solicitação do estado de vigília, se será capaz de selecionar, interpretar, lembrar, quando voltar a estar desperta, desses códigos inconscientes nos quais submerge, como se provenientes de potenciais universais de uma linguagem onírica inata, muitíssima antiga. A tradução, a chave para entrar nos portais dos significados mais ocultos dos sonhos, raiz da criação universal, em qualquer lugar do cosmo. Ela acredita que o sonho não é mais do que um treino, uma revelação precisa de como enfrentar os problemas que surgem na vigília. O sonho não é um se desligar do mundo, ao contrário, é uma advertência dos riscos a que está sujeito quem dele se desliga.

Uma linguagem de arquétipo para arquétipo, associando-se ao sistema neural tipo Internet, nivelando, horizontalizando, padronizando as percepções. De alguma forma cada um dos membros da Expedição Norton volta a ser criança e adolescente, e a poder escolher uma alternativa para seu desenvolvimento, com todo o suposto saber de sua cultura.

De alguma forma aprendem consigo mesmos a mágica da autosuperação. Apresenta-se a oportunidade que todo ser humano gostaria de ter: poder escolher o impulso vital de suas vidas em direção a um lugar onde possam exercer suas virtualidades.



“FÓTONOVELA”

No pátio do colégio Dante Alighieri, em São Paulo, acontece de um grupo de alunos, entre oito e doze anos, está comentando em português audível, cenas de sequências do filme de ontem do Canal 10.

O filme “full-time” de hoje, conta a história de um migrante do interior de Minas que chega a São Paulo com diploma de Economia, não consegue emprego. Sem trabalho, começa a frequentar as boates gays do centro da cidade. Migra de caso em caso, passando a ganhar a subsistência na errância e na marginalidade.

Atingido por um balaço no peito num tiroteio com a polícia paulistana, é conduzido gravemente ferido ao pronto socorro hospitalar. Convalesce sob vigilância armada. É transferido para uma cela coletiva num superlotado presídio modelo Carandyroom. Recupera-se.

Na falta de tu, vai tu mesmo: faz sexo com travecos. Consegue armar uma fuga com mais dois presos, após acertar pagar trinta e cinco mil verdinhas às autoridades penitenciárias que facilitam a condição de escape. Na rua outra vez, refaz contatos, torna-se sócio de uma boate no bairro do Anhangabaú, centro da capital São Paulo, com dois policiais federais, que garantem o fluxo de coca apreendida, entre seus frequentadores.

Descobre ser hospedeiro de uma das variantes de mutação do vírus H3V, versão PUF. Esse desdobramento mutante do vírus tem por sintoma externo a presença de pequenos retângulos cor preta petróleo, visíveis na superfície da pele dos infectados. A infecção contraída pós-período penitenciário, ou já teria saído dessa para a pior.

A denominação abreviada do vírus popularizou-se através de piadas de mal gosto. Há os que dizem ter ele estas iniciais, PUF, porque a pessoa portadora, ao descobrir-se infectada, demora no máximo dezoito meses para seguir rumo aos sete palmos de chão: é “plaft-PUF”.

Outra anedota afirma que o letal PUF é anagrama do nome de ex-prefeito da capital paulista. Sua política de saúde, segundo a opinião de comentaristas e cientistas políticos, sucateou hospitais e mercantilizou ainda mais a medicina do sistema municipal de saúde da capital, aumentando a corrupção em todos os setores da administração municipal, de modo devastador. Outros garantem que a atuação dele e de seu "aspone" e sucessor, no campo da educação, se resumiu a diminuir as verbas já precárias no setor.

Rodrigo é o nome do marginal do filme. Ele costuma cobrir as manchas escuras da pele com a ajuda de um cabeleireiro e maquiador dos Jardins, conhecido por Nando`s, do qual é sócio no salão homônimo do nome do bairro. O lugar, muito prestigiado por vaidosos consumidores de coca, conta com a proteção dos federais e das ramificações menores da hierarquia policial.

A versão MAC do H3V difere da versão PUF: Ao invés de se transformarem em bestas raivosas e truculentas, os infestados pelo MAC ficam delicados e submissos.

O hospedeiro trata de camuflar as micro manchas alaranjadas que brilham na pele com a luminosidade de uma luzinha de DVDnew de micro computador. As manchas parecem provenientes de algum tipo de radioatividade, daí serem conhecidas também por fótons laranjas.

Um escritor, cronista e resenhista de conhecida publicação de variedades, que hospeda atrizes e atores de tv, quando convidados especiais, numa ilha chic, homônima do nome da revista, criou o termo Fótonovela para designar a novela do horário nobre, que registra flagrantes da vida amorosa de uma modelo infectada.

A atitude normal de qualquer hospedeiro do PUF ou do MAC, é camuflar os retângulos preto petróleo e os alaranjados, para poder trabalhar e circular em ambientes públicos, enquanto não bate as botas. A atrocidade química do vírus, Rodrigo deseja partilhar com a maior quantidade possível de parceiras e parceiros sexuais, nos programas em motéis, com agressões sádicas que fariam do “santo marquês” um amante amador.

Nando`s, sob efeito da "coca" de uma carreirinha particularmente bem servida de uma droga surpreendentemente impura, mostra-se excessivamente afetado. Está a lavar, secar e pentear a cabeleira de Rodrigo, num dos nichos do salão principal cercado de outros clientes. Ele conta uma história trágica, numa tonalidade que a faz parecer banal, sem se dá conta de que o sócio e cliente, Rodrigo, em nada se mostra interessado nela:

— Sabe o Narciso? Aquele da Ferrari. Nove meses depois de aparecer aqui com aquelas manchas pra mim não eram laranja. Era amarela aquela cor, o cara secou, parecia uma múmia sem as gazes. Não sei, essa gente, querido, é cheia dos exageros. Soube que quando foram pegar ele do colchão para vestir o paletó de madeira, o corpo virou poeira, na hora. Cinzas, queridinho, cinzas.

A irritação de Rodrigo com a estória não está sendo percebida. Nando`s deixa sangrar, sem notar a ira do outro:

— Ah, devia estar lá, meu bem, queria ver o corpo da bicha se desfazendo na frente de meus olhos. Isso é muito melhor do que as fanfarras dos programas do Ratito, da Galeguinha, do Buldogão, das Rebes, dos Grugrus ou das Anarias Vesgas.

— Pára com essa estória de merda, tá tirando uma com minha cara? Vai buscar um Logan`s pra mim, com gelo, muito gelo, por favor. Agora. Vê se se liga, malamada.

— Calminha, bem, está com tanta sede assim?

Nando`s se afasta, Rodrigo avalia parcimoniosamente o fio da navalha. Sim, está deveras irritado. Impulsivo, pega a lâmina com a mão destra e talha, num corte profundo e largo, da parte superior esquerda à inferior direita da outra mão. O vermelho salta, o corte atinge os ossos, e dois ou três prolongamentos articulados das fibras nervosas se abrem. Sorri, o olhar meio sobre o desvairado. Mazoquistamente corta também a pele em meio ao dedo polegar. Sangue jorrando, acha bonita a cor, a necessidade de uma sensação mórbida diferente.

Rodrigo envolve a mão lesada numa toalha, e disfarça ao cruzar os braços à espera de Nando`s. Ao chegar com o uísque, todo serelepe, o cabeleireiro é surpreendido com o dedão indicador de Rodrigo lambuzado de sangue, resvalando boca adentro. Enquanto com os dedos da mão direita força as mandíbulas da vítima a se abrirem mais, apertando-lhe a maxila inferior.

O sabor salmoura do plasma sanguíneo, frio e travoso, provoca exaustivo e exasperado esforço na tentativa de tirar o dedão do furioso antagonista, mexendo entredentes, entrebochechas, em direção à goela. Fere-lhe o céu da boca. A agressão acontece de rompante, todas as contorções do mestre-sala do salão, no sentido de se livrar da contaminação, resultam em vão. O sangue pinga dos dedos da mão esquerda de Rodrigo, abundante.

Usuário contumaz de cocaína, Rodrigo está em pleno surto psicótico. Não vai parar de torturar o cabeleireiro, ou as pessoas que se encontram no salão. A coca, considerada “a droga do mal” provoca a sensação de onipotência, de autoridade e soberania absoluta sobre os que cercam aquele que se tornou escravo do uso, sobre seus supostos subalternos. Seu ódio assoberba-se por saber que está infectado, entrando na fase terminal da infecção.

— Ai, por favor, pára com isso.

— Calma bicha. Mais um pouquinho, santa.

— Você pára, alguém chame a polícia. Ele vai me matar.
Ao tirar a mão direita da pressão mandibular, o agressor agarra pelos cabelos e puxa para trás o pescoço de Nando`s, enquanto provoca:

— Por que você não morde e arranca um pedaço do meu dedo, cuzão?

Onomatopéico, Nando`s até que tenta, sob o grito raivoso de Rodrigo, mas os dentes parecem não ter força suficiente para impedir o vírus vermelho venoso do sangue empestado pelo PUF de Rodrigo, de escorrer pelos brônquios. Aspirado para os pulmões e o cérebro, as gotas vermelhas são transpiradas pelas narinas afogueadas, a unha do dedo da selvagem mão esquerda da escuridão, rasga as gengivas, arranha as bochechas do indefeso sócio do salão de beleza.

Os demais cabeleireiros, manicuras, maquiadores e clientes, ficam assistindo assustados, temerosos, deliciando-se intimamente, alguns, com a morbidez da cena de violência e covardia. Os seguranças de Rodrigo na porta.

Indiretamente são cúmplices do agressor, desde que nada fazem, exceto observar a agonia do agredido. Rodrigo ri às gargalhadas ao ouvir os sons guturais de Nando`s, ao vê que ele suga seu dedo com os músculos da face, da boca, se contraindo involuntariamente, até desmaiar, sob murros do agressor.

Rodrigo fixa pelos espelhos as faces conformadas, passivas, amedrontadas e indagativas das mocinhas e dos demais clientes. Cobre toda a extensão visível do salão com olhar provocativo. As balzaqueanas, os neo-pós-yuppies, as senhoras casadas pondo-se em dias com as fofocas das revistas semanais, as candinhas habituais e quejandas. Após avaliar a impressão que causou, exclama, sonoramente desafiante:

— Bom-bom-bom-chi-bom-bom-bom... Está na hora de nos divertirmos um pouco. Avalia qual será a próxima vítima: as pessoas desviam o olhar, baixam as cabeças, tremem de expectativa. O medo coletivo pode ser facilmente sentido, alastrando-se invisivelmente, mente a mente, corpo a corpo. Paralisa os membros ansiosos, tencionados. Uma cliente que lia um exemplar da revista Caras, berra, ao vê-lo aproximar-se do secador embaixo do qual está a cabeça da filha.

— Vejam, diz Rodrigo pegando a jovem pelos cabelos, puxando-os de dentro do tubo secador, fazendo voar com os dedos, os bobs cuidadosamente presos pelos grampos, pingos rútilos, saltam dos dedos.

— Olhem que triunfo da cultura e da civilização: essa pavoa, essa perua, se borrou. Sujou pra filhinha, e agora? A mamãe não vem socorrê-la? Qual sua graça Cinderela?

A garota não responde. Ele insiste, fazendo-a gemer ao sentir o puxão violento no rabo de cavalo.

— Cristina. Aiaiaiai, Teresa Cristina, meu nome é Cristina, pelo amor de Deus. Solta. Larga. Acudam.

— Chamaram a polícia? Estão pensando besteira. Um celular toca, mas seu portador não atende. Pensando... Não, que desse mal, pensar, ninguém aqui padece. Mas todas querem se parecer bonitinhas, bonitinhas, mas ordinárias, não é mamãezinha? A filhinha está se arrumando pra passar o fim de semana com qual dos traficantes dessa zona?

A inúteen olha fixo para baixo, não quer que vejam o medo em seus olhos apreensivos. O animal aproxima-se, derruba a concha do secador, e a ameaça esticando o dedão, a expressão furiosa, alucinada, a mão pingando sangue.

— Garota, você precisa mesmo é desse vermelho nos lábios. A lividez facial da jovem é substituída por uma tonalidade carmin, quando Rodrigo bate várias vezes com os prolongamentos articulados da mão a sangrar, no rosto da mocinha. O dedão polegar volta a verter sangue, em movimento decidido, penetra os lábios da jovem pelo canto direito da boca, ao lado dos dentes travados.

O sangue lambuza a parte interna da gengiva pelo lado direito. A mãe sai gritando por socorro, “alguém me ajude”. Mas é como se os olhos não vissem nem os ouvidos escutassem. A confusão se estabelece, os clientes correm e gritam atropelando-se escada abaixo. A moça morde com força o dedão de Rodrigo. Desta vez ele sente dor e berra, puxando para fora o polegar:

— Filha da puta. Gostei disso! Potranquinha, geniosa hein ? Vamos lá, reage, esperneia. Como se estivesse a representar alguma peça de histrião de rua, ele repete, ao som de uma musiquinha popular muito requisitada nas paradas de sucesso: “Bom-bom-bom, shiiiiiiiii, bom, bom, bom...”. Bate em mim, me excita mais, vem. A garota debate-se, enquanto o short é puxado abaixo dos joelhos.

— Assim, assim, cadelinha, isso, esperneia mais, anjo do papai, esperneia mais. Ele acerta dois fortes tapas nas faces, ela pára de reagir, ele a vira. Coincidentemente ouve-se nas caixas de sons, o refrão de uma musiquinha antigamente popular: “Fazer amor de madrugada... Amor com jeito de virada... Fazer amor de madrugada... ”

Rodrigo abraça-lhe a cintura com um braço, com o outro puxa a calcinha para baixo, o pênis vibra fora da braguilha após baixado o zip, rasga a malha da virilha às coxas. A reação da moça acaba, após levar mais dois tapas que a convencem a ficar quieta, à mercê do marginal. Ele penetra-lhe o ânus, não sem antes lubrificar a entrada com o sangue que volta a jorrar abundante dos talhos no dedo e na palma da mão esquerda.

Sexta-feira o salão Nando`s costuma estar apinhado de gente ajeitando-se para o fim de semana. As pessoas que, aflitas, desceram a escada, não conseguem sair. O interruptor interno está com defeito, nenhuma delas quer se arriscar a subir a escada para apertar o botão externo. As clientes estão apavoradas com a possibilidade de serem infectadas. Amontoam-se no corredor/escada, saída/entrada do salão, sem dele conseguirem sair.

Consumado o estupro, Rodrigo agarra com a manopla direita o pescoço de uma atriz coadjuvante da novela A Revelação, relativo “sucesso” do horário nobre da Globo, apesar dos baixos índices de audiência, em decorrência da misteriosa concorrência do Canal 10 com seus filmes “virtuais”.

Ele pressiona a cabeça da mulher na parede decorada com o pôster do roqueiro da hora. O braço da guitarra projeta-se, virtualmente, para frente e para cima. Na foto, o músico abre a bocarra, donde sobressaem-se pronunciados caninos, como se a abocanhar os fãs do show ao vivo do Hollywood Rock. A parte posterior da cabeça dela aciona sem querer o interruptor que abre a lingueta eletrônica da fechadura da porta de entrada/saída do salão. Ao ouvirem o estalo do fecho, as pessoas correm para fora do salão de beleza.

Ao invés de apavorar-se, a atriz desafia o olhar do agressor encarando-o. A parte interna da mão, do pulso, do braço, tudo lambuzado de sangue. A mão ferida pressiona o queixo da mulher em movimento pendular. A pressão do polegar remove a maquiagem que encobria o retângulo alaranjado dos infectados pelo MAC. A tatuagem superposta à mancha. O casal beija-se apaixonadamente.

O filme “full-time” prossegue mostrando a sequência virulenta da vida pregressa do marginal Rodrigo. Quando a polícia chega ao lugar, ele está quase deserto. A ambulância estaciona para buscar os feridos e lesionados graves da ocorrência. A seguir sai do local com a sirene ligada, levando Nando, a garota estuprada e duas mulheres feridas, e outra desmaiada.

Rodrigo havia fugido, depois de toda a condição humilhante à qual submergiu os frequentadores do salão de beleza.

Simultaneamente a esses trágicos acontecimentos, no pátio do Dante, os seguranças gravam a conversa dos mutantes:

1ª Criança: “ELES” fazem de conta não saber das coisas que estão acontecendo iguais: ficção e realidade.

2ª Criança: Dia seguinte os jornais noticiam, na vida real, os acontecimentos do canal 10. Ao fazer de conta que não sabem, eles realmente ignoram.

3ª Criança: A dramatização do fato precede o acontecer do mesmo. Os filmes não têm direção, nem produção por que são filmagens antecipadas do que vai ser noticiado amanhã. Os filmes condicionam a realidade.

4ª Criança: O horror de Rama, horror e medo, a raiva e agressão: todos produzem e dirigem a sociedade ao mesmo tempo. E agem como se ignorassem as consequências de seus atos.

10ª Criança: Eles querem ignorar que sabem serem eles mesmos, os agentes do que está acontecendo, para não se responsabilizarem pelas terríveis consequências.

5ª Criança: Estão sabendo de tudo todo tempo, mas ignocratas estão no mundo apenas para fazer dinheiro.

12ª Criança: A fome de Rama age através deles. A fome de Rama/Abim são “ELES”. Tudo que acontece na telinha está nas ruas. As ruas e a telinha da tv se realimentam de seus eventos.

3ª Criança: A religião de Rama/Abim, a gordalhona sedutora, mãe das sociedades matriarcais do paleolítico... Tudo hoje é esquecimento, metáfora da ansiedade pré-histórica. O paraíso perdido da proto-história.

9ª Criança: O teatro de Rama, quanto mais bem intencionado mais à vontade neste inferno de caos e indiferença.

6ª Criança: Estamos falando na linguagem antiga, “ELES” estão gravantoommm nossa crononnvnss.
11ª Criança: As infecções de Rama/Abim, os vírus, criaçinconsxenss lethsssvhssshshsh.

8ª Criança: A ilusão persecutória de Rama/Abim nunshhca, bahissssissshissssss, ommmmmmgsssh.

7ª Criança: O futurtsh deshiss Rama não vai existrssssrr, shonnnnnnssssssss, ahhhhhummmm.

4ª Criança: Anmnsssdzisssssssssanssss, glughshuns, zooooossss, klnhsommms.

12ª Criança: Ommmmhissunnzshz.

6ª Criança: Fwnnsshpronnmxwssslhk.

10ª Criança: Garhinssnpentecuslenssnkeniclans.



O UNIVERSO
PARALELO
DA FÉ


Quando Hélio e família chegam à Igreja para outro culto dominical, o discurso do pastor Antunes está em andamento. Carla nota uma semelhança entre as palavras das crianças do Dante publicadas pela imprensa e o sentido da fala do religioso:

— Que homem, em confronto com Deus, poderia parecer justo? Ora, Ele é bondade e perdão, mas destruiu cidades inteiras, a exemplo de Sodoma e Gomorra. Vai acontecer um evento de fogo com A Grande Maçã, a Sodoma, e a Grande São Paulo, a Gomorra deste milênio? Como a luta contra a barbárie será travada e ganha? Para Deus nada é impossível. Sabe-se que contra o domínio da ignorância e do poder que nela investe, até os deuses lutam em vão. Mas não Deus.

— Fazemos todos parte de uma sociedade que valoriza excessivamente jogadores de futebol, basquete, pugilistas, produtores de violência virtual e traficantes de drogas, banqueiros lavadores de dinheiro do crime organizado. Enquanto pessoas que produzem conhecimento e cultura, sobrevivem com recursos mínimos. O reino da estupidez e da intolerância está estabelecido. “O Reich dos Mil Banqueiros” exerce a dominação social desse holocausto.

— As pessoas estão apaixonadas pela dissimulação. A velha cultura está morrendo em todos os lugares, e as novas influências estão envolvidas numa malha feral, numa geléia do mal, nas mãos de uma elite que investe em tudo que é fantasioso, aparente, sem transcendência: nas plumas e paetês do mercado. A renovação da cultura tornou-se uma ameaça. A ordem do dia é o vazio das idéias, tornar-se culto é visto pelas autoridades como ameaça e subversão à desordem pública.

— Faliu o sistema educacional que, por sua vez, serve apenas para fazer as pessoas acumularem conhecimento com o objetivo restrito e único, da aquisição de um diploma para exercer uma profissão de submissão. O diploma, esse pedaço de papel tão cobiçado, não é mais do que o principal inimigo da cultura, uma espécie de atestado de ignorância, real e virtual. Assalariados são escravos.

A Assembléia está ansiosa por saber onde o pastor Antunes quer chegar.

— Rama/Abim domina, Rama/Abim fascina. A tecnologia de Rama/Abim satura as mentes de informações, hipertexto, hipermídia, ciberespaço, multimídia, hackers, internautas e infovias. Isto é o progresso da globalização nas sociedades pós-industriais. Mas onde está o progresso do caráter, da alma, da consciência humanista universal, da espiritualidade?

— Haverá dor e sofrimento quando as profecias para este milênio se cumprirem? Não mais que agora. Sua dor globalizada já é suficientemente insuportável. O mundo está cheio de pessoas diplomadas em dor, de especialistas microcultíssimos e macroignorantes, que supervalorizam a alta costura, e esnobam a cultura. Não, não há sadismo em Deus. Em compensação, as autoridades, incansáveis em render homenagens à ideologia da grande porcaria do consumo, amaldiçoarão seus inúteis poderes inúteens.

— Os sinais estão presentes em cada um de nossos filhos: Não há mais paciência para a aprendizagem. Não há mais lugar para os mandamentos, para Deus, no coração da juventude. A semente da fraternidade há muito foi devorada pela serpente do consumismo, da cobiça e da ganância. Ter carro do ano, ter carro importado, ter tv a cabo, ter os cosméticos da hora, consumir, ter, consumir mais, imagens de tv. Não há mais lugar para a herança prometida para os eleitos. Não há mais eleitos.

— O homem está privado de dignidade, não há mais condições de dialogar com Deus. A descendência do homem não ama a Deus, apenas o teme. A pátria dos santuários no coração do homem inexiste. Foi substituída pela pátria dos sanduíches. O santuário do homem está nos CD`s e discos rígidos dos computadores, nos templos dos hambúrgueres, das batatas fritas, dos refrigerantes com tampinhas premiadas. A criança é o solo fértil para a corrupção das vontades, da raiva, do medo, da agressão.

— E se não houver mais crianças? Se não houver mais amanhã? Sem descendência, não haverá solo fértil para os desdobramentos da vida comunitária, sob o peso da violência, das drogas, do mundo real e virtual da tvvisão. A distância entre gerações de pais e filhos, estes últimos criados na intimidade dos programas informatizados, não é apenas de gerações, mas de séculos.

— Os que têm medo da dor, do castigo, fiquem tranquilos. Tenham fé. Que mais lhes resta ? Não haverá fome, calamidades, ou fins de mundo produzidos para os shows de tv. A culpa e a dor terão outras formas. Em pouco mais de um século, não haverá nada para envergonhar o Criador neste planeta, simplesmente porque o homem terá sumido completamente da face da Terra. Tirado, enquanto raça, das garras de Lúcifer. A raça humana não mais será coaptada pelo “Reich dos Mil Anos”. Os membros da raça humana não mais terão seus ossos adaptados à intencionalidade social globalizada pelo consumismo. O senhor Mercado é o estalinismo dos dias de hoje.

“Que estará ele querendo dizer com estas coisas”, pergunta-se a maioria dos presentes membros da Igreja do Salvador dos Últimos Dias.

— O homem não mais se alimentará da vidência de Rama/Abim, nem de sua violência. Não haverá caminhos para uma raça que tem uma certa memória dos ensinamentos do Salvador, mas nada possui, na conduta, que lembre seus ensinamentos.

— Por que nenhum dos presentes presta testemunho ? Porque nenhuma de nossas vidas está isenta de crimes contra nossas crianças, erros quanto à escolha de nossos supostos representantes, erros de avaliação do sofrimento que causamos aos outros. Todos os dias erramos mais um pouco. Como se a capacidade que temos de errar infinitamente, nos tornasse, por algum fantástico milagre dos milagres, imunes às consequências de nossos múltiplos karmas.

— O fim da ilusão chegou. Se você não é a solução, então também faz parte do problema. Quando os atos de nossas vidas não servem de Testemunho, servem para a alegria e o júbilo dos perversos.

— Quem de vocês não foi chamado a votar nos candidatos/vírus? Que depois de eleitos investem numa sociedade deletéria ? Quem de vocês não costuma gostar de assistir os programas dos testas-de-ferro do consumismo? Quem de vocês não delegou a uma suposta autoridade, pensar por vocês na hora de votar?

— O conhecimento da ciência dos astrônomos é grande, mas é certo que eles não terão como explicar se Deus disser ao sol: “Não nasce”, ele não nascerá. Se Deus disser à mulher: “Não terás mais filhos”. Ela não mais os parirá. Assim está escrito. O Reich de Rama/Abim não mais terá descendência.

— Descendência para consumir as belezas cancerígenas da terra de Marlboro, os raros prazeres dos neoplasmas malignos do Carlton. Cada um de vocês é uma estrela. Cada um de vocês traz possibilidades de realização e felicidade. Cada um de vocês é um cântico ao Senhor, um alento que conduz o homem através das trevas. Cada estrela, é objeto e objetivo da cobiça de Satanás, líder dos líderes do “Reich dos Mil Anos”.

Na inconsciência dos fiéis, somam-se muitos ruídos anímicos de aprovação às palavras de Antunes.

— Sem descendência física, sem corpos para dominar, a perversidade de Satã não poderá se apossar de nenhum dos filhos de seus filhos. O Filho do Homem não mais deseja ser negado 70 vezes 7 vezes, em cada dia da vida de cada um de vocês e de seus descendentes.

— Breve não haverá ninguém “coaptado” pela vaidade, pela ganância, pela injustiça, pelas compulsões globalizadas do consumo pelo consumo. O limite dos dias é chegado. Vejam o que o homem fez com o livre arbítrio: abundância para poucos, corrupção para todos, miséria para a maioria. Multiplicidade infinita para as formas de perversão e abominação de seus corpos.

— Esta não é a Terra da fraternidade e do perdão. É a Terra da violência, da miséria, do sofrimento, da culpa, do ódio, dos desvios, das perversões, da ansiedade e do medo. “Por que o homem tão cheio de recursos tem de agir como o cavalo e o mulo que não têm entendimento” ?
Se todas estas coisas estivessem sendo ditas pelo pastor Antunes sem que a realidade dos fatos confirmasse seu discurso, seriam consideradas por todos, nada mais que “jeremiadas”.

A Bíblia de Sheila está aberta nos Salmos, ela lê os versículos do capítulo 32:

"Ele ama a misericórdia e a Justiça
A Terra está cheia da misericórdia do Senhor
Pela palavra Dele se firmaram os céus
E pelo espírito de sua boca (formou-se) todo o seu exército
Ele junta como num odre as águas do mar
Toda a Terra tema o Senhor
E todos os que habitam o universo tremam diante Dele
O Senhor dissipa os projetos das nações
Reprova os intentos dos povos
E inutiliza os planos dos príncipes."

Ela se pergunta se as coisas terríveis que estão sendo ditas pelo pastor Antunes não são meros delírios de um homem religioso querendo aparecer na multidão de pastores anônimos. Não estará querendo apenas se destacar das dezenas de segmentos religiosos em luta pela arregimentação de fiéis: protestantes pentecostais, judeus, católicos, luteranos, calvinistas, anglicanos e evangelistas.

Pergunta-se ainda se uma simples mulher, sexo menor em todos os textos sagrados da cultura patriarcal judaico-cristã, maometana, e de outras, pode entender os desígnios do Senhor. Tão poderoso que pode juntar num odre as águas dos oceanos, e seus abismos, em simples reservatórios. Quem é capaz de feitos tão fantásticos, deve ter razões divinas, que sua pobre razão humana feminina desconhece. Ele, que reprova os intentos dos povos e inutiliza o plano dos príncipes, não poderia, com facilidade, fazer uma coisa bem menor, ter piedade dela? De sua descendência?

Como se tivesse ouvido as considerações silenciosas de Sheila, Pastor Antunes afirma a misericórdia de Cristo quando curou os mais variados doentes e até mesmo ressuscitou pessoas que haviam morrido.

— Se lhes perguntassem se desejam a vinda do Verbo, todos vocês responderiam:

— Sim.

— Claro.

— Com certeza.

— Mas que pergunta.

— De coração.

— É tudo que quero.

— Sempre.

— Não mereço esta graça.

— Seria uma emoção chocante.

— Massa, mano, "um puta show".

— É assim que vocês pensam a volta de Cristo. Um show de rock ou espetáculo equivalente. Talvez seja por isto que 100% de vocês praticam diariamente toda espécie de conduta e afazeres a ela contrários. Vocês praticam a piedade ? Não. Claro que não. Mas na semignorância da palavra de Deus, esquecem que não podem praticar a piedade enquanto praticam atos contrários a ela:

— “Adivinhação, Idolatria, Magia, Sacrilégio, Simonia, Superstição, Tentação de Deus, Blasfêmia, Perjúrio, Festa”. Quantos desses supostos pastores usam as coisas sagradas como tráfico de conferir o Espírito Santo? Quantos de vocês usam o Espírito Santo enquanto objeto para tráfico de influências?

— A Metrópole São Paulo tem piedade de seus emigrantes nortenordestinos? Há misericórdia na previdência e saúde para seus idosos? Há piedade para as crianças de rua que são assassinadas na flor da idade, enquanto a maioria dos culpados está livre e impune ? Há piedade e justiça para os que têm fome e sede de Justiça?

— São palavras do Evangelho: “Se não vos receberem nem ouvirem vossas palavras, ao sair daquela casa ou cidade, sacudi o pó dos vossos pés. Em verdade vos digo, será menos punida no dia do juízo a terra de Sodoma e Gomorra, do que aquela cidade.”

Hélio e família saem da Igreja, apesar das culpas impostas, sentindo-se relativamente confortáveis. Os sermões do pastor Antunes mantêm uma certa intensidade, um certo mistério, um certo tesão pela ansiedade de conhecimento do destino último do homem. Todos se sentem às vésperas de uma revelação, de um acontecimento ainda mais radical, que modificará o futuro imediato da raça humana.

A dinâmica de seus pensamentos concentra-se nos muitos dos ditos “sinais” que estão a acontecer: crianças zunindo numa linguagem incompreensível. Eventos públicos de indizível e inexplicável violência; um canal de tv sem finalidades lucrativas; combustão humana espontânea, levitações. A perplexidade assustada é o estado das coisas, das relações, dos sentimentos e emoções entre as pessoas. A psicologia coletiva dessa cidade satanizada ferve: Sampa 40º, alguém precisa fazer este filme.

Apesar de todos esses fenômenos mencionados em seus discursos, cada vez mais pessoas se interessam em ouvi-lo. É da espécie de orador, a exemplo do Padre Antônio Vieira, que magnetiza a assembléia pelo conhecimento dos textos sagrados, pela lógica dedutiva demonstrativa, atualizada, pelo dualismo metafísico da oratória.

Pastores de outras igrejas, enciumados com o sucesso dos discursos dos membros do corpo eclesiástico da Igreja do Salvador dos Últimos Dias, denunciam aos poderes constituídos a falta de referências bíblicas pertinentes aos discursos dos sacerdotes dessa Igreja. Pretendem queimar, na inquisição, como se fossem blasfêmias, os dois principais significados da oratória de Antunes: A satanização das mentalidades pelos administradores da máquina de fomentar sonhos da propaganda tvvisiva, e a suposta infertilidade terminal das mulheres.


“AMBLOSE DISFORME”:
FIM DO
HOMO SAPIENS/DEMENS
NO PLANETA TERRA

A imprensa divulga as opiniões através de debates. Teses são redigidas nos cursos da área de Humanas, cronistas exercitam efeitos estilísticos da escrita. No mundo radiofônico e tvvisivo, são promovidos programas de entrevistas. Num desses debates, ao vivo, via satélite, a produção vespertina da conhecida apresentadora de tv, Silviana De Bande, entra no ar:

O Programa Silviana De Bande causa enorme comoção. Seus trechos mais dramáticos são comentados nos bares e eventos artísticos da cidade. A evidência de que a continuidade da raça humana neste planeta está ameaçada por novas e letais modalidades viróticas, nunca esteve tão presente através das opiniões de profissionais, com currículos e serviços prestados às organizações de saúde internacionais, com crédito em todo o mundo. Silviana começa com uma pergunta provocativa, após delimitar o alcance dos assuntos na pauta do debate:

— Sabemos das coisas fora do comum que estão acontecendo. Todos querem saber mais, informarem-se melhor. Todas essas coisas incríveis são sintomas, um sinal de que as profecias estão se cumprindo ? Combustão humana espontânea, levitações, crianças que falam numa velocidade que só elas entendem, a tv fantasma do canal 10, as batalhas entre forças invisíveis, no trânsito. Todas estas coisas têm uma causa única?

Silviana, após fazer algumas observações à platéia, chama a atenção da produção do programa para alguns detalhes de última hora:

— O programa de hoje é para debater um, apenas um desses fenômenos estranhos. Uma coisa por vez, dentre todos esses incríveis eventos que têm mudado a vida das pessoas. Hoje estamos aqui para falar apenas da "amblose disforme", provocada por vírus, que ameaça a continuidade da raça humana neste planeta. Se as mulheres não mais podem ter filhos... A vida humana será extinta da Terra ? Por que continuar trabalhando, pastor Antunes ?

— “Porque o homem foi feito para o trabalho como o pássaro para voar”, responde Antunes citando as Escrituras.
— As mulheres estão a ficar incapacitadas de gerar descendência, como?, se minha mulher está grávida, e outras mulheres de outros pastores também estão ? Isto não é bobagem ? Protesta um pastor pentecostal.

Foram necessários nove anos e sete meses, para que estudos da Organização Mundial de Saúde confirmassem essa trágica realidade, afinal divulgada pelas agências internacionais. Esses estudos disseminaram especulações e hipóteses entre grupos de médicos e cientistas.

Por que uma quantidade cada vez maior de mulheres, têm suas entranhas devassadas por pesquisadores biologistas e médicos, em busca de explicações racionais para desvendar o mistério pertinente à disseminação do vírus da "amblose disforme"? Antunes complementa a resposta:

— É uma situação grave, emergencial. Por que o estudo monitorado do ambiente orgânico feminino, não trouxe as respostas esperadas, um tratamento, uma cura para o vírus?

— É verdade, Silviana, afirmativa, comenta: A pesquisa científica ficou com o triângulo das bermudas nas mãos. Sem saber como explicar, ou o que fazer com a fragilidade do embrião. A "amblose disforme" põe em risco a vida da gestante ? Pergunta Silviana a um dos entrevistados.

— Mulher nunca morre de causas relacionadas com a "amblose disforme". A partir dela, ficaram mais perspicazes e inteligentes. Para que essa inteligência, para quem, se não têm como gerar herdeiros?

— Mas isso todos sabemos, está nos jornais. É a vez do pastor Marlon, evangélico, protestar:

— Informação oficial, o Fundo de População das Nações Unidas (FNPU), órgão da ONU, divulgou que a soma da falta de recursos específicos para a saúde reprodutiva, está gerando uma quantidade alarmante, globalizada, de fetos abortados, não incluídos na estatística anterior. Abortar é uma coisa que existe há muito, muito tempo.

— A causa disso é a discriminação e a violência contra as mulheres, a violação em massa de seus direitos. É a vez do pastor Horácio Rubim, calvinista, se manifestar: Não quer dizer que as mulheres vão parar de engravidar e ter filhos.

— As mortes dos fetos por abortamento espontâneo ("amblose disforme"), aumentaram em 45 milhões de casos em menos de um ano. Uma “epidemia” avassaladora. Em quatro anos este número cresceu para 590 milhões de “miolos de pão”, em todo o mundo, como é conhecida popularmente no Brasil, a "amblose disforme". Um quinquênio depois, este número atingiu a alarmante cifra de 1.950.000.000. Hoje, corresponde à quase totalidade das mulheres em condições de gestação.

— É bom que se diga, adverte Antunes, que esses abortamentos são denominados espontâneos por acaso. Na verdade nada têm de voluntário, de livre e espontânea vontade da maioria das mulheres atingidas.

— Espera aí pastor Antunes vamos com mais calma, prossegue a jornalista. Deve haver uma causa científica para isso, o dr. Raimundo Taqueshi Covil Mooney, pediatra, especialista em neonatologismo, com mestrado em ginecologia e pós-doutorado em medicina obstetrícia na Universidade de Harvard, vai nos dizer o que está havendo, qual a explicação científica para esse surto, dessa nova e terrível peste. Com a palavra o dr. Raimundo Covil Mooney... Mas só depois de nossos bem bolados intervalos comerciais. Fique ligada platéia da sala de computar, já, já a gente volta.

Em todas as capitais do mundo, nas entrevistas de rua, as pessoas mostram uma certa indiferença pelo surto mundial de abortos espontâneos. No Japão, conhecido por “esponja”, o surto ameaça o futuro da economia. O governo nipônico promete uma ajuda de custo aos casais que tenham mais de dois filhos, ajuda essa que duplica progressivamente com uma natalidade a partir de três crianças por casal.

Na continuação do programa, o especialista mundial em pediatria, neonatologia, ginecólogo e obstetra. Autoridade médica com chancela das organizações de saúde públicas internacionais filiadas à ONU, responde a uma pergunta de auditório:

— As causas da "amblose disforme" são conjunturais. A medicina não sabe ainda como debelar a “peste papa-feto”, como é conhecida nos Estados Unidos, mas uma política de prevenção da doença está sendo posta em prática pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

— Como é que é isso, não compreendo. Como pode haver prevenção se a causa não é conhecida, se não há medicação? A apresentadora mostra-se incrédula.

— É uma coisa difícil, com todos os avanços da ciência... É, é... Até embaraçoso dizer isto: a "amblose disforme", ou “miolo de pão”, é causada por um vírus posicionado nas trompas de falópio. Ele simplesmente está lá antes mesmo da ovulação começar. Permanece indetectável, até o dia da última menstruação.

O debate prossegue e o programa vesperal de Silviana atinge índices de audiência de 72%, nas regiões norte e nordeste e 81% nas regiões Sul e Sudeste. Milhões de pessoas estão a gravar em vídeo o filme do canal dez, enquanto vêem o programa Vesperal da Silviana.

De Bande pede desculpas aos tvespectadores, ao sentir o clima de ansiedade geral: debatedores falando ao mesmo tempo, intervenções extemporâneas nas falas. Alguém tira a palavra da personalidade central do debate, o médico com PhDs em universidades dos Estados Unidos e mestrados em universidades na Europa.

Para tão insigne convidado de honra o programa, Silviana De Bande, cobra mais atenção. O clima de Mercado Persa do debate ficou domado e contido. A mediadora solicita silêncio e atenção da platéia. Pede que só falem quando acender a luzinha verde no painel frontal à poltrona do participante, simultaneamente à solicitação da entrevistadora.

Silviana aproveita a oportunidade para fazer valer as opiniões altamente gabaritadas do doutor Covil Mooney. Alega que não é todo dia que uma personalidade do porte (“tchan, tchan, tchan, tchan”) dele aparece num programa de debate da tv brasileira, se nem as redes de tv americanas e as européias, tinham conseguido dele este privilégio, apesar de perseguí-lo até dentro das aeronaves em planos de vôo internacionais.

— Vamos prestar atenção, gente, contenham os ânimos aí, pessoal, exclama inquieta. Será que o ar condicionado do estúdio está defeituoso outra vez ? Vamos ver isso técnica. O pessoal está tão indócil por causa do calor, “não é gente”? Ela cobra uma afirmação dos convidados ao debate. Obtém o apoio discreto de todos para as solicitações:

— Dr. Covil Mooney, por favor, prossiga. O médico, ao sentir a ansiedade geral pulsando na sala de debates num programa gravado ao vivo, não se faz de rogado:

— No momento da concepção, quando a célula do óvulo fertilizado se divide em duas, quatro, oito, dezesseis, trinta e duas, até que haja milhares de células, no quarto ou quinto dia, esse grupo de células desce ao útero. Nele fica submerso em meio ao tecido aquoso ricamente nutritivo...

Após breve intervalo na fala, como quem parece estar em conflito, se diz ou não diz, algo realmente relevante, se revela se não revela uma importante informação. Medindo as palavras, Covil Mooney prossegue:

— Até aí nenhum problema. O tal vírus ainda não se manifestou...

— Como é mesmo isso? ? Busca entender Silviana.

— Sim e não, está latente, invisível, indetectável. Na terceira semana, após o espermatozóide ter penetrado e fertilizado o óvulo, quando o embrião dobra-se para formar um cê (ele mostra uma letra cê com o indicador e o polegar da mão direita), nesse momento a cabeça, e pequenas protuberâncias, que logo se transformariam nos braços, pernas e olhos, pasteurizam-se. Após cinco semanas, em apenas noventa “pasteurizados” segundos, vira cinzas. É como se o embrião fosse feito e efeito do vírus: dilui-se em pasta pardacenta, como se não houvesse código genético a desenvolver-se.

Uma intensa sonoridade de surpresa e pesar emergem da platéia. Propaga-se na sala de debates com certa e inquietante expectativa.

— Então, é verdade, a Terra estará praticamente despovoada até meados do próximo milênio, desafia Silviana. Dr. Covil Mooney sente o clima emocional do debate. Prossegue firme na narração do processo interno das primeiras semanas de gestação:

— Em uma semana a gestante apresenta sangramento nasal e vaginal, como se não estivesse grávida, e aborta a massa esponjosa cinzenta, popularizada no Brasil por “miolo de pão”.

Nesse momento do debate, todos querem fazer perguntas, quase simultaneamente. A mediadora lembra outra vez a importância de que este encontro possa gerar posições claras e definitas. Chama a atenção para a limitação do tempo útil tvvisivo.

Para manter a estrutura ordenada do debate, Silviana chama Paulo Chenco, o repórter das entrevistas de rua. A primeira entrevistada é uma inúteen que responde a pergunta do repórter, na avenida Paulista em frente ao curso Objetivo:

— Você seria candidata a mãe com a ameaça da "amblose disforme"?

— Ainda nem cortei meu cordão umbilical, cara... Você quer saber se eu quero ser mãe... Dá um tempo. Eu mal me sustento, financeira e emocionalmente, como vou sustentar uma terceira pessoa? Se não dou conta nem da minha dependência com relação a mim mesma?

Após comentar que a jovem é uma pessoa muito pé-no-chão, o repórter aborda um professor de biologia do cursinho "Book Review", na escadaria de entrada da Fundação Cásper Líbero. Pergunta: “Você se candidataria a ser pai, mesmo sabendo o que pode acontecer com sua mulher e ao embrião da "amblose disforme"?”

— Ah, sei, “miolo de pão”. Não mesmo, com ou sem “miolo de pão”, tem gente que pensa que o cordão umbilical varia entre 50 e 60 centímetros... Mas ele... É... É como um cabresto sem medida: a criança, o adolescente, o adulto, o idoso, vai estar sendo puxado por ele a vida inteira, não é nada cômodo. Pelo contrário, causa grande intranquilidade. Não sei se você compreende...Acontece comigo. Talvez pudesse acontecer com meu filho, essa sensação de fazer parte dos ossos do barão, sabe como é? Ser pai, esse risco, não quero viver. Talvez seja covarde, quem sabe, talvez apenas coerente.

Uma próxima entrevistada e a pergunta:

— Você pretende ser mãe?

— Que é isso, ouve o repórter: sadomazoquismo tudo bem, mas o meu está sob controle. Criança é dose, e essa realidade é dose letal para qualquer criança. Eu nem compreendo o que está acontecendo comigo, os estranhamentos que todos estamos vivenciando...

— Você tem medo da "amblose disforme"?

— Não, não é isso, o feto ouve as batidas do coração da mãe, não é? Eu sou muito neura, a vida tem adrenalina sobrando, agora mesmo fui assaltada pela quarta vez em um mês, não quero por um filho num caos de mundo desse. Ele já nasceria com trauma de ser assaltado.

— Oi Silviana, chama o repórter, o pessoal aqui está muito conscientizado. Vamos para o telão da Praça da Sé. Até daqui a pouco.

No estúdio, um dos debatedores se dirige à doutora. Ivonete K. D. Dough, ginecologista e especialista em aleitamento materno do Hospital Maternidade Santa Mara:

— Dra. Dough (a pronúncia é corrigida pela apresentadora), minha filha está noiva e vai casar em breve. Ela pode ficar grávida sem correr o risco de ser atacada pelo vírus “miolo de pão” ?

— Veja, o vírus não atinge a mãe, exceto indiretamente, com sangramento nasal e vaginal na 5ª semana, quando o feto, ou melhor, a pasta virótica cinza é expelida. Do meu ponto de vista não há motivo para pânico, sua filha poderá ter a criança normalmente, mas...vai saber? Não posso fornecer essa certeza.

— Dr. Mooney, a espectadora Tamara Wainer mora na Vila Souza, pergunta se o vírus não está presente no esparmatozóide, mas apenas nas trompas de falópio.

— Presume-se que ele esteja presente, virtualmente, no espermatozóide. Talvez sejam parte de fragmentos indetectados dessa semente. A teoria do dr. Pathon Lock, pediatra e obstetra da Universidade de Chicago, é que esses fragmentos de vírus do espermatozóide vão interagir com outros fragmentos complementares, presentes no óvulo no momento da fecundação. Isto é apenas uma teoria.

A entrevistadora reúne numa pergunta, a interrogação de muitos tvespectadores que, pelo vídeofone, fizeram anotar suas perguntas ao pastor Antunes:

— Pastor, o senhor é acusado de charlatanismo por bispos de outras igrejas. Eles acreditam que o senhor está se aproveitando dessa peste fetal para proclamar o fim do mundo. Como explicar essa coincidência entre seu discurso e o advento da "amblose disforme"? E por que Salvador no nome de sua igreja, se ninguém será salvo de nada?

— A Igreja do Salvador dos Últimos Dias é muito anterior a esses acontecimentos. Ela nasceu no século XIX. O sacerdócio é um dom divino, a inspiração vem do Espírito Santo. Para que se compreenda melhor o que estou dizendo, em futuro próximo, as pessoas que pensam que a vida poderá ter continuidade via inseminações artificiais ficarão surpresas, se já não estão. Mesmo com o sêmen colhido em laboratório, anteriormente às manifestações da "amblose disforme", as mulheres não vão gestar. Ah sim, você insinuou que ninguém vai ser salvo de nada. Ao contrário, a misericórdia divina está a intervir, salvar a raça humana de prosseguir sob o comando, comunicação e controle da sociedade satanizada em que estamos submersos.

— Por que Salvador no nome da Igreja, se ninguém vai ser salvo de nada?

— Esta pergunta já foi respondida. Mais alguma coisa pastor? Indaga Silviana.

— O nome Salvador dos Últimos Dias... A salvação é espiritual. “Conhecei a verdade e a verdade vos libertará”. São palavras do Mestre Jesus Cristo. Em João, 17, lemos: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livre do mal. Não são do mundo, como eu também não sou. Santifica-os na tua verdade, a tua palavra é a verdade”. Ao contrário do que foi dito na pergunta, todos os que aceitarem a palavra de verdade de Deus serão espiritualmente salvos das realidades luciferinas deste mundo.

— Vêm chamar nossos comerciais. No outro bloco, promete a mediadora, mais entrevistas de rua, da praça da Sé.

O programa retorna do intervalo com um primeiro entrevistado que responde à pergunta padrão do repórter dizendo:

— Se o vírus vai diminuir a quantidade de gente que vai nascer, então deve ser uma boa coisa para o futuro do planeta.

— É isso, isso aí, manifesta-se alguém.

— Não sei, não sei não, retruca outro.

— Filho, de jeito nenhum, responde uma jovem professora, nem com, nem sem “miolo de pão”. Não quero ninguém comigo passando necessidade, respirando esse ar moribundo, sendo idiotizado pela tv e tendo câncer de pele por ir à praia com o rombo da camada de ozônio deslocando-se acima da cabeça dele.

— Você viu aí, Silviana, a coisa aqui está preta. E a senhora... Aqui, por favor, diga seu nome ao vivo para o programa Vesperal da Silviana, todo o Brasil está te vendo neste momento. A programação é para todo o país, via satélite, aqui e agora.

— Marlene Cândido, casada, dois filhos, um garoto de 11 e uma menina de 9. Parei, não vou arriscar ficar molhando as calcinhas, ou ter de brincar de bolinha de sabão, passei do tempo para essas coisas.

— Marlene se refere ao “efeito-pum” da "amblose disforme", explica o repórter. O “efeito pum” aparece, na 4ª semana de gravidez, antes de expelir o “miolo de pão”, a grávida expele bolinhas translúcidas que se parecem com bolhas de sabão.

— Essas bolinhas, “pimba”, explica ele, se dissolvem no ar, logo após uma ventosidade... Você sabe, um “pum”. Todo mundo já soltou um “pum” na vida e sabe o que é isso. Agora vamos ouvir aqui a Lindalva. Ela estuda Administração. Quando terminar a faculdade, você e seu namorado estão pensando em casar, ter filho, é isso? A entrevistada corrige o repórter:

— Namorada, carinha. Filho, nem que quisesse, sou epiléptica e lésbica, uso uma droga anticonvulsionante, e outras drogas de vez em quando. Você já pensou no estado emocional de uma criança gestada e criada nessas condições? Sou sádica, ô meu, mas nem tanto.

— Dona Graça, novinha assim, que idade a senhora tem? Pergunta o repórter dirigindo-se a uma morena meia idade:

— Trinta e seis e três meses.

— Tá bem conservada, depois a senhora ensina a receita para manter uma aparência tão jovem, dona Graça. Conta para a gente o segredo dessa aparência de vinte anos. Ela é mãe de seis filhos, Silvana, ninguém diz, não é verdade? A senhora ficaria grávida outra vez, com o risco de contrair o vírus “miolo de pão”?

— Moro no Cingapura, meu filho, ter mais filho pra quê? Pra polícia matar? Do jeito que as coisas andam, se chegar a maioridade já é lucro. Não tô de miolo mole, já tem muita criança queimando o filme nesse mundo.

Está todo mundo “empautado” hoje, Silviana, que é que está havendo? Vamos ouvir o Mário, ele está fazendo um curso de informática e vai casar este mês, aqui com a Lígia, olha como ela é bonita.

— Sim, vamos casar no final do mês, minha mulher já está grávida de sessenta dias, graças a Deus essa doença não vingou nela. O que mais queremos é ter um filho.

— Mesmo com esse vírus da "amblose disforme"?

— Minha mulher é nova, sou jovem, se a gente for pensar nos perigos da vida, nem levanta da cama de manhã. Fica lá mesmo, compartilhando o bem-bom, debaixo do cobertor.

— É isso aí, o casal tem disposição para encarar as dificuldades. Obrigado por sua participação no programa Vesperal da Silviana. Agora vamos ouvir essa “modelo” bonita, elegante, a Kátia dos Santos. A resposta não se faz esperar:

— Sem essa, cara, pra meu filho nascer viciado, com o nariz entupido de farinha? Benza Deus. Vida no morro é de campo de concentração: de um lado os marginais pressionando, do outro os policiais. Ambos os grupos se matando e a todos que estiverem entre eles.

— A Kátia não quer saber de filho não, Silviana. Vamos entrevistar Dona Ágata Angélica, ela já é avó, quem diria. A senhora tem quantos netos, dona Ágata? A senhora estava dizendo que sua filha vai ser mãe outra vez, não é? Conta pra gente como é que é ser avó?

— Ah, sim, talvez, não sei não, com esse negócio de “miolo de pão”, acho bom não arriscar. Uma criança nasce de nove meses, às vezes menos, as consultas são atualizadas por aquela canção do Guiguil, “pra depois do ano três mil”. Ter filho hoje é botar peixe miúdo na boca do tubarão.

— Muito obrigado pela sua participação. É com você Silviana...Aí no estúdio o ambiente deve estar mais leveza, o pessoal aqui não está pra luvas de pelica. Poucos fru-frus, plumas, paetês. Confete e serpentina, só no carnaval.

— É, o pessoal hoje não está pra lantejoulas. Aqui no estúdio, vamos aproveitar a presença do dr. Raimundo Taqueshi Covil Mooney, com residência, mestrado e doutorado em várias instituições de destaque, universidades e hospitais na América do Norte e na Europa.

— Ele é cheio dos títulos, insiste, médico especialmente credenciado pela Organização das Nações Unidas para pesquisa e estudo do problema da "amblose disforme". Membro do Conselho Nacional de Medicina. De seu currículo, deixa ver aqui... Constam residência médica no St. George`s Hospital Medical School, London, na University of Cambridge, EUA. Escreve artigos para o British Medical Journal, e muito mais. Virando-se para o médico ela justifica-se:

— Se for ler suas credenciais todas, seu currículo completo, vamos passar o resto do programa só nisso. Está bem assim, dr. Mooney ? Por favor, a senhora de brinco de argolinha na orelha esquerda, aí na platéia, na terceira fila da direita, sim, sim, você mesma. Pode fazer sua pergunta, por favor?

— O que o doutor Mooney acha da opinião de pessoas, algumas das quais cientistas, que dizem ser esse vírus a maneira pacífica de despovoar a Terra, encontrada por uma civilização extraterrena que reivindica a posse do planeta para ela, por ter chegado aqui muito antes do homem?

— Esta parece ser a opinião de grupos ligados à paranóia ficcional tipo “Arquivo 3X”. Os produtores do filme que lançou a série estão muito interessados em divulgar essa idéia. O relançamento deste filme há nove semanas, numa cadeia de cinemas nos Estados Unidos, produziu um lucro rápido de mais de novecentos e cinquenta milhões de dólares. Nada mal para esse filme que já se pagou há muito tempo.
Silviana De Bande volta a fazer perguntas:

— Dr. Raimundo, o senhor acha que pode ser criada uma vacina a curto prazo contra a "amblose disforme"? Existe uma estatística que indique quando isso vai acontecer? Essa "amblose disforme" vai acabar com as gestações? Crianças não mais vão nascer, ou é apenas uma epidemia passageira?

— A curto prazo não, o H3V atingiu a maioridade faz muito tempo (sabe-se hoje, que a transmissão do HIV, através de chimpanzés, ocorreram no século passado, na década de 30), e ainda não existe uma vacina contra ele. Ao contrário, a nova manifestação (H3V), é ainda mais terrível. Existisse, essa vacina, possivelmente não seria eficaz contra os inusitados desdobramentos do vírus. Com a "amblose disforme", não vai haver futuro em longo prazo. Acredito, em 3.070, se tanto, não haverá nenhum ser humano vivo sobre a Terra, incluindo aqueles de prolongada longevidade.

Após calar por alguns segundos, como que pesando as palavras que vai dizer, dr. Covil Mooney prossegue:

— Vamos ter que nos habituar à idéia com humildade. Pensar numa estratégia de sobrevivência para os últimos seres humanos nesta Terra, de modo que, utilizando os recursos que temos agora, eles possam conviver pacificamente. É preciso que tenham uma existência digna, os últimos representantes da raça sapiens sapiens neste planeta. Essa meta é perfeitamente possível, digo mesmo, fácil de realizar, com um pouco, nada mais que isso, de vontade política global.

— O senhor está dizendo que não tem cura, que possivelmente não vai haver prevenção, medicamentos?, que a humanidade vai acabar por falta de descendência? A pergunta de Silviana gera uma ansiedade extra pela resposta:

— Sou um homem de ciência mas tenho de reconhecer que a "amblose disforme" é um fenômeno absolutamente estranho, muito estranho, beirando o sobrenatural... Para o qual a pesquisa científica não tem uma resposta adequada, nem uma esperança de cura, até o momento, infelizmente. Estudos sérios mostram: se essa epidemia seguir no ritmo galopante verificado até agora, em 2050, daqui a tão pouco tempo, poderá não haver nenhuma gestante no planeta.

— Os últimos seres humanos que nascerem nessa data limite, entre 2035 e 2050, terão entre 100 e 115 anos no ano cinquenta do próximo século. É provável que sobrevivam até essa idade, se lhes forem proporcionadas as condições convenientes. Vamos encarar os fatos, como diz o ditado: “O sol continua lá, mesmo quando encoberto pelo eclipse”.

— O tempo do programa está esgotado, fala Silviana com a voz ressentida, embargada. Pelo que o dr. Mooney disse, não é só o tempo do programa que está esgotado, o nosso período de vida na Terra, enquanto espécie, também.

— Ranranhum-ranh-unm (a apresentadora limpa a garganta, embargada pela emoção das revelações). Nossa, que é isso, desculpem. Silviana pede desculpas aos demais debatedores presentes por não haver tempo para as considerações finais de todos, exceto as do convidado especial do programa. É sua a palavra dr. Mooney:

— Denis Diderot, enciclopedista francês e filósofo iluminista, dizia que “nascemos de uma descendência sempre disposta a nos fazer mal”. Com o advento da "amblose disforme", parece que essa descendência atingiu sua finalidade limite. Sinto-me motivado a achar que ele tinha razão, hoje, mais do que no século XVIII, quando mencionou estas palavras. Muito obrigado pela oportunidade de estar aqui com vocês e dizer estas coisas, sem ter de botar panos quentes na verdade.

Emocionados, os participantes do programa Vesperal da Silviana, aplaudem emocionados. Muitos com lágrimas nos olhos, outros choram aos cântaros, ao vivo.

Mais tarde, um apresentador de programas anuncia para logo mais, depois do Jornal da Globo, revelações espetaculares sobre a epidemia da "amblose disforme" no Globo Repórter: “Ele mostrará a opinião de pessoas de várias partes do mundo, sobre a possibilidade do vírus causador da "amblose disforme" acabar com a gestação e a gravidez das mulheres em todo o planeta, no prazo limite entre 2035 a 2050, quando nascerão as últimas crianças da Terra.”

No Globo Repórter as opiniões dos entrevistados, populares de Bogotá, Lima, Quito, Cuba, Assunção, Montevideo, Buenos Aires, Paris, Austrália, Tóquio, China, Tibet, Liverpool, e da “Grande Maçã”, passam a idéia de que a ONU, e todas as instituições nacionais e internacionais devem, pelo menos neste momento terminal, parar com os discursos nobres de intenção e rarefeitos de ação, e fazer tudo que precisa ser feito, para que os últimos sobreviventes da raça Homo sapiens/demens sapiens tenham garantias de uma vida coletiva, global, sem os horrores e as ameaças de pânico, agressões e violência, marcas registradas da realidade do período pós-II Grande Guerra, e acentuadas no período denominado Nova Ordem Mundial, vigência da “globalização”, que muitos comentaristas denominam “canibalização global do Reich dos Mil Anos”.

Algumas perguntas e respostas das entrevistas internacionais foram dubladas, outras, aparecem através da legenda eletrônica. As imagens mostradas no momento das entrevistas ao vivo, no Jornal da Globo, focalizam populares e autoridades tentando achar palavras sóbrias para reconhecer a gravidade da situação de sobrevivência da raça humana.

Verifica-se via vídeo, um intercâmbio pop de opiniões entre os povos que a tvvisão do século XXI, estranha e propositadamente, ainda não tinha proporcionado a seus tvespectadores, exceto via banalidades MTV, e programas esportivos.

Aqui estão as pessoas comuns, sendo entrevistadas nas ruas, expondo opiniões diretamente umas para as outras, conversando entre países. Transpondo as fronteiras e os preconceitos, até então vigentes, que as mantinham longe das câmaras de tv, sem que pudessem comunicar suas opiniões sobre os acontecimentos que afetam suas vidas diariamente. Agora, conversam entre si, ao vivo, em entrevistas populares, via satélite, das ruas das grandes cidades do planeta. Via tv. Via Internet. Via Canal Tempo Integral.


O EXTERMINADOR ORBITAL DA
"DEMOCRACIA DO PÓS-GUERRA
& CIA. GESTAPO GLOBALIZADA"

Dezenas de monges vestidos com batinas cor de ocre, encarapuçados, trabalham em frente a dois grandes painéis circulares, numa sala subterrânea fechada. Frontalmente a eles estão fotografias de líderes mundiais, e cientistas nazis. Alguns têm os capuzes das batinas abaixados, encobrindo as nucas. Meia dúzia deles parece estar em transe.

Soldados e oficiais do exército alemão encontram-se do outro lado dos painéis transparentes. De frente para os cenobitas, estão a empatizar a maneira de lidar com as instruções de aprendizado que os monges, em transe mediúnico, estão a lhes passar. Repetem verbalmente fórmulas, transcrevem equações, manuseiam protótipos de mísseis, e fazem uma espécie de treinamento:

Cada um deles simula a montagem de centenas de peças de um projeto denominado Exterminador Orbital, com satélites circulando em volta do planeta, a 50 quilômetros de altitude, posicionados em órbita por foguetes, no dorso dos quais vêem-se o logotipo nazi, a cruz gamada do mal, e a sigla T-4A.

Simultaneamente, em Berlim, cientistas alemães, responsáveis pelos mísseis Wasserfall, com sensores infravermelhos, produzidos aos milhares pelo complexo industrialmilitar do III Reich, o “Reich dos Mil Anos”, reúnem-se numa sala de projetos bélicos e pesquisas militares. Planejam as sequências táticas da máquina de guerra do “fuhrer”.

Às duas horas da manhã, em 21 de abril de 1944, noite de luar aberto, noventa militares da Gestapo fazem o caminho inverso ao trilhado pela Expedição Norton, através do paredão subterrâneo de pedra, escalando com facilidade os orifícios que os separam da plataforma e do caminho até o exterior da Serra do Roncador.

Ao chegarem do lado de fora, são recebidos por oficiais nazis e índios da tribo morcego que os conduzem, via trilhas na selva, até onde estão ancorados alguns barcos nas margens de um rio amazônico.

Os índios morcegos dispersam-se após o embarque da tropa, por um oficial nazi que esbraveja ordens traduzidas em direção ao líder da tribo. Os morcegos foram substituídos pelos mais competentes navegadores do Xingu, os kalapalos.

O luar ilumina todo o percurso dos barcos. Motores de popa acionados no limite de suas capacidades cruzam a superfície verde das águas luzidias e esverdeadas. Tamanha a limpidez das mesmas, se pode observar o leito de areia muito branca, onde cresce a vegetação de brejo e pântano, entre milhares de pequenas ilhas e canais.

Mas os soldados zumbis parecem não ter ânimo para mais nada que não seja olhar fíxo num ponto distante, condicionados unicamente a atingir o objetivo determinado pela missão, como se suas vidas tivessem se transformado num único hipnótico e mórbido fenômeno. Ignoram a resplandecente beleza da paisagem tropical, condicionados apenas a cumprir determinadas ordens, os olhos vidrados na meta nazi: “Nossa honra é obedecer”. Como se obedecer a uma cega e fanática hierarquia de alienação fosse demonstração de coragem ou virtude.

Esses “goléns nazis”, cuja única finalidade externa é honrar a vida militar de obediência cega, trazem no braço esquerdo uma tarja de pano preto em meio a qual vê-se a reprodução do logotipo do III Reich: a cruz suástica de rotação invertida, utilizada em fundo preto e pintada com a cor do sangue, a significar: poder, morte e involução.

Os soldados ignoram tudo, exceto cumprir a missão que têm de chegar a determinado local na Alemanha, e repassar informações científicas. A magia lêmure, semelhante à oriental, baseia-se na obediência irracional. Ela faz com que percam a razão, ou que a razão não seja mais que um subproduto de interesses que nada têm com metas pessoais, mas com objetivos de poder mais amplos, para os quais as tropas do exército do III Reich, não passam de meios para atingir fins e propósitos há muito fixados.

Alucinados pela motivação maquiavélica dos instintos cromagnon, em pleno estado de compulsão manifesta do mal, estão sob comando, comunicação e controle do poder e da força de uma hierarquia irracional. Não são pagos para pensar, mas para trabalhar pela viabilização a rápido, curto, médio e longo prazos, dos desígnios militares do “Reich de Mil Anos”.

Os barcos chegam ao píer próximo a um aeroporto secreto no coração da selva amazônica. Os militares nazis embarcam numa aeronave Boeing, capturada dos Aliados, em direção a Berlin. Não precisam de alimentação orgânica, são energizados psi. Não dirão nada a ninguém nem se alimentarão de outra coisa que não seja da vontade, dos mantras mentais lemurianos. Energizam-se deles, o suficiente para mantê-los vivos até o cumprimento da missão, mesmo que essa missão possa durar semanas ou meses.

Quando chegam a Berlin, são encaminhados até uma sala do Reichstag. Os principais cientistas do Reich, membros da equipe do dr. Von Braun, estão reunidos em torno de dois painéis transparentes: um vertical e outro horizontalizado. Situadas na confluência dos dois painéis, duas caveiras de cristal inteiriças, sem inclusões ou cortes, ligadas entre si na parte posterior dos crânios, com arcadas dentárias completas, a princípio posicionadas na direção ocidente/oriente, começam a girar lentamente, completando voltas de 360º, no sentido da cruz gamada nazista. Do outro lado da sala estão sentados duas dúzias de soldados, dos que há três dias haviam embarcado no Boeing no aeroporto amazônico secreto.

Os cientistas ouvem e vêem as manipulações das milhares de pequenas peças, objetos de um puzzle, pelos militares. “Eles” as transformam, gradativamente, em foguetes, mísseis, rampas de lançamento, satélites, plataformas espaciais. Após as demonstrações filmadas, que duram dezoito horas, três turnos de seis horas, com três equipes de soldados e oficiais demonstradores revezando-se na montagem dos protótipos.

Terminadas as dezoito horas, os oficiais da Gestapo e os cientistas sob o comando de Von Braun, têm à frente uma estação orbital que por certo serviu de base, no pós-guerra, ao projeto americano Guerra nas Estrelas. A finalidade deste projeto está em exercer vigilância nas camadas mais externas da aeropausa, de modo a melhor observar e monitorar o tráfego de satélites, estações orbitais e a possível entrada na atmosfera terrestre de objetos voadores não-identificados.

No pós-guerra, planos esquemáticos e maquetes foram confiscados por oficiais do exército Aliado que passaram a disputar a aquisição dos conhecimentos da “inteligência” científica nazi. Seus cientistas tinham revolucionado a tecnologia bélica de domínio, comando, comunicação e controle destinado ao domínio planetário.

Estados Unidos, Inglaterra, França, Rússia, todos gostariam de tê-los a serviço dos respectivos governos, com a finalidade de, antes que outros consigam ser os primeiros a lograr êxito na continuidade dos projetos alemães que não puderam ser viabilizados antes da queda de Berlin.

Os membros da Expedição Norton vêem claramente estes flashes subliminares da História. É como se seus psiquismos tivessem voltado no tempo, e estivessem a fazer parte de um game onírico virtual sobre os meandros do processo de aquisição, no pós-guerra, da tecnologia de ponta ocidental. Para eles, em estado sonambúlico, parece incompreensível esta visão geral, menos formal e acadêmica, de como a História estava acontecendo, sem que nem os serviços de espionagem Aliados se desse conta.

Fatos de bastidores jamais constarão dos livros da História Oficial da II Grande Guerra, como se as pessoas estivessem condenadas a ficar na ignorância de eventos decisivos, que aconteceram nas coxias desse II Conflito Mundial, que ora se desdobra sob a influência da tecnologia de ponta do “Reich dos Mil Anos”, promovidas pelos países líderes do Mundo Globalizado pela alienação.

Os cinco membros da Expedição Norton, por estarem todos à mercê dessa corrente pulsante de energia virtual lemuriana, têm acesso a todas estas informações através do estado psi no qual estão mergulhados, sob o efeito, talvez, de alguma droga mental sutilíssima, que permite a eles o privilégio de estar, de algum modo inexplicável, representando o papel de observadores de uma realidade que, têm certeza, os serviços da espionagem aliada não puderam rastear, nem dela tiveram conhecimento, até a divulgação do “Arquivo Jângal”.




A TECNOLOGIA
DE PONTA DO
REICH “EX-MÁQUINA”

Os membros da Expedição Norton sabem que estão numa realidade de tempo paralela. Essas coisas jamais poderiam estar acontecendo no tempo normal, se estivessem despertos: os países ocidentais do 1º Mundo, ainda hoje copiam os modelos das aeronaves alemãs, que dispunham de inacreditáveis progressos tecnológicos entre 39/45.

A II Guerra se desdobra em suas mentes como um filme virtual da tvgost. Cientistas alemães estão em vias de fazer testes com bombas nucleares orbitais, que seriam lançadas em territórios Aliados por míssil tipo T-4A, tendo nos bojos artefatos atômicos. No último ano do século XXI, mês julho de 2000, pela terceira vez, o projeto militar do Pentágono/NASA, no governo Clinton, teve, inexplicavelmente, apesar do empenho do complexo industrial-militar dos EUA, frustrados seus objetivos experimentais nesse sentido.

Simultaneamente, em todas as localidades do planeta onde esteja presente um monitor tvvisivo, os tvespectadores observam as V-1, V-2 e V-3, os foguetesbomba, os sinistros mísseis Wasserfall, com sensores infravermelhos, a caçarem aeronaves aliadas até derrubá-las, como se os filmes sobre os combates aéreos na II Grande Guerra estivessem em moda. A mídia tvvirtual tem esse poder. Ela atualiza as imagens digitalizadas dos combates da II GG.

Os grandes jornais diários das maiores cidades do planeta noticiam as façanhas modernas dos equipamentos aeromilitares dos Estados Unidos, da França, da Rússia e da Inglaterra, que foram copiados da Alemanha do “fuhrer”, a exemplo dos Föhn, Natter, Enzian, Taifun. Um conhecido âncora de um jornal tvvisivo no horário das dezenove, faz comentários sobre as aeronaves Schmetterling, da II Guerra Mundial, equipadas com detonadores acústicos:

— Elas seguiam, os caças aliados a partir do ruído dos motores, e os destruíam, no campus aéreo da II Guerra, como mostrou o “fulltime movie" de hoje, por voltas das 15 horas.

Os noticiosos se transformam em divulgadores, mais que ocasionais, dos eventos cinematográficos da tvvirtual. Nos cadernos de política internacional, os jornais impressos abrem espaço para matérias comentadas sobre os Rotkäppchen X-7, e outros superaviões tipo Natter/BA-349, e Harrier, que com outras denominações, voltam a fazer sucesso, com seus computadores de bordo, nas feiras de navegação aérea. Aeronaves a turboreação que estavam sendo desenvolvidas, simultaneamente aos caças Convair XFY, Lookeed XFV-1, Sparrow, Boeing 747, Douglas Nike, no período do boom "higitec", 1939/1945, do “Reich dos Mil Anos”.

Nos subterrâneos lemurianos da Serra do Roncador, Tauil, Rossi, Norton, Vassari e Hermann, permanecem imersos nas visões oníricas da estratégia bélica dos mestres subterrâneos da Ordem Negra, para dominar a Terra, usando para isto, como catalisador, o movimento nazista, gerenciado pelo médium e fuhrer Adolfo Hitler. Da membrana pituitária dos integrantes da Expedição Norton, começa a sair uma tênue névoa. Às visões daquelas realidades políticas e econômicas do tempo da II Grande Guerra, somam-se outras, de caráter pessoal.

Do alto do platô, um monge lemuriano observa a bruma destacar-se dos corpos, à altura das cavidades articulares, tendões e saliências ósseas, para logo depois formarem uma espécie de duplicação, do corpo etéreo, de cada um deles. Vistos do ponto de vista externo, os corpos são projeções transparentes, tipo laser, de toda a estrutura óssea, organobiológica, de suas anatomias.

O monge chega-se à beirada superior do platô, olhos fechados, estende suavemente, de baixo para cima, os braços à frente do corpo. Dele desprende-se uma projeção, que, tão logo liberta da pele, encontra-se ao lado do corpo de Tauil. Ele agacha-se em posição de lótus e puxa para fora da manga da batina, os longos e ósseos dedos que se projetam para dentro do crânio da fotógrafa em direção à glândula pineal. A manopla pára a poucos centímetros da caixa óssea. Os dedos, indicador e polegar, alongam-se e tênuemente, com pontas que mais parecem pinças finíssimas, massageiam o corpúsculo oval situado por cima e por trás das camadas óticas.

O frade desse cenóbio subterrâneo da Serra do Roncador ao finalizar esses procedimentos com os outros membros da Expedição Norton, teletransporta-se para o corpo físico no alto do platô. Abre os olhos e vê os corpos, físico e etéreo dos expedicionários, flutuarem entre trinta e sessenta centímetros do solo. Lentamente, cada um dos corpos etéreos, projeções a laser dos corpos físicos, penetram nestes, e pousam lentamente no chão.

Na sequência do transe, eles compreendem que a fome de horror e de dor dos humanos, da qual se alimenta o cristal lemuriano, no subterrâneo de suas mentes, é apenas um sintoma do estabelecimento do estado beligerante vigente no mundo do “Reich dos Mil Anos”, pós Guerra-Fria. É a Terceira Guerra Mundial Silenciosa (não declarada), em pleno andamento. Tal fome não terminaria, exceto, talvez, no ano 3000, quando novos andamentos do “Reich dos Mil Anos” seriam postos em prática, e o termo ganharia outras atualizações, tipo nova ordem planetária ou neoglobalização neológicapós-moderna: a essência intencional do RMA permaneceria igual.

O transe os ajuda a compreender que a Segunda Guerra foi uma catálise mundial, uma espécie de comoção emocional induzida inconscientemente, um atalho que serviu para aumentar a velocidade da reação química dos corpos e mentes, pela presença e atuação de uma substância orgânica base (catálise heterogênea), que não se altera no processo: a excitação emotiva excepcional a serviço do atalho (suposto salto qualitativo), do progresso tecnológico informatizado.

Os membros da Expedição compreendem a mensagem: Esse catalisador universal, nesse processo de comando, comunicação e controle planetário, foi o movimento nazista, cujas fórmulas, pseudamente combatidas, na verdade, a partir do pós-guerra, foram literalmente copiadas pelos governos Aliados, e estão fazendo a realidade planetária acontecer do jeito que acontece: “democrática”, política, econômica e covardemente globalizada.

Para os lemurianos, fazer eclodir a Segunda Guerra Mundial, não era tão importante quanto os desdobramentos da realidade pós-guerra. O resultado final, do conflito, a aparente vitória dos Aliados, foi evento de somenos importância. Os meios faziam acontecer os fins. Maquiavelicamente.

Instalou-se a tecnologia bélica informatizada, a globalização da compulsão cromagnon informatizada: dirigida para consumir toneladas do lixo "hightech". Mudaram totalmente os interesses culturais do conteúdo emocional, das necessidades orgânicas dos seres humanos. As gerações, hoje, estão mais distantes, em sua formação e propósitos, do que duas pessoas que nasceram separadas por cem anos de solidão.

A embaixada que os lemurianos mantinham no coração das trevas do III Reich era representativa da finalidade de perverter o núcleo emocional/mental dos atuais descendentes sapiens/demens sapiens: as novas gerações, inúteens, exceto para o consumo, paridas, apenas e suficientemente, para consumir avidamente mercadorias: fanáticas de latarias envernizadas, eletrodomésticos e automóveis informatizados. E têm este objetivo como meta inicial e terminal de suas vidas. Não mais são humanas no sentido emocional de humanidade. Toda essa compreensão dessas realidades desliza nas mentes inconscientes, como um rio subterrâneo, pelo sangue, pelas sinapses e neurônios, pelos pêlos dos membros da Expedição Norton.

A pantomima do monge, a massagem na glândula das funções endocranianas, conduz os membros da Expedição à percepção de que os cientistas terrenos desconhecem a maneira irreversível, através da qual, são afetadas as condições de sobrevivência humana e do ambiente etérico do homem: suas formas equivocadas de pensar e agir. Os inúteens não mais podem ser salvos das forças mentais sutis que se estabeleceram, que fecharam o coração e a mente da descendência sapiens/demens sapiens para outras influências, exceto as que impedem suas mentes de ressoar aos apelos do amor, da solidariedade e dos Espíritos Superiores da Luz.

Compreendem que cada sonoridade passada, presente e futura do mundo visível, ressoam no reino invisível, provoca as reações de um complexo de frequências em cada um e em todos os seres vivos. Frequências estas que provocam ressonâncias, pessoal e coletiva, a cada uma respiração humana.

Revela-se para eles que os lemurianos conhecem em que frequência vibra a específica forma de vida, interior e externa, dos humanos. Cada conflito pessoal mantém a força de ressonância do cristal lemuriano no interior da Terra, no interior das mentes. No interior das emoções. Esse cristal está em permanente conexão com o que os terrenos chamam de inconsciente coletivo. As revelações do “Arquivo Jângal”, agora se tornam mais compreensíveis às mentes menos embotadas de Tauil e Rossi.

Nesse cristal está o segredo da árvore da vida terrena, em perene e obediente conexão com o karma das forças primitivas de seus antepassados. Para os inúteens não sobrou muito, além de cumprir ou descumprir o slogan da Gestapo: “Nossa honra é obedecer”. Obedecer, real e subliminarmente aos desmandos do consumo do Mercado. “Nossa honra: ser soldados do marketing consumista, ser outro ignocrata do colarinho branco. Os que não aceitarem essa destinação limitada têm a opção de tornarem-se rebeldes sem causa”.

Os cinco membros da Expedição Norton percebem nitidamente o alcance e as intenções, o sentido apocalíptico, egoísta, do que chamam de “ordem e progresso” globalizados: todos submersos perversamente nas leis do todo poderoso chefão: o mercado. É como se as pessoas devessem ficar satisfeitas com o sucesso do desastre.

As cenas de destruição são estetizadas na tvvisão. Os locutores dos jornais tvvisivos parecem querer convencer, que, afinal, elas produzem uma catarse geral, se vistas pelo lado positivo, diminuem a superpopulação global, com as guerras civis internas, a ultraviolência ameaçando a todos nas ruas das cidades, até as menos habitadas, da aldeia globalizada: Terra.

Os membros da Expedição têm certeza de que a soma dos seres humanos não compõe uma raça humana. Uma raça quer dizer uma unidade de vida, de objetivos, de atividades e interesses. O que se pode ver todos os dias nas ruas das cidades humanas é o contrário: a diversidade dos interesses entrando em choque a todos os momentos e em todos os lugares, devido, principalmente, à falta de Ética dos administradores nos parlamentos, no exercício de seus mandatos.

Sabem que sem Ética inexiste civilização. E qualquer cultura, por mais desenvolvida seja, é uma cultura do e para o caos. A convicção de que são parte de uma cultura sem Ética, na qual a transcendência está sumariamente proibida. A qualidade perceptiva é execrada, queimada viva nas fogueiras das inquisições que ardem em todas as cabeças e lugares, todo tempo.

Sabem que os acontecimentos inauditos, inusitados, inaturais, que agitaram os ânimos pelo país afora, são apenas uma ponta do iceberg. Uma leve demonstração do que está por vir. Todos os segmentos marginalizados financeira e economicamente da sociedade, encontram uma forma de se rebelar contra a desumanização dos indivíduos, gerida pela superestrutura da sociedade, administrada por influências à “boiardos do Pelourinho” e quejandos.

Os membros da Expedição Norton sentem-se numa realidade paralela. Vassari e Norton tentam fazer valer os treinamentos militares para ocasiões de estarem prisioneiros do inimigo, sob algum tipo de influências e motivações, modelo lavagem cerebral. Balbuciam números, e nomes de identificações, praguejam artigos e incisos da Convenção de Genebra, como se fossem prisioneiros de guerra, tentam, a todo custo, manter viva a memória de suas respectivas patentes militares, como se estivessem submetidos a interrogatório inimigo. Deliram.

O pessoal da Expedição Norton não tem certeza de que todas essas visões dos acontecimentos correspondem à realidade negada nos livros de História, ou se realmente aconteceram e acontecem nestas circunstâncias embaraçosas, sugeridas pelas visões oníricas nas quais estão submersos.

Hermann está a esforçar-se para conseguir reagir à situação de torpor. Tenta inutilmente dobrar o tronco, impulsionando-o na direção vertical, sentar-se, em vão: o corpo não sai da horizontal, começa a flutuar, outra vez, meio inconsciente, a poucos centímetros do chão. Inútil reagir à indução pertinente dessa intencionalidade, contra a qual nada pode fazer, exceto abandonar-se ao fluxo, à semiconsciência incomum de uma percepção além da sensorial.

Querer interferir, interromper, este movimento alternado, esta fluida radiação eletromentalmagnética, é como querer estagnar o movimento periódico das ondas do mar, ou privar a vida noturna de anoitecer, ou o sol e a lua de alternarem-se em dia e noite.



OS SARKOPHÁGOS
E OS
CONTATOS
DO 4º GRAU

Tauil abandona-se ao sono induzido, imersa na magia lemuriana, milagre de transubstanciação perceptiva, de atualização radical de sua mundividência. Quanto mais tenta reagir às motivações da força indutora, mais se dilui no cansaço, na exaustão, no mal-estar. Compreende ser tolice querer reagir. Sente-se melhor agora, ao aceitar o fluxo sobrenatural, a provocar essas sensações interditas em seu módulo mental perceptivo renovado. Afinal, é bom estar aqui, vivenciar essas vidas, esses comportamentos múltiplos, essa “esquizofrenia” entre aspas.

A timidez e o medo cedem lugar a uma completa imersão. Está à mercê desta mente maior, livre, agradecida e envergonhada da condição perceptiva anterior, tão limitada, tão humana, na imprecisão dos ressentimentos, no medo, na tensão, na lentidão e imponderabilidade.

Talvez não perceba, mas seu corpo está a flutuar a um palmo do solo. Normalmente os sentidos restringiam a percepção mais profunda de si mesma. Agora vivencia seus horrores com naturalidade. Os horrores que a cultura e a civilização, através dos últimos milênios de “modernidade” e neo-pós-modernidade, fizeram-na envergonhar-se do passado de sua raça, de si mesma. Principalmente do presente, e do que o futuro pode reservar. Um futuro onde os vivos poderão vir a ter inveja dos que morreram.

Sim, aceita que seus ancestrais tenham sido esses terríveis seres simiescos que perseguem outros, e após capturá-los, cortam pedaços de seus membros para comê-los mal-assados. Este comportamento primitivo está, hoje, mais vivo do que nunca. As pessoas compram partes dos membros de cadáveres para consumir. As inocentes latarias dos supermercados, não passam, realmente, de pedaços de outros seres, pedaços industrializados, desumanizados, mais-valia do trabalho, em oferta nas promoções dos varejões de fim de semana. A propaganda de enlatados e eletrodomésticos sofisticados dá seu recado: “Foda-se quem estiver cheio de se sentir vazio”. O mercado é a lei: “A lei é dura, mas é lei”.

Tauil sente-se outra vez aquela antropóide de há tantos milhares de anos. Agora não mais está presa à árvore genealógica, por uma amarra de fios vegetais a gritar de pavor, de raiva, de ódio, ira, ressentimento e dor. Agora seus membros estão sendo devorados via enlatados sofisticados, importados, por caninos transplantados nos consultórios odontológicos com ar refrigerado.

Tauil sente que seus companheiros de modernidade não estão mais acocorados ao redor da fogueira, na qual, de quando em vez, mergulham nas chamas, pedaços dos membros de outros seres de sua espécie. Agora seus iguais estão confortavelmente sentados nas poltronas ergométricas em volta da fogueira neo-pós-primitiva da Internet e da tvvisão. Mas as vítimas continuam banhadas em sangue, causa e efeito da mesma compulsão de há tanto tempo.

Nas fogueiras crepitantes de modernidade, de crianças desnutridas, drogadas, morando nas ruas, exploradas e assassinadas como queima de arquivo. Seus semelhantes continuam devorados por outros de sua espécie nas delegacias, nas favelas, nos massacres institucionalizados diariamente nas ruas da cidade.

Os liquens, apesar das vacinas, continuam pegajosos, escorrendo das fossas nasais, misturando-se à carne mal-assada, por vezes queimando nela uma lasca de brasa viva, pequenas farpas grudando-se aos lábios e às gengivas babantes de gula, de iguarias prontas, em poucos segundos, no forno de microondas. O milho das pipocas quebra entredentes, a língua estala ao sabor do refrigerante diet, geladinho. Tauil revive a ancestral como se tivesse voltado no tempo. Ambas é ela mesma: seus medos, suas culpas, sua vida civilizada. Tão antiga tão atual.

Nem tenta explicar estar aqui e tão distante, tão perto e tão longe de si mesma. Chega próxima à mulher desmaiada, um dos membros cortado pela metade. A curiosidade nela cutuca a vítima com os dedos, como a se certificar de que a outra não pode reagir, agredi-la. Uma cutucada, um recuo, até ter certeza de que não há mais perigo em aproximar-se.

Aos poucos se aproxima. Receosa, com medo, mas mais perto, ainda que mantendo uma certa distância. Move o pescoço para os lados a perscrutar uma coisa não tão estranha. Uhhgh! Descobre o quanto é parecida com ela, a prisioneira do grupo de trogloditas do qual é parte. Grunnch, chega a apalpar suas faces com as pontas dos dedos... Quanquhi, uga-uga, pressente não ser tão diferente da outras, quem sabe, poderia ser ela mesma a capturada. E estar sofrendo esses horrores, se tivesse sido aprisionada por membros da tribo rival. Vai encontrando similaridades, como se a musculatura facial da mulher desmaiada, contraídas, ambas, pelo pânico e pela dor, pudesse, ocasionalmente, ser a sua. Ser únicas.

Pela primeira vez, mesmo sem suspeitar, olha-se no espelho perturbador da identidade racial. Joga fora, raivosa, a mão chamuscada, como se a descobrir o absurdo que é devorar-se. Os dedos da destra descem aos seios cortados da outra. Os membros pendentes, amarrados ao galho baixo de uma árvore. As falanges da mão esquerda enlameadas, as unhas imundas, algumas quebradas, as outras, na mão direita tentam, talvez pela primeira vez, uma carícia no pé esquerdo ferido, sangrando, da outra, ela mesma, apalpa as próprias mamas... Ahnnhhnn...

Descoberta... Os seios da outra poderiam ser os seus... Imagina o horror de tê-los cortados. As pálpebras abrem-se muito, enquanto o rosto pende para os lados, em movimentos lentos e interrogativos, buscando se reconhecer, penetrar-se. Pela primeira vez promove esse jogo dos espelhos: vê-se na outra. Sente o horror da situação de dor e desespero da experiência da outra em si mesma.

Confiante, engendra, talvez, o primeiro gesto consciente de carinho de um membro feminino para outro da mesma raça e sexo. Uhhurrhh, gluggrun, com a palma da mão a face da outra, ela mesma, resmunga, fica a grunhir, emite sons aflitos, apalpa a face dolorosa, enquanto o polegar roça os lábios da outra. Súbito, a surpresa, o susto e o grito. A segunda mantém, por momentos, seu dedo perscrutador entredentes, numa mordida que decepou o catapiolhos, não outros dedos, por tê-los puxado para fora da bocarra agonizante, com rapidez.

— Aiiaiaiaiaiaiiaiuhnnahh. O berro de susto, de dor. Como poderia a outra estar viva depois de devorados tantos pedaços do corpo ? O pedaço do dedo decepado pende dos lábios, sanguinolento da mulher dilacerada para satisfazer as necessidades de alimentação de sua tribo. Ela ainda encontra forças para olhar nos olhos da outra e cuspir seu pedaço de dedo. Ela, a outra. Dor, essa dor, como pode ser tão resistente ? Vê-se, enquanto cura-se da perda, da ferida, pelos dias que passavam, nômades, pelas savanas, pantanais e selvas, sem condições de admirar as folhas de relva que os pés nus pisavam sobre o orvalho, nas jornadas de fuga, de medo, de migração.

O quanto deve ter sofrido a mulher capturada e devorada por membros canibais de sua tribo. É como se a outra a observasse de muito perto, de dentro dela mesma. Com seus próprios olhos. Sentiu o que deveria muitos milênios depois ser chamado de angústia. Ela era a Adriane primitiva. Não poderia culpar-se hoje por ter comido a carne da outra, por ter tirado pedaços de seu corpo, por ter provocado toda aquela mágoa e aflição. Como a Adriane primitiva, pré-histórica, poderia saber o que significava condicionamento? A perversidade natural da sobrevivência das espécies. Ainda se vivia às custas da barbárie, apesar do progresso tecnológico, a sociedade continuava igualmente antropofágica, em mãos dos Canibais da Diplomacia.

Se o dedo decepado dela causava tanto incômodo, tanta dor, que dizer dos membros maiores da vítima canibalizada? Adriane imagina: Talvez neste momento haja surgido a primeira centelha de humanização da raça a partir de emoções associadas à dor múltipla generalizada, de uma, e a dor do dedo mindinho decepado pelos dentes da outra, sobrevivente. Quantas vezes mais teria de justificar essa dor? De causar essa aflição e dela se alimentar?

Tauil sente que nasceu há muito esse princípio nela, a centelha de sentir a dor do outro como sendo dela. Continuaria quanto tempo cúmplice dessa violência? Comer-se, devorar-se, atear ao fogo pedaços do corpo que poderia ser o seu.

A centelha da civilização talvez tenha começado nesta circunstância tão antiga, tão esquecida, quando o parque industrial do plistocênico produzia as pontas de La Gravette, de ossos, raspadeiras, buris, folhas de loureiro, micrólitos de sílex, azagaias, arpões de esgalho de rena. Quando seus avós pitecantropos e neandertais mal tinham originado seus descendentes sapiens/demens sapiens: os Grimaldi, os Cromagnon, os Chancelade.

Depois de decepado o dedo, um companheiro vem em seu socorro, com um pedaço de osso na mão, ameaça bater na mulher que, em definitivo, havia fechado pela última vez os olhos no rosto lesionado, contundido pela mágoa, pelo sofrimento físico e pelo desespero. Tauil arreganha os maxilares ameaçadoramente para ele, como se a proteger a prisioneira canibalizada, agredida, morta.

Surpreso e sentindo-se ameaçado, o hominídeo golpeia-a, o nó da extremidade do osso atinge o lado direito do crânio. Ela desmaia. Growwwhul... Ele olha para a outra, dependurada, no galho da árvore, sem vida, sem compreender ou suspeitar, nem de longe, da comunicação profunda, da identificação anímica entre as duas.

Rossi, grunhindo, vê-se aproximar da mulher sem sentidos. Tauil emite uma série de gemidos que soam como lamentações. Estaria morta, teria sido mortal o golpe na companheira? Estranho: como se estivesse na pré-história e a mulher estendida na sua frente fosse uma ancestral de Tauil, e ele, o jornalista, esse homem cromagnon, que a atingiu há milhares de anos. Ainda agora se sente como se fosse uma extensão, no continuum espaçotempo, do brucutu ancestral.

Aos poucos Adriane desperta na tenda. Enquanto emerge daquele momento especial, há milênios, ainda não está ao todo de volta ao século XXI. Percebe que aquele gesto de solidariedade com uma pessoa de seu sexo e de sua raça a fizera sentir-se muito melhor, agora, tantos milênios depois. O canibalismo apenas supostamente acabou. Continua camuflado na concentração criminosa e impune da riqueza social nas mãos de poucos trogloditas do colarinho branco.

Rossi sorri para ela de um outro tempo. Ambos compreendem: apesar de toda a brutalidade, o canibalismo e o horror, havia, há muito, muito tempo, alguma ligação emocional entre eles. Gostaria de dizer sentimento, ternura, mas talvez não fosse nada disso. Seus ancestrais juntavam-se em grupo não para se amarem, mas com medo de ser devorados pelos outros da mesma espécie em busca de alimento para seus estômagos famintos.

Tauil, Rossi, haviam voltado a ser, intensamente, aquelas criaturas do passado remoto, sob o efeito da energia primal que permeava aquele ambiente subterrâneo. Acreditam representar o casal, mãe e pai, mitocondrial da humanidade. Senão, por que estariam a vivenciar essas imagens oníricas estranhas, que os incriminava perante suas vivências? Sentem uma imensa solidão que os associa definitivamente ao próprio destino, como se ambos estivessem visceralmente ligados desde tempo muito antigo. Pré-histórico. Agora ela compreende uma infinidade de pontos de vista, como se não fossem antagônicos nem paradoxais. O pensamento maniqueísta é um anacronismo.

Ela é a outra, apesar dos horrores, e do abismo de tempo que as separa, com certo orgulho. São muitas as percepções aleatórias da mente, a se substituírem. Sente-se mais forte por se conhecer melhor. Aflora à consciência uma frase do Tao-Te-Ching de Lao Tsé: “Aquele que conhece os outros é sábio, aquele que conhece a si mesmo é vidente.”

Uma melancolia de muitas saudades, como se tivesse abandonado a si mesma no passado, persiste, antes de despertar de vez. Acha que o mundo mudou muito na aparência, desde então, mas que a essência da humanidade continua praticamente a mesma. A memória vai ficando mais recente.

Lembra da filha estudante num colégio pirata, desses que cobram uma mensalidade absurda em troca de um ensino de quinta categoria. Mesmo se fosse um ensino de qualidade, estaria diluído pela cultura antropofágica do culto à violência e à pornografia bregas, à música popular das duplas sertanejas de Jecas Tatus para os filhos das mães Joanas, mulheres de auditórios, batendo palmas de pé para apresentadoras de programas de receitas sofisticadas de cocô. Capitalistas camelôs fazendo das pessoas da sala de jantar, robôs, mercadorias do mercado de consumo globalizado pela imbecilização coletiva. Esse transe, no útero da Serra do Roncador, está lhes revelando suas partes de participação nessa cultura primitiva.

Se há neles cidadania, por que não a defendem ?

Rossi mantém a sensação de que as agressões primitivas foram substituídas pelas civilizadas do colarinho branco, agenciadas pelos malfeitores dos precatórios, pelos candidatos "frangogates", que usam gravatas italianas de mil dólares, sapatos de cromo alemão, pertencentes ao mesmo clube da União Nacional dos Lobisomens à "black-tie" das oligarquias centenárias dos poderes estabelecidos em Brasília. “Pra lamentares” eleitos pelos analfabetos, desempregados, sem-terras, sem-saúde, sem emprego, sem-teto, com uma vida repleta de precariedades primitivas. Proto-históricas. Exploradas covardemente.

Nenhum dos membros da Expedição Norton seria capaz de dizer quanto tempo ficou a mercê desse transe hipnótico que os fez sentir as realidades, pessoais e coletivas, tão profundamente. Hermann e Vassari, ao despertarem vêem, enquanto mercenários de guerra, grande e promissor futuro: em todos os lugares do mundo prolifera a presença de jovem tipo "skinheads", "hooligans", "supremacia branca", delinquentes adultos e juvenis, inúteens de todas as idades, esperando a oportunidade de ser engajados num conflito, num cartel do tráfico, numa torcida organizada, e darem vazão às tendências criminosas da atualidade. Tendências que nem sempre conseguem reprimir enquanto torcedores de times de futebol na Europa, na Ásia, no Pacaembu, no Maracanã, no Mineirão, no Morumbi, na Copa do Mundo (outra vez) na Alemanha.

Norton, “executivo de guerra”, não pode imaginar o mundo das relações internacionais sem seu “céu de brigadeiro”: coronéis e generais fomentando conflitos, ódios, revoltas e violência, gerenciando o tráfico de drogas e de armas. As forças armadas sempre dispostas a investir contra as classes populares que reivindicam um mínimo de condições sociais, para que suas famílias não sejam fábrica e celeiros de marginais.

A insensatez do mundo, para Norton, Vassari e Hermann, é a delícia da política do “Reich dos Mil Anos”. Sem ela, mercenários como eles não se criariam nas mordomias do complexo industrial militar.

Ao despertar gradativamente do torpor, Norton está meio que desnorteado, não sabe quanto tempo ficou sob a influência subconsciente da avalanche de imagens mentais simultâneas, de tempos e realidades paralelas que pareciam, para ele, encontrarem-se. Após desperto, ainda meio zonzo Norton parte para uma exploração pelos arredores do acampamento. Após caminhar uns 150 metros, ouviu um ruído de água corrente que poderia vir de um ou de muitos dos túneis situados a pouco mais de um metro e noventa centímetros abaixo do nível do solo onde se encontra.

Agacha-se e adentra num deles, motivado pela claridade azulada, dir-se-ia natural, do ambiente. O túnel afunila e une-se a passagens abertas no teto. Sobe numa delas e arrasta-se de gatinhas até outra via igualmente estreita, ao fim da qual, ao ficar de pé, verifica estar no fundo de um poço com nada menos de 30 a 35 metros de altura por cinco de diâmetro.

Há caminhos permitidos e os naturalmente proibidos. Pensa que a escolha de escalar e chegar ao topo desse poço pode ser uma experiência sem volta, fatal. Está aqui, a experimentar as sensações dessa aventura inusitada. Quanta vez esteve perto da morte, quantas vezes matou. Isto agora é diferente. Não sabe o que o espera e tudo o que lhe reserva esses pressentimentos, essa ansiedade, suavizada apenas pela possibilidade de prosseguir em direção a esse algures, satisfazer a necessidade de escalar sozinho esse topo. Conteve-se. Afinal é líder de sua própria Expedição: tem responsabilidades para com resultados.

Não está sozinho. Precisa voltar e convocar os outros para a continuidade da jornada através desses fossos, túneis, passagens estreitas, poços largos, correntezas e câmaras subterrâneas. Como se esse lugar fosse uma metáfora do inconsciente. Sentiu-se o Tamino da ópera de Mozart: a certeza de que penetrar no túnel, por vezes mais que escuro, tenebroso, da sabedoria, pode ser uma viagem sem volta. Pensou em Dédalo, engenheiro criador do labirinto de Creta.

Marca com spray fosforescente os meandros do caminho até o fundo do poço. Retorna ao acampamento. Todos, de comum acordo, estão a seguir o roteiro de Norton, apesar de outras direções terem sido sugeridas. Para onde quer que se dirijam o inusitado está à espreita, à espera, na moita. Todos os caminhos levam a Roma ou ao Coma, que importa? Enquanto arruma a mochila, Tauil toca o cotovelo no braço de Rossi, chamando a atenção para uma figura vestida de monge, com capuz, que do alto do platô os observa.

Ao perceber estar sendo visto, recua, saindo do campo de visão deles. Ao olhar para o alto, Rossi vê apenas a ponta de um capuz afastando-se. Ao olhar para os lados, notam que nenhum outro membro da expedição havia visto o “intruso”. Logo eles, que foram treinados para saber quando estão sendo observados, e sentir qualquer ruído ou movimento suspeito, por menor ou mais camuflado seja. Não viram nada.

Tauil e Rossi agem como se nada houvesse acontecido. E todos se dirigem, conduzidos por Norton, a ponto de escalada a partir do chão do poço, dispostos a conferir o que há no alto desse novo patamar. Precisam escalar a clarabóia. Rossi supõe que talvez não fossem mais senhores de suas vontades, e estivessem se dirigindo a um local predeterminado pelos acontecimentos anteriores.

Seguem Norton até o poço e preparam-se para a escalada até a borda superior, quando um som agudo, prolongado, uma sibilação sincrônica, os faz olhar para o alto: Uma comporta, em forma de cinco triângulos retângulos, está a se fechar sobre eles. A sonoridade lembra o assobiar acústico de uma grande serpente. O intermitente sibilar os faz levar as mãos aos ouvidos. Tauil olha para cima e vê os vértices triangulares se encontrando lentamente no alto da abertura superior, em forma de campânula, dessa formidável fortificação no feitio de fosso.

Hermann tenta uma meia-volta para sair, mas em lugar da abertura, encontra a superfície fria e fosca da parede circular a se fechar em volta deles, restringindo-lhes os movimentos, fazendo-os colidir. A parede circular lembra, cada vez que se fecha mais, o copo de um liquidificador gigante, sem as hélices rotativas, o interior de um tubo cilíndrico, com uma circunferência semelhante a esses condutores de esgotos que deságuam nas praias ou nas proximidades delas.

As mochilas com os equipamentos formam um amontoado de estorvos em torno deles. Tropeçam nelas, caem, levantam. A pergunta que se fazem é se serão esmagados, liquidificados, triturados, se a circunferência prosseguirá fechando-se, restringindo o espaço em volta deles. Agora, já estão ombro a ombro, e só lhes resta torcer pela coisa parar de pressioná-los. A luminosidade azulada continua igual. Estão a transpirar, apreensivos e tencionados. De repente sentem os corpos adentrados em sarcófagos de hibernação posicionados na vertical da parede, que aos poucos se adaptam ao tamanho de cada um deles.

A situação, agora cômoda, os faz sentirem-se protegidos. As cápsulas se ajustam ao tamanho de seus corpos. Nada nem ninguém podem ameaçá-los, nenhum mal alcançá-los. Presumem: nenhum malefício poderá atingi-los, tal a sensação de segurança.

Os sarcófagos deslizam primeiro para os lados, depois para o alto, na vertical, e logo depois ganham impulso horizontalmente. Não vêem, mas podem sentir pequenos focos luminosos que mudam de cor sobre seus rostos, como se estabelecendo alguma espécie de controle eletrônico, a manter cômoda e adequada, a parte interna de cada um dos cinco ataúdes.

Rossi lembra o significado grego da palavra "sarkophágos" pelo latim "sarcophagu": que come carne, que corrói as carnes. Estranho: a consciência esperta, em estado de vigília, como se todas as células do corpo jamais pudessem estar tão saudáveis, os sentidos demasiado harmonizados.

Não morreu esmagado, nem fora enterrado, ao contrário, nunca sentira-se melhor em toda a vida. O pânico substituído pelo bem-estar. Pode sentir e controlar o equilíbrio orgânico e suas inúmeras funções, como se tivesse o poder de dosar a composição química ideal de seus fluidos e tecidos. Perfeita, bendita homeostase.

Tauil nunca se sentiu melhor em toda a vida. Os sentidos gloriosamente alertas, mesmo depois do forte impacto, após o qual os "sarkophágos" deslizam, velozes, e se desprendem do nicho-plataforma de lançamento, impelidos de dentro da Serra do Roncador, à grande velocidade. Através do visor um pouco abaulado e transparente dos "sarkophágos", a paisagem amazônica distancia-se. A Serra afasta-se lá embaixo: a floresta, as aldeias, os fios fluviais dos rios principais e afluentes. O ataúde flutua em direção à aeropausa. Nem a velocidade de evasão faz com que se turvem os sentidos.

Tauil imagina que incrível seria poder permanecer para sempre nessa deliciosa imponderabilidade. Ouviu cosmonautas e astronautas afirmarem que a Terra é azul. Vai saber pelos outros o que isso significa. Somente estando aqui para saber que a Terra é azul, mesmo. Azul, blue, sensacional. A sensação inacreditável de estar em órbita, acompanhar a trajetória elipsoidal do planeta em seu movimento de translação ao redor do Sol. O olhar perplexo na cor viva da Terra. O dia surge. Na sutileza do amanhecer os primeiros raios solares urgem.

Pura beatitude. Sobrenatural sensação de transcendência e espiritualidade. A sublimação dos limites perceptivos dos seres humanos incapazes de se desprenderem da turbulência e da agressividade contida nas casas e apartamentos tumulares, nas metrônecrópoless onde pontificam a corrupção, o medo, os ressentimentos, os preconceitos, a agressividade e a violência, características de uma mídia doente. Da cultura político-econômica que teme mudanças, pelo medo de perder os excessos nababescos de suas mordomias. Vampiros dos excluídos da sociedade globalizada. Globalizada pela dominação.

A proximidade de uma imensa estrutura circular para a qual se dirigem os esquifes, faz com que se desprendam das deliciosas sensações dessa epifania. Dirigem a atenção admirada para fazerem-se perguntas pertinentes. Tauil: Por que estou sendo trazida para esta que parece ser, devido ao tamanho gigantesco, uma nave-mãe? Nunca soube responder-se: a origem dos UFOs é estelar, interdimensional, ou ambas ? Conseguirá uma resposta adequada para estas indagações?


CONTATO DO 4º GRAU
COM HABITANTES DO
“SUBWAY” LEMURIANO

Os membros da Expedição Norton despertam no acampamento do longo e estranho sonho. Foi tão real, terei mesmo só sonhado? Pergunta-se Tauil. Que pesadelo exclama de si para consigo Vassari, esse lugar vira as idéias pelo avesso. Hermann está visivelmente perturbado. Norton distancia-se do grupo em direção aonde presume achar o caminho que conduz ao poço. Terei mesmo apenas sonhado? Terei mesmo ido e voltado desse lugar? Quando Rossi resolve segui-lo, percebe que ele está a caminhar de volta, apressando-se, em sua direção.

Ao ver dezenas de crianças de pele morena, cabelos negros e castanhos, algumas alouradas, olhos azuis, outras de tez escura e olhar amendoado, calçadas com sapatilhas acinzentadas que se ajustam aos dedos, feitas de algum material que adere à pele, Rossi também se dirige de volta ao acampamento. A atenção de todos concentrada, ora da aparência física, ora na roupa inteiriça das crianças. Presume-se que em algum lugar há um zíper com fecho vertical na parte interna das vestimentas.

O acampamento completamente cercado, elas continuam a sair de alçapões, como se o subsolo estivesse coberto deles. A expressão inexpressiva dos rostos faz com que os adultos vejam nelas o que melhor lhes aprouver. Os olhos grandes, o nariz delgado, os ouvidos minúsculos e a boca, um pequeno traço. Dão-se as mãos em volta deles.

— Tudo bem, crianças, viemos de cima, que é que vocês querem? Norton tenta manter o brio, a liderança.

— Shhshshshhhissssonnn. Um zunido, ao modo de um assobio, precede as respostas nítidas das crianças dentro da mente deles:

“Tudo bem adultos, estamos aqui, que podemos fazer por vocês”?

— Conhecer o mundo de vocês. Até agora vocês eram mais mito que realidade. A fala de Vassari em iídiche soa insolente e justificativa.

— Griphhhsslllunnnssh, é a resposta de uma delas. Simultaneamente à emissão da sonoridade sibilante, surge, clara, na mente deles a pergunta:

“As armas. Faz parte dos costumes colonialistas de vocês: corrupção, invasão, mentira, agressão e domínio pela força, necessidade de ação pelo terror: a covardia é o traço mais característico de sua raça. Seus motivos são sempre nobres: salvar as almas, trazer a religião aos silvícolas, Deus e o progresso. As consequências dessa infiltração de boa vontade são doenças, violência, medo, caos, grande aumento da quantidade de escravos e concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos.”

— As armas são apenas para defesa, apela Vassari.

— Shhshshsoinonsshpr. A tradução do som do zumbido se faz ouvir nas mentes do pessoal da Expedição Norton:

“A tecnologia de defesa de vocês construiu bombas de fissão e fusão nuclear capazes de destruir este planeta mais de uma centena e meia de vezes. Por trás dessa “inocente” incoerência. prometem paz na Terra aos homens de vontade, às vontades semelhantes às suas. Armas de defesa. A linguagem falada de vocês é um desvio padrão para a mentira. Tudo e todas as outras iniquidades vêm daí, e são mais numerosas do que os fios de cabelos de suas cabeças.”

— Desculpem se invadimos sua morada. Somos parte de uns povos inquietos, interessados pelo inusitado, que cedem ao impulso pela aventura. Que deseja fugir do tedioso cotidiano das grandes cidades. Vocês eram folclore, agora serão um segredo.

Por trás da convicção de Norton, há uma implacável hostilidade. Apesar da força com que deseja camuflar essa intenção hostil, as desculpas soam como um argumento de retirada estratégica.

— Crewhhissihshshsp:

“Você nefasto. Mal invade e começa a mentir. Todo pensamento seu está contaminado com a praga da mentira. É compulsivo. Seu Deus ensinou isso? Não, vocês sabem, mas agem como se Ele devesse subordinar-se à sua cultura, não vice-versa. Acreditam que a Terra será dominada por uma raça, um povo escolhido? Seus profetas neolíticos, diziam, traduzindo Deus: “Minha casa é a casa de oração de todos os povos”. Suas orações deveriam ser os mantras de todos os povos. Não sua hostilidade, sua vontade de domínio, seu medo, seu ódio, sua culpa, sua ganância. Globalizaram tudo que é ordinário, exceto as orações. Vocês estão desespiritualizados. Secos. Satanizados.”

Os cinco da Expedição Norton captam telepaticamente as mensagens através de sons fricativos, alveolares, nasais, de breve duração. Longe estão de corresponderem a extensão das respostas no interior de suas mentes. As respostas se traduzem imediatamente após o zunido. Os interlocutores das crianças ampliam o diálogo, interferem neles para que os outros tenham tempo hábil de replicar melhor. Tentam tudo que é truque, mas não há posicionamento adequado neste contexto.

— Por que querem respostas ? Ou sugerem respostas ? Vassari, mais que irritado, mostra-se inquieto.

— Pega leve... A opinião de Rossi, uma tentativa de firmar os passos.

— A raça humana atual é descendência de ramificações diversas em vários continentes da Terra. A cultura do supostamente mais esperto, do mais armado, sempre domina as culturas pacíficas, com menos recursos. É a lei, nem sempre aceita por todos. Tauil disse mais, tranquila e afirmativa:

— Os que são contra as idéias dos que as impõem pela força, são ditos intelectualmente equivocados, neobobos. A solidariedade está fora de moda, quem não simpatizar com a política das patotas é logo eleito inimigo, feroz e nocivo ao mal-estar comum. É desta forma que a cultura humana funciona. Chamam isso de democracia.

— Zonhshshshhshshtsky. O zumbido se traduz para eles desta forma:
“Espiritualidade é simples: Não teme a peste que anda na escuridão, nem os que caem à direita ou à esquerda. Somente com teus olhos olharás e verás, sem desprezo, a recompensa dos ímpios.”
— Gronsnnshihisshshi:

“Praga alguma chegará a tua tenda. Não permitirei que tropeces. Pisarás o leão e o áspide, calcarás os pés neles. E eu o livrarei da angústia, lhe mostrarei a minha salvação. Não confiam nestas promessas ?”

Como não há resposta, as crianças persistem: Whellphhswhisssiss:

“Não vêem que sua cultura atual apenas continua o trabalho daquele primeiro capitalista de “2001”, que elege o osso enquanto arma mortífera? Não vêem que toda sua ciência prossegue fazendo a mesma coisa ? A cultura do saque, da matança, da corrupção, da perversidade é preferencial. O que não faz sentido é que ainda hoje, sua cultura seja tão semelhante a padrões que estariam melhor situados enquanto personagens da história emocional dos trogloditas, seus avós de raça.”

— São 4000 anos do surgimento da racionalidade e 40 milênios de selvajaria e compulsão cromagnon. A civilização sapiens/demens precisa de mais tempo. Nossa ciência e tecnologia começou a pouco mais de 4 séculos. Tauil transmite compreensão e humildade: a argumentação soa pertinente.

— Hensnsnisisinsnsh:

“Vocês não têm uma civilização. O surgimento da escrita não significa a aurora da racionalidade. Como pode haver civilização sem Ética, se sua cultura é excludente ? Não há Ética em suas relações. Os bucaneiros infestam as administrações, dividem entre si o espólio das verbas sociais. Reforçam o poder pirata das oligarquias. Suas leis os protegem, seus exemplos servem para disseminar a peste emocional e moral que se estabeleceu. A miséria mental de sua raça, é metáfora de todas as outras misérias. O progresso de sua tecnologia apenas aperfeiçoa as formas de domínio cromagnon.”

— É o melhor que podemos fazer. A voz de Rossi soa como uma desculpa esfarrapada. Ele sabe que a grande maioria das pessoas quer que as coisas aconteçam diferentes.

Norton, Hermann e Vassari estão bloqueados. Algo errado está acontecendo com eles. Transpiram demais, mostram-se excessivamente tencionados. Fortes, treinados, robustos, guerreiros, por que tão trêmulos e transtornados? É a pergunta que se fazem Tauil e Rossi. Outro zunido reverbera no interior de suas mentes, logo se traduzindo em sentido.

— Yinnnsssssshinnnng:

“Vocês não sabem? Eles estão aqui para invadir, agredir e dominar pela força e pelo terror. A velha tática do colonialismo bem intencionado: Levam a religião, Deus e sua cultura, e nenhuma Ética para gerir pensamentos, palavras e ações. Ninguém, nem o que vocês chamam Deus, consegue gerir harmoniosamente uma mitologia humana sem Ética. Sem um fim trágico.”

A receptividade mental dessas frases foi diversa na mente de Norton, Vassari e Hermann, diversa da acolhida psi nas mentes de Tauil e Rossi. Os três mercenários parecem demasiados concentrados. Aos corpos contraídos faltam os cinco sentidos. Uma leve linha de sangue goteja do nariz de Norton e no de seus asseclas. Os olhos de Vassari passam a impressão de que podem explodir. Dos ouvidos de Hermann, filetes de sangue pingam da pele da orelha, na camiseta ocre.

Em resposta às indagações silenciosas da fotógrafa e do repórter, as mensagens telepáticas das crianças prosseguem, desta vez sem nenhuma sonoridade:

“Por favor, queiram desculpar o zumbido que precedeu nossa réplica. Abrimos um nicho receptor em suas mentes. Está tudo bem. A pressão arterial dos seus acompanhantes caiu. Estão sob colapso circulatório e isquemia cerebral. Nada grave, apenas uma síncope passageira. Nada mortal.”

As crianças dirigem-se apenas ao casal Tauil e Norton:

"Fiquem tranquilos: vocês não vão precisar deles para voltar à superfície. Eles estarão bem. Os maus por si se destroem, ah, este antigo ditado talvez funcione para eles.”

— Por que acontece com eles, apenas ? Não estamos sob as mesmas influências? Ambos ficam surpresos: Rossi porque, antes mesmo de abrir a boca para fazer a pergunta, já estava a ouvir a resposta. Tauil porque captou telepaticamente Rossi:

“Eles vieram como batedores de uma operação militar ultra-secreta, de destruição. Vocês seriam sacrificados em prol de uma estratégia sensacionalista de divulgação da Expedição Norton. Publicariam em livro uma história fantasiosa, inventada para justificar o desaparecimento da fotógrafa e do jornalista.”

“Um artefato nuclear estaria aqui duas horas e meia após comunicarem ao QG as coordenadas de acesso a este lugar. Um comando paramilitar altamente qualificado, autodenominado ironicamente A Última pá de cal sobre o Terceiro Reich, faria a instalação e a detonação, por controle remoto, de um potente artefato nuclear. Seus corpos estariam a poucos metros da explosão.”

— Mas por quê ? Qual a finalidade ? Fazer da Expedição Norton um bestseller literário ? Admira-se Tauil. Uma bomba atômica...?

“Soterrar todas as passagens, impedir o trânsito e a acessibilidade. Tornar este sítio inacessível devido aos altos índices de radioatividade. Promover a contaminação ambiental por radiação induzida. Criar condições ecológicas nocivas para uma posterior política de retirada dos nativos do Parque do Xingu, alegando que, nos conjuntos habitacionais, construídos nas periferias das cidades vizinhas, eles estariam seguros e protegidos da contaminação radioativa."

Sei, o lugar, rico em minérios, estaria posteriormente liberado para a exploração de companhias mineradoras multinacionais. A perplexidade de Rossi mistura-se com uma certa e incontida indignação.

“A ocupação internacional da Amazônia por um comitê de defesa do ecossistema amazônico, supostamente administrado por uma comissão de preservação ambiental da ONU, gerida pelo Grupo dos Oito, precederia, por duas décadas, os trâmites jurídicos de exploração mineral, compensando em parte, os investimentos fracassados dessas companhias em projetos da NASA, originalmente destinados à exploração mineral da Lua.”

— Isto não soa fantasioso ? Exploração mineral lunar... A NASA está colonizando Marte. A incredulidade do jornalista, que se tinha por bem informado, transparece na limitada compreensão de segmentos de interesses comerciais setorizados, característicos da globalização excludente da nova ordem mundial.

“A posse de recursos minerais são a evidência do progresso deletério da Terra. Por que não há disputas jurídicas entre as grandes empresas de mineração dos EUA, pelo privilégio de serem pioneiras na exploração mineral lunar? Simplesmente porque ela está ocupada por uma raça alienígena que explora uma outra modalidade de riqueza mineral do satélite de vocês. E não querem interferências. Eles têm na Lua, uma central de monitorização da energia dos arquétipos de sua raça, tecnologia complementar à estação interdimensional que os índios chamam: "Lua invisível, do outro lado da Terra.”

Tauil não contém a perplexidade:

— Vocês estão dizendo, que os americanos desistiram da Lua por sugestão de alienígenas que a ocupam atualmente, por suposto direito de colonização? Chegaram primeiro, e se fizeram entender que não querem humanos por lá?

“As estruturas recentemente fotografadas na superfície lunar, nada têm com exploração mineral. Fazem parte de um complexo sistema de comando, comunicação e controle das energias latentes de sua raça. Essas instalações são remanescentes da tecnologia dos “Muito Antigos”, uma raça de vampiros anímicos, que se alimentam de compostos químicos etéricos do plasma sanguíneo, produzidos pelos medos, traumas, frustrações, ansiedades, psicopatologias da agressividade dos descendentes cromagnon.”

Tauil: E como é isso? Como funciona?

“Do outro lado da Terra, simetricamente oposto ao local onde está o satélite natural, com semelhante diâmetro lunar, há um depósito de paixões, de sensibilidades diferenciadas, de sentimentos, emoções, coragem, ânimo, arrebatamento, entusiasmo, veemência. Um almoxarifado de potencialidades psí: memórias emocionais. Conhecimentos sutis armazenados. Esses são os registros akásicos, a espiritualidade remanescente e atual da raça sapiens/demens sapiens: bilhões de faíscas quânticas a que chamam de almas.”

Tauil: Muita gente na superfície acredita que Shambalah, habitada pelos lemurianos, é habitat desses vampiros, mas vocês não parecem ser mais que crianças com a mente muito desenvolvida.

“Quando alguém nasce na Terra, nesse novo milênio, uma dessas faíscas quânticas, ou alma, passa a habitar em interação com o código genético do recém-nascido. Acontece que nesse depósito de faíscas quânticas, existem apenas espiritualidades degeneradas pela influência ancestral, e por uma cultura material de manipulação do mercado, de maneira a incentivar os instintos mais primitivos da libidomercadoria, da libido mais-valia, dos instintos mais primários. Anteriores à mais rudimentar cultura.”

Rossi: Por que essa Lua simétrica, esse arquivo anímico não é visível nem captado da Terra?

“Está em outra dimensão da matéria. Normalmente, quando alguém cumpre um período de aprendizado na Terra, ao findá-lo, deve seguir para outras moradas da família cósmica. O problema é que o desenvolvimento da espiritualidade anda tão fraco, que suas faíscas quânticas, suas almas, não conseguem propulsão suficiente para ir além das camadas mais superiores da atmosfera.”

“As faíscas não têm força para chegar ao espaço externo, sem gravidade, a partir do qual teriam condições de migrar, em poucos segundos, para outras moradas do Pai, para cumprirem os desdobramentos de seus karmas. Não mais conseguem, forças. O que vocês chamam de progresso, globalização, neo-neo-pós-liberalismo, esses clichês, não servem para nada, nem para camuflar um processo coletivo suicida de satanização e coisificação da vitalidade anímica de sua raça.”

“A alma, escravizada por essas demandas, se revolta. A cultura reproduz os modelos da compulsão cromagnon visualizados a todo instante, nos jornais, revistas, programas de rádio e tv. Deus foi substituído pela mercadoria onipotente, onipresente, onisciente. A civilização de vocês agencia a reciclagem tanatológica: o mercado, o consumo globalizado luciferinamente.”

Tauil e Rossi têm muitas perguntas, todas respondidas tão logo esboçadas. Surpresos por suas mentalidades racionais estarem aceitando toda essa argumentação sem rejeição evidente, como se ela se encaixasse em alguns nichos propícios de seus intelectos, e estivesse a preencher vácuos informativos, que agora servem de ponte para um novo nível perceptivo: como se um ciclo estivesse fechando-se, superando-se. Todas as antigas e inúteens indagações, diluídas. Sentem que a educação acadêmica abarrotou suas mentes de preconceitos culturais que não mais faz sentido.

“As pessoas não têm transcendência, perderam a liberdade, a vontade, o controle de sua alma pessoal e coletiva. Transformaram-se em engrenagens de engrenagens dos produtos que desejam possuir. O que deveria ser a alma ou a espiritualidade, ao abandonar o corpo, está depauperada da energia vital pertinente, incapaz de romper a barreira da atração gravitacional eletromagnética. Desta forma são atraídas para a estação orbital luciferina, para uma reciclagem sem transcendência, uma reciclagem do mau, administrado pelo anjo caído da Estrela da Manhã. A lua invisível é uma caixa de ressonância que captura facilmente as faíscas anímicas.”

“A alma do Homo sapiens/demens é facilmente aprisionada pela tecnologia de armazenamento das unidades quânticas polarizadas pela vontade de ter, possuir, consumir. As pessoas são usadas e reutilizadas como se fossem massa de manobra de Satã: vampiros de vampiros, antropófagos de antropófagos, lobisomens de lobisomens, mercadorias de mercadorias.”

“A forma encontrada pela infinita compaixão do Criador para acabar com o inferno dessa falsa defasagem, dessa lei do eterno retorno ao horror da coisificação cromagnon...Para que a dor, a frustração, a violência e a ansiedade não prossigam se reproduzindo, indiscriminada e inconscientemente... Visando libertar as almas do comando, comunicação e controle luciferinos nesse planeta... A forma mais adequada, sem maiores traumas, foi a disseminação da "amblose disforme". A raça humana não prosseguirá se reproduzindo para Satã. O “Reich dos Mil Anos” não terá continuidade.”

Tauil: Que acontecerá aos bilhões de almas que não terão mais corpos para a reencarnação? Ficarão por quanto tempo nesse depósito de faíscas quânticas?

“Satã, ser espiritual, precisa de corpos, ele só pode ser detido por um estágio superior de consciência que não mais pode ser conduzida ao homem. O ser humano se perdeu ao criar uma cultura da quantidade. Uma criatura escrava do inconsciente coletivo gerido pela globalização do consumo. Fragmenta e banaliza todos os dias, todas suas instâncias perceptivas. Lúcifer e seus anjos caídos são luz, espíritos, podem viajar a trezentos mil quilômetros por segundo e até muito mais rápido.”

“As faíscas quânticas viajam a velocidades, não raro maiores, que a da luz. A diferença está em que elas desconhecem as trilhas entre as estrelas. Podem ser rapidamente atraídas por um buraco negro, por forças eletromagnéticas e gravitacionais, com as quais a única interação possível é a dissolução tensorial. Estão indefesas face às armadilhas posicionadas no espaço infinito entre estrelas, pelos seres de luz que lhes fazem polaridade.”

Rossi: Ele estará livre para migrar e fazer mais vítimas em outros sistemas solares onde haja vida semelhante à da Terra?

“Sim e não. Lúcifer e seus aliados podem vencer distâncias imensas entre as galáxias, em pouco tempo. Os anjos crísticos que polarizam com ele, visam proteger o desenvolvimento espiritual de diferentes raças, habitantes de outros planetas, para que não aconteça com elas o que está acontecendo com a Terra. Posicionam armadilhas siderais, nas quais os seguidores de Lúcifer podem ficar aprisionados para sempre, ou, pelo menos, por um continuum espaçotempo incalculavelmente longo.”

“Este planeta em pouco mais de um século, não terá mais corpos, devido aos efeitos da "amblose disforme". As faíscas quânticas luciferinas, sintonizadas por Satã, não mais terão como se reencarnarem. Os corpos que dariam continuidade ao projeto nazi do Reich dos Mil Anos, não terão como nascer.

Ao empreender uma nova viagem em busca de corpos prontos a serem preenchidos e dominados pelas falanges luciferinas, Lúcifer, seus aliados, sabem que o Cosmo, nestas circunstâncias, pode ser um lugar terrivelmente perigoso, para uma migração em busca de outros planetas que possam acolhê-los. Mesmo para ele, tal busca pode ser fatal.”

As dezenas de crianças, após uma saudação, começam a desaparecer num piscar de olhos. Exceto duas delas, que pegam, pelas mãos, a fotógrafa e o jornalista e conduzem-nos a um nicho no qual estão quatro assentos. Posicionam-se confortavelmente neles.

Acontece tão rápido que só agora Tauil e Rossi lembram que Norton, Hermann e Vassari ficaram para trás. Estejam tranquilos vocês terão notícias deles. Mal ressoam as frases em suas mentes, ouve-se um som grave sutil, gradativamente penetrante, como se fosse o sibilar de alguma lendária e formidável anaconda. Sentem sobre si um peso esmagador. Perdem os sentidos.


A OUTRA
MESMA
TERRA

Tauil e Rossi despertam numa cama de hotel na cidade de Barra do Garça, próxima à Serra do Roncador às margens do rio Araguaia, único lugar do país onde existe um OVNIporto (aeroporto para objetos voadores não identificados).

Ao abrir os olhos Tauil vê apenas rostos idosos, muitos deles, mulheres e homens mais ou menos da mesma idade, entre setenta e oitenta anos, alguns curiosamente debruçados sobre ela. Não sabe explicar, mas uma sensação inusitada de horror cresce de tal modo dentro dela que a única coisa a fazer é berrar. Chorou alto, aos berros, de susto, de medo. A sensação arrepiante de um padecimento atroz.

Não sabe explicar racionalmente porque está tão horrorizada. Como se essas criaturas idosas fossem prenúncios de uma coisa que ela temia acontecer. E aconteceu. Como se fossem extraterrestres. Ela não conseguia uma identidade, não conseguia vê-los como pessoas do mesmo mundo, com um futuro semelhante. Era simplesmente impensável fazer parte do fim do mundo. De um novo começo ? Deus, não pode ter acontecido mesmo.

Acalma-se logo depois, ao vê-los sorridentes e amistosos. Dentre eles vê Rossi aproximar-se, braços estendidos que a ajudam a levantar-se.

Fica sabendo que está havendo uma romaria de pessoas da região que vieram conhecê-los, vê-los, apalpá-los. Querem saber como chegaram até aqui. Seriam habitantes de cidades subterrâneas, qual seu planeta de origem ? Como podem ser tão jovens ? Os estranhamentos eram mútuos. A reciprocidade da perplexidade.

Os idosos dizem que Tauil e Rossi dormiram 72 horas, que foram trazidos ao hotel por monges do povo dos “Muito Antigos”. Pouco depois de desembarcarem-nos, sumiram em direção às estrelas num globo de doze metros de diâmetro por uns cinco de altura. Uma senhora idosa, sorridente, elogia o apetite de Rossi, uma hora depois de desperto: “Comum, numa pessoa que há muitos dias não vê alimentos. A impressão que passou fome a maior parte da vida”.

As entranhas de Tauil roncaram alto: risadas gerais devido ao fenômeno denominado por Jung de sincronicidade. Aos poucos Tauil e Rossi realimentam o corpo e a memória. Fazem longos passeios bucólicos. Descobrem a surpreendente beleza natural dessa região mágica. Suas mochilas estão intactas, mas a máquina fotográfica de Tauil é, apenas e suficientemente, o olhar.

Os efeitos da "amblose disforme" foram devastadores. A Terra se transformou num campo geriátrico. A fotógrafa e o jornalista, uma curiosidade por onde passam. Uma espécie de misteriosos últimos habitantes do planeta.

Chamam-no “casal século XXII”, meado do qual, não haverá outros sobreviventes humanos na Terra, senão eles, se estiverem vivos. Tauil aparenta 46 anos e Rossi 55. Estavam com 34 e 43 respectivamente, quando participaram da Expedição Norton. O paradoxo de tempo, observado por pessoas que viajaram a velocidade da luz, presente neles. Hibernaram, talvez, uns 90 anos, no tempo da Terra, em algum engenho estelar, viajando à velocidade da luz. A data, num calendário artesanal indica outubro/2125. A Expedição Norton aconteceu em novembro de 2035.

Em quatro ou cinco décadas poderão dizer ironicamente, “enfim sós”, como um estranho casal de Adão e Eva. Não há na Terra ninguém tão jovem. As últimas crianças nascidas pós "amblose disforme", contam entre 75 e 90 anos, as que sobreviveram. A qualidade de vida melhorou. No hotelzinho de Barra do Garça, os idosos avaliaram a idade deles entre trinta e quarenta anos. Na realidade, pelo tempo normal da Terra, a idade aproximava-se de um e meio século, se contado o período de hibernação.

O que teria acontecido ao planeta neste intervalo de tempo, de 2035 a 2125, no qual, supostamente, estiveram hibernando numa nave estelar ? Por nove décadas estiveram fora ? As histórias que ouviram dos sobreviventes, dizem que muita coisa mudou para melhor: Os programas tvvisivos que costumavam infantilizar a mentalidade das crianças, jovens e adultos, se especializaram em educá-los para a nova realidade de que não teriam descendentes.

Precisavam, eles mesmos, manter a qualidade de suas vidas. Não terão quem possa fazer as coisas por eles.

As usinas atômicas foram todas desativadas. Os fantásticos e dementes gastos com armamentos, foram redirecionados em investimentos em educação para a sobrevivência, em saúde para a nova existência. Os últimos habitantes da Terra, segundo a ONU, mereciam toda a consideração e respeito.

As grandes companhias de petróleo mantiveram as refinarias e os postos de distribuição funcionando até 2090, quando, até os mais fanáticos usuários de automóveis, começaram a ficar em suas casas, sítios e apartamentos, e os serviços de trânsito foram desativados. As taxas de criminalidade caíram drasticamente. Uma educação para a solidariedade aumentou a qualidade de vida das comunidades rurais e urbanas. Nesse período o turismo interno e o externo, aumentaram incrivelmente.

Quando os acidentes aéreos aumentaram em quantidade, os vôos “charter” foram proibidos pela ONU. Mantiveram apenas as pequenas companhias de aviação, com pilotos e passageiros nonagenários que têm seus campos de pouso particulares. As aeronaves frequentemente dirigidas por pilotos automáticos. É incrível ver como tudo se manteve em funcionamento até há duas décadas, quando a idade começou a pesar mais do que a manutenção razoável das antigas rotinas.

Os serviços de saúde e os securitários começaram a atender surpreendentemente bem. Pessoas que tinham uma enorme vocação frustrada para ajudar, sem condições de estudar, com a mudança dos padrões de ensino da profissão médica, formaram-se em medicina. Nunca se viu tantos e tão bons prestadores de serviços médicos. Os poderes públicos mantiveram os privilégios.

Os políticos de Brasília se transformaram em “príncipes do Congresso”, o presidente, numa espécie de “rei da democracia geriátrica”, gerindo o país ainda sob a égide da doença social da corrupção. Até que eles, os policiais, as autoridades das forças armadas e os marginais geriátricos remanescentes, perderam o gosto compulsivo pela dominação e a soberania da violência.

Quem está vivo vive melhor. Educados para uma nova realidade, insuflados por uma propaganda motivada para manter a dignidade da raça, em seus últimos momentos, não faltaram voluntários da última geração do planeta, para assistir, velar, enterrar ou cremar os mortos. Dir-se-ia que a natureza humana, numa situação limite, melhora os padrões de convivência. Ainda que apenas aparentemente.

Os filmes do canal fulltime de tv ainda podem ser vistos, não despertam, é claro, a curiosidade de antigamente. Não são mais tão interessantes, mas ajudam os tvespectadores a compreender, entre outras coisas, o que a realidade do momento lhes reserva para o futuro próximo. Ninguém parece ter interesse nisso. No futuro. Desde que não haverá futuro.

Num de seus mais recentes filmes, ficou claro que, enquanto houver um ser humano vivo sobre a Terra, esse canal ao mesmo tempo fantasma e fantástico, estará no ar. Tauil e Rossi não mostraram zelo em observar o que poderia estar ocorrendo em termos de imagens na tvvirtual. Na época da Expedição Norton, excessiva curiosidade lhes causara, agora, parece-lhes indiferente. Ainda assim, as faíscas quânticas prosseguem alimentando o casal “virtual” de horrores tvvisivos.

Passaram-se sessenta dias até resolverem seguir rumo sudeste. Embarcações fluviais, carro e combustível não são problema. O índio Perimuricá, um pagé Kalapalo, os acompanha em direção às cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, e às montanhas das Minas Gerais. Um barco a vapor os conduz até Rondônia, onde conseguem uma camioneta cabine dupla, na qual se dirigem a Mato Grosso, Goiás, Brasília. Não é preciso roteiro turístico. As estradas estão quase desertas e evidentemente mal conservadas. Perimuricá ganhou a simpatia deles, porque está atento a tudo, não sente necessidade de falar. Sua voz é sua força interior.

Quando em São Paulo, pesquisam os jornais na biblioteca pública Mário de Andrade. A curiosidade para saber como as coisas aconteceram nesse tempo em que estiveram fora, é grande. A Biblioteca mantém aberta suas dependências aos raros frequentadores, no bairro do Anhangabaú, que em tupiguarani significa “rio dos malefícios do diabo”.

Depararam-se com artigos de jornais e revistas, escritos por especialistas em busca de uma explicação para a teoria das “faíscas quânticas”, e da “sintonia quântica pela tv”, uma novidade surgida nos meios científicos, na época da disseminação da "amblose disforme". Estas faíscas, polarizadas pela intencionalidade de alojarem-se em seres humanos, penetravam nas células das vítimas, e provocavam uma exacerbação energética tipo singularidade isolada. Elas, algumas pessoas, pegavam fogo, fenômeno conhecido por combustão humana espontânea.

Rossi está lendo um artigo do Jornal do Brasil. O cronista, um astrônomo com PhD em Harvard afirma que a Terra se transformou numa região exposta às singularidades extremas. Lugar onde as leis físicas conhecidas no estudo das regiões do continuum espaço-tempo entraram em colapso. E até mesmo as equações da Matemática e da Física perderam seus significados.

Um dos artigos lidos na biblioteca tentava explicar o antigo surto de Combustão Humana Espontânea, dizia: “Inexiste maneira satisfatória de interpretar e tornar inteligível essa teoria com simplicidade..." O artigo era assinado por uma professora PhD em Física Teórica da Universidade Federal do Piauí, Gabriela Luar:... "Desde que os conceitos que a envolvem são extremamente complexos. O corpo transforma-se em uma espécie de campo gravitacional e eletromagnético, ao criar uma ponte para a invasão de partículas elementares altamente radioativas, que, em segundos, o reduz a cinzas. A velocidade de evasão das faíscas quânticas torna-se, neste contexto, nula.”

Outro artigo, escrito por professor do Instituto de Física da USP, dizia: “A invasão de um corpo por essas faíscas quânticas, cria nele um campo magnético inflacionado por partículas elementares conhecidas como psi e J, capazes de atrair para a vítima milhões dessas faíscas simultaneamente, produzindo um efeito raios X de alta potência com resultados devastadores sobre o corpo. Ninguém no planeta poderia explicar esse fenômeno, exceto se pudesse criar um grupo de equações finais sobre a própria matéria.”

Ao saírem da Biblioteca Mário de Andrade, ex-centrão da capital paulista, Tauil imagina a possibilidade da filha caçula ainda estar viva, talvez morando no mesmo lugar de antigamente. Não, não, assusta-se com a possibilidade. Minha filha Ariadne estaria com 97 anos. Quando saiu com a Expedição Norton, ela tinha sete aninhos. Poderia ter uma trineta.

A curiosidade muito mais forte que os argumentos em contrário. Uma ocasião única para viver um paradoxo cronológico entre ela, sua filha, mais velha que a própria mãe. Não houvesse ficado a viajar numa starnave, percorrendo espaços entrestrelas, inusitados, em estado de hibernação, onde o tempo leva muito mais tempo para passar, não estaria a vivenciar esta situação de paradoxo.

A filha, sim, Ariadne, deve ter crescido, casado, talvez até mudado de país. Vencem as motivações em contrário e se dirigem para a rua Jorge Chamas, próxima ao antigo Detran no Parque Ibirapuera. Uma curiosidade saudosista a impele verificar quem ainda estaria habitando a antiga residência, quando chamada a participar da Expedição Norton. Que aparência teria sua casa, hoje ? Existiria ainda ? Lembrará dos aspectos de outrora, da rua ? Manterá uma aparência reconhecível para quem esteve noventa primaveras ausente?

Ao chegar em local aproximado da antiga residência, agora com aspecto bem diferente de quando partiu para a aventura amazônica, perde qualquer esperança de encontrar uma reminiscência, uma longínqua saudade de certa criaturinha indecisa que um dia fôra sua filha. É como se estivesse fazendo um esforço para trazer à memória atual, uma lembrança perdida numa vida anterior. Nada, nada mesmo. Olhou de perto as casas, os números, o nome da rua, as ruas adjacentes. Sim, seria numa dessas residências de aparência remodelada, reconstruídas, modernizadas, modificadas.

Entra no carro, liga o motor, disposta a circular em direção a outros sítios, quando Perimuricá a chama: “Aqui, venha vê, por favor, aqui”. Perimuricá nunca tinha falado tantas palavras de uma vez. Ela se aproxima para lê uma placa de bronze escondida entre as folhagens de um pequeno jardim na entrada de uma residência. Nela está gravado: Spa Dra. Ariadne Tauil. Geriatria. Fundação: Outubro de 2055. O coração simplesmente dispara. As faces avermelham-se. O índio pergunta: “A senhora está bem ?”

Ela mal consegue responder: “Sim, sim, estou, estou sim, muito melhor agora”. Perguntas brotam de um estado de sensibilidade quase insuportável: Estaria viva, ou seria uma possível neta ? Filha de sua filha e muito mais velha do que ela. Absurdo. E essa tristeza indesejada, essa estranha ansiedade ? A clínica poderia nem pertencer mais à doutora.

Ariadne Tauil, poderia até já ter morrido. E todos os seus descendentes. A sensação de que ela também poderia morrer ao vê-se no espelho da relatividade, ao contemplar face a face a idade paradoxal de sua descendente: o contra-senso da situação de uma contradição logicamente insolúvel: a outra que não poderia existir nessa condição paradoxal. De qualquer forma, precisa correr esse risco.


OS “PIG-SPAS”
VERSUS
OS “HOT-DOGS”

A impressão imediata de Tauil: o lugar estaria vazio. Talvez não funcione mais. Na desolada paisagem das ruas, o vento forte varre milhares de folhas outonais pelas calçadas. Arrasta-as por sobre o asfalto e à meia-altura. O índio olha para as nuvens e repete:
— Chover, vai chover, muita chuva, Rossi não vem? Tauil escreve um bilhete dirigido a Rossi, e cola o papel na parte interna do vidro da janela do lado esquerdo do carro. Ao apertar um botão, a grade externa começa a abrir, a ranger. E pára. Ela insiste, aciona outra vez o interruptor, a grade recomeça o range-range e estanca de vez, não sem antes permitir uma passagem de uns 45 centímetros de largura.

Uma câmara de vídeo é acionada por um operador interno numa mesa cheia de monitores. Não funciona. O indivíduo de cor, no controle interno dos monitores, vitupera:

— Caracas, que se passa? Por esse portão não vem ninguém há séculos. Ele bate nervosamente sobre os controles do monitor. Após algumas interferências no alinhamento vertical da imagem, fixa a figura de Tauil. A voz do interfone solicita que se dirijam a outra entrada, na outra rua, para nova identificação visual.

— Sim, posso ajudar? A expressão facial do homem ao vê-la, exibe uma surpresa horrorizada. Muito nervoso, ele quase não consegue articular as palavras: “Qqqqqqquê desssejaaam ? Mama África, exclama, estou vendo coisas. Aquele baseado... Aquele maldito baseado. Massssiis... Isto só pode ser alucinação. Qaaaqauem, quem é, o que quer, de onde vêm, quaaaauemm sãsahnão vocevocevocês ? Quem está fazendo essa maldita piada sem graça comigo ? O cara está confuso, os olhos passam a impressão de querer saltarem das órbitas. Nunca poderia acreditar na visão de uma mulher tão jovem. Então a coisa lá nos países baixos está dando certo.

O funcionário fica pensativo e, em segundos, parece voltar à realidade: “É... Pode ser isso, é sensacional: Um momemennto, só um momimomentozinho, por favor. A voz parece se enroscar, engasgar, tropeçar nas palavras.”

— “Take it easy”, não se assuste, fique calmo. Meu nome é Adriane, este é o senhor Perimuricá, do Xingu. Queremos fazer umas perguntas, saber as condições para internação, se estão aceitando novos clientes no spa. Quero dizer, hóspede. Podemos entrar, se não for incômodo?

— Nãnãnão seisesei aoaoao, auauau, meu deus do céu, qui é isso ? Não estou tão doidão assim. Momomentinhozinho, pur favor. Vai sair da sala, mas resolve parar, olha bruscamente para o monitor onde permanece a imagem de Adriane: Você não é alucinação não, tá certo? Você existe mesmo, hem? Não vá me fazer de bobo, não saia daí. Faça o favor, não desapareça. Auauauauau, meu Deus... O cara sai resmungando.

— Ele late, comenta num murmúrio e muito sério, Perimuricá.

— Sim... Êpa...Ôôô... Certo... Momento. Volta outra vez, como se certificando que Adriane não é mesmo nenhuma alucinação. Pespera, peraí, desessesculpem. A cara do homem desaparece do micro monitor de observação externa. Cinco minutos depois, que para Adriane parecem muitíssimo mais tempo, uma voz, algo autoritária, mas amigável, autoriza que entrem. Segue-se o ruído da fechadura eletrônica que abre a grade de entrada ao pátio interno. Logo depois, outra grade é aberta, finalmente a porta. O cara do monitor não tira os olhões de assombro maravilhado de cima de Tauil.

Ela e Perimuricá são conduzidos por uma enfermeira, através de um corredor ao lado de uma sala enorme, onde são visíveis as palavras em caixa alta: Fervet Opus. Algumas distintas senhoras e alguns senhores estão alojados em estofados estilo Luis XV, onde as pessoas, supostamente rejuvenescidas, fazem ginástica aeróbica, vestidas à caráter. Uma e outra dessas pessoas vêem Tauil. Estão extasiadas ao vê-la mais jovem do que qualquer uma delas.

Curiosos, abandonam por momentos os exercícios. Aproximam-se do vidro transparente a olhar Tauil com grande simpatia e estranheza. As fisionomias não esconndem uma curiosidade arrebatada. Nem vêem Perimuricá. Seus olhos são para Adriane, apenas. Ao desaparecer pelo corredor, ficam comentando entre si, “de qual spa geriátrico essa mulher deve ter vindo”?

— Bar-ba-ri-da-de. Certo, agora sei que existem milagres, exclama uma senhora boquiaberta, após contemplar Tauil.

— Isto sim é progresso em geriatria, exclama alguém.

— A pele dela é mais nova do que qualquer outra, incluindo a nossa, de clientes preferenciais deste spa. Extasia-se uma idosa. E este é o melhor spa do Brasil.

— Do planeta, com certeza.

— A Romênia está mesmo fazendo progressos, opina a lider do grupo.

Tauil e Perimuricá descem alguns degraus até um jardim de verão, através do qual entram numa porta aberta pela acompanhante que, sempre muito nervosa e solícita, convida:

— Por favor, sentem-se, fiquem à vontade. Na sala aconchegante há a presença de vários termos com chá preto, verde e camomila. Neles uma etiqueta indica: 4%, 6% e 11% plasma, respectivamente.

Perimuricá acha estranho um orifício no centro da circunferência na parte superior dos termos. Como pode sair chá por aí ? Pergunta-se. Olha em volta e não vê nenhum copinho, nem canudo. Adriane folheia uma das publicações científicas que estava sobre a mesa. Pára na página de um artigo que anuncia:

Perenidade: a realidade do sonho.
Dr. Klein Zadilett. PhD.

“O soro hepático produzido pela equipe da dra. Magali Ostrowsky, da Clínica Pensilvânia, na Romênia, um avanço na medicina geriátrica, não apenas rejuvenesce as células, as mantém rejuvenescidas por sessenta e cinco meses, bastando para isso que o processo de granulação que reveste a víscera glandular volumosa no hipocôndrio direito (com pequena parte do epigástrio e hipocôndrio esquerdo, em função de excreção da bílis, pela alta tempertura com que é megamagnetizada a produção de glicogênio [(C6H10O5)n], seja mantida através de pequenas doses de plasma, em bebidas absorventes (líquidas quentes), de preferência chás, que devem ser ingeridas a 90º centígrados, cinco vezes ao dia, com tratamento térmico especial, sem nenhum incômodo para os clientes. Siga as normas.”

Perimuricá vê Tauil concentrada na leitura. Os olhos movimentam-se intrigados. Levanta-se, pega um dos termos, aperta o botão na saliência superior onde se acha o orifício. Dali sai um pequeno globo com um líquido escuro envolto numa membrana transparente de fios verdes. A bolinha tá quente. Ele a joga de um lado para outro, da esquerda para a direita, talvez, quem sabe, esfrie um pouco. Da direita para a esquerda, pingue-pongue, a coisinha vai e volta entre as palmas das mãos.

Senta-se ao lado de Tauil. A petequinha verde ainda está muito quente. Com um estalo labial, a bolinha salta outra vez da boca para as mãos, onde permanece joguete no vai-e-vem, palma-a-palma e depois em direção à boca de Perimuricá. No joga-joga entremanoplas, o índio, ainda meio em dúvida, lança de novo a bolinha na boca, e fica a movimentá-la de um para outro lado das bochechas. Os lábios fechados, as laterais da face cheias de ar. Dos olhos arregalados saem lágrimas, a pele do rosto vermelha, parece que vai estourar. Ele sopra, sopra e sopra outra vez e outra mais. Resolve, afinal, mordê-la. Ahhhahhhah exclama, chamando a atenção dela:

— Chá ruim, muito quente, diz, enquanto cospe o invólucro para o lado, a carranca vermelha, quase a se engasgar, tenta parecer educado. Ajeita-se na poltrona. Os olhos ainda cheios de lagrimação. Enquanto se recupera, arfando ar pela boca entreaberta, puxa, de dentro dela, uns noventa centímetros de finos fios verdes, parece gaze, cor de abacate. Por mais que puxe, eles teimam em continuar saindo. Adriane bate-lhe nas costas, enquanto adverte, apreensiva:

— É um medicamento, Peri, eu não teria feito isto. Após alguns momentos ele faz sinal de que está tudo bem. Ela relaxa e prossegue lendo o artigo:

“Aos pacientes dos spas geriátricos associados ao método Ostrowsky, basta ingerir as doses diárias por três meses, associadas às aplicações complementares da hormonoterapia. Após a renovação do tratamento com seis novas aplicações do soro hepático, num período de dezoito dias, se faz necessária a permanência da ingestão do plasma, nas doses de sustentação, nas proporções acima descritas.”

“A geriatria, livre dos preconceitos dos organismos de repressão ao progresso da ciência, avançou mais nesta década, devido a contribuições científicas das equipes Ostrowsky, na Romênia, e Ariadne Tauil, no Brasil, do que em todo um século anterior de pesquisas.”

Enquanto Adriane prossegue lendo o artigo, Rossi, fascinado por uma nostalgia incontrolável, caminha pelos espaços abertos e desabitados. Ele entra num clube de aparência vazia. Está seduzido pelo mistério latente desses grandes espaços lúdicos. Vai penetrando corredores e salas, quando, surpresa, um golpe na cabeça. Cai de joelhos meio abalado. Do grupo de homens idosos, um deles diz: “Vamos matá-lo, é um deles”.

— Maldito “pig”.

Estão prontos a descer pedaços de cano e pau sobre a cabeça do jornalista, quando alguém diz:

— Esperem, os malditos, vejam a aparência dele, parece rejuvenescido. Os canalhas, o que estão fazendo para conseguir isso?

— É realmente impressionante!

— Cristo, que incrível, como pode ser possível ?

— Os malditos "spas" estão mesmo fazendo progressos.

— Não mata agora, vamos fazê-lo falar, sugere um dos agressores.

Arrastam-no até uma sala na qual muitos deles jogam xadrez, gamão, damas, sinuca, cartas, videogames, pôquer. Algumas senhoras em volta de uma mesa redonda acompanhadas de dois marmanjos lançam dardos num alvo fixo. Outras, como se disputassem espaço vital por conquista de terras, num jogo tipo “war-game”, ao vê-lo, param de jogar sobre a reprodução de um grande mapa-múndi iluminado sob folhas transparentes de vidro. Ao perceberem a aparência mais jovem de Rossi, todos ficam interessados, param os jogos e aproximam-se da máquina de fliperama onde o jornalista permanece amarrado. O pasmo geral:

— Danação, poderia ser meu neto.

— Se você tivesse um, Ramon, mas não tem, filho. Responde uma senhora, provocativa.

— Ele está envelhecendo às avessas?

— Mais uns anos, ele vai estar com aparência de rapazinho. A perplexa madame não esconde o pasmo, enquanto esbugalha os olhos com a face colada no rosto de Rossi.

— A bruxaria desses "spas"... Que estão fazendo com os "hots" para chegarem a isto ? Fala em tom crítico e raivoso um marmanjo gorducho com sotaque italiano, que atende pela alcunha de Rê.

— Fechem o ferimento na cabeça. Perdendo sangue deste jeito, não vai durar muito. A velha senhora Celina parece preocupada com a saúde dele.

Aplicam um analgésico que suprime a dor em segundos, costuram catorze pontos no couro cabeludo do jornalista. Cauterizam o ferimento com uma caneta laser portátil, e amarram-no, na mesa redonda, sobre o grande mapa-múndi, meio Oriente meio Ocidente. Os continentes brilham a partir da tinta fosforescente.

— Por que não o deixou sangrar e morrer? Comenta Pedro Gomes, com sotaque matuto que lembrou a Rossi a região do Vale do Paraíba.

— Vamos abrir ele do mesmo jeito, para ver o que está acontecendo nas entranhas desse pig. Devem de ter implantado algum chip no fígado dele.

— Ele vivo é mais divertido, justifica um senhor baixinho. Lembrem que os "hots" nas clínicas ficam vivos por anos, pedindo para morrer, sofrendo horrores, para que filhos da puta como este tenham as células renovadas, a aparência de uma vida quase juvenil.

Submerso na ironia raivosa dos octogenários, todos muito energizados para a idade, Rossi está convencido: dificilmente sairá vivo deste lugar. O idoso que parece ser o líder do grupo espeta seu abdômen com uma agulha longa, ao perceber que o “paciente” não demonstra sentir nada, diz:

— Agora vou abrir sua barriga, filho. Você entende, precisamos nos certificar se substituíram mesmo alguns de seus órgãos por chips ou coisa semelhante.

— Por favor, não faça isso. Não sou quem estão pensando. Sou um jornalista, terceira década, Expedição Norton. Lembram ? Expedição Norton.

— Se você não é um deles, como explica sua aparência ? O desafio é de uma senhora. Ela parece ansiosa para ver o que há dentro dele.

— Charles Brown vai apenas abri-lo, não vai doer nada, garoto. Vocês fazem coisas muito piores com os "hot-dogs" aprisionados.

— Não sei do que estão falando, "hot-dog" pra mim é salsicha em pão com mostarda e ketchup.

Após risadas gerais, Charles Brown comenta:

— O filho da puta ainda é cheio das gracinhas. Rossi não compreende porque tantos risos e algumas gargalhadas. Brown aproxima o bisturi da pele da barriga de Rossi, à altura do fígado, e começa a cortar. Desesperado ele berra:

— Expedição Norton, Norton. Expedição Norton lembram? Novembro de 2035. Não saiu nada sobre nosso desaparecimento, nos jornais tvvisivos ? Vocês devem ter ouvido de seus pais, devem ter lido na imprensa, foram feitos casos especiais, filmes ? Rossi prossegue a berrar:

Expedição Norton, por favor, Expedição Norton, 2035. Novembro de 2035. Lembrem, por favor, lembrem. Eu sou Rossi, o jornalista. Estou com minha companheira de Expedição. Ela está lá fora, Adriane, Adriane Tauil, a fotógrafa da expedição. Ela confirmará o que digo. Procurem-na. Ela está lá fora.

— Ah, há, há, ahah, hahah, hah, ah, hah. Que que é isso: Hi, hi, hi, huuuuááá... Quásquasquasquás: As gargalhadas soam de todas as bocas escancaradas, surpreendentemente cheias de dentes, se próteses ou naturais, não sabe. Ganhou algum tempo. Toda a gente está simplesmente se divertindo. A certeza de que faz longos e muitos anos que não têm nenhum motivo para sorrir. O efeito das risadas, contagiante. A princípio um pouco acabrunhado, ele começa a ri também. Não sabe ao certo de quê. Talvez da inexplicável situação limite.

A maneira como foi dito isto, a convicção, o desespero de Rossi, o nome Tauil, fez Charles Bronw parar o bisturi, e dizer:

— Ele é da equipe da médica, da pilantra assassina. Você disse que a filha dela está lá fora? Ahnnnannnn? Garoto, Tauil...

— Adriane. Alguém completou.

— Adriane Tauil. Vamos ver se compreendi o que está dizendo. Você fez parte dessa expedição, do ano 2035 (risos), onde está seu envelhecimento, garoto, hein ? Hein ? Fala esperteza. O tempo parou pra você ? Que gracinha, não tem ninguém gagá aqui, criança, apesar das idades. Quantos anos tem você, rapaz, hein ? Os risinhos abafados cedem às risadas abertas que se fazem ouvir outra vez.

— É uma longa história, se vocês me permitirem contar.

— Corta logo ele! Desafia um idoso de camiseta listrada. O cara está fazendo a sua cabeça Charles?

— Charles está de miolo mole. Acode, acode. Charles está de miolo mole. Um senhor magro repete a provocação verbal.

— Corta ele, que está esperando? Incita outro.

— Charles desmaia ao ver sangue, comenta um senhor baixinho, ironicamente.

— Passa o bisturi nesse filho da mãe, cretino, ou passa a bola pra outro. Não vai faltar quem queira cortá-lo.

Charles Brown rumina alguma coisa e desce a mão para ampliar o talho abdominal em Rossi, quando uma mulher comenta:

— O Expedito está trazendo uma coisa pra você.

Três membros do grupo, armados com revólveres e um fuzil metralhadora, entram na sala, bilhete em punho.

— Estava no carro estacionado em frente a clínica. Fala, enquanto entrega o papel.

— Bom, talvez o rapazinho aqui não tenha mentido quando falou da amiguinha Tauil. Charles Brown entrega o bilhete escrito por Adriane, ao "hot" que parece ser seu mais próximo assessor. Ele o repassa às demais pessoas. Alguém comenta:

— Parece que agora vamos ter que ouvir a história dele. Ouvem-se alguns protestos que fazem contraponto com algumas risadinhas.

— Ela está bem? Sinais de estresse e sono são evidentes. Uma mulher põe um comprimido na boca e o faz ingerir com um pouco de água. Em alguns minutos, dorme. A sala despovoa-se. Ficam poucas pessoas. Algumas dessas pessoas mostram sintomas do “mal de Parkinson”, ou uma variante dele. Numa das mesas alguns idosos começam a jogar gamão, outros, sinuca e xadrez.

Dos apartamentos de observação dos "hot-dogs", em prédios fora do perímetro de edifícios e residências ocupados pelos "pig-spas", o grupo de Charles Brown observa a movimentação dos vigilantes armados dos "pigs", sem notar nada de novo. Tudo que está fora do perímetro de segurança das bases militares armadas, é território livre dos "hot-dogs". Há quinze anos havia muitas batalhas, quando os "hots" eram caçados para as experiências de laboratório dos "pigs".

Quarenta minutos depois os batedores estão de volta ao clube. Uma senhora põe uma almofada sob a cabeça de Rossi. O grande salão volta, aos poucos a ficar povoado. Rossi desperta disposto, como se o comprimido ingerido contivesse substâncias sintetizadas de proteínas, vitaminas, sais minerais e carbohidratos, na medida certa para serem assimiladas enquanto energizante orgânico. Sente-se muito melhor. Agente de forças insuspeitas.

Pensou ter dormido pelo menos um dia, quando dormiu apenas quarenta e cinco minutos. O ambiente agora volta a ficar tumultuado. As pessoas vão chegando, a curiosidade e a expectativa aumentam.

— Conte a história, marmanjo. Desafia Charles Brown. Quem sabe você convença todos aqui que é mesmo alguém nascido no século XX. As risadas ainda se fazem ouvir quando Rossi lembra os casos de combustão humana espontânea. Fala sobre o Dossiê Jângal. Simplifica a narração, de modo que possa parecer, ao menos possível, inverossímil e fantástica.

A platéia ouve, medita, pergunta, dirime dúvidas. A história convence, apesar de absurda. A aparência conservada de quarentão, é a prova irrefutável de que está dizendo a verdade. Rossi insiste em ler o bilhete de Adriane. Uma empatia se faz presente. Os laços que unem Adriane e ele são fortes. Desamarram-no e entregam o bilhete.

— Preciso vê-la, falar com as pessoas do spa, saber para onde foi, se ainda estiver lá.

Todos se divertem facilmente com ele. As risadas se fazem ouvir fortes, outra vez.

— Por favor, alguém diga a ela que estou aqui. Risadinhas abafadas transformam-se em gargalhadas.

— Que coisa do que disse pode ser tão engraçado? Não sou humorista. Vocês riem fácil demais. Parece uma gangue de bufões.

Primeiro Charles Brown, depois outras pessoas ajudam Rossi a compreender as forças que regem o mundo pós-"amblose disforme". Explicam que ele está dividido entre duas facções que se combatem e odeiam: os "hot-dogs", da qual eles fazem parte, versus os "pig-spas", ou barões da vaidade.

Os primeiros são denominados cachorros porque eram pegos nas ruas com redes imobilizantes. Elas entravam pela cabeça, desciam até os calcanhares da vítima, onde uma fivela tolhia seus movimentos. Algo semelhante aos cães vadios de antigamente, pegos pelos homens das carrocinhas. Quentes, porque são mantidos vivos, a contragosto, em estufas à temperaturas entre 45º/55º centígrados, sem que sejam literalmente assados. A transpiração libera resinas que vão servir de matéria-prima para a produção de soro hepático de rejuvenescimento dos "pig-spas".

— Suor que serve de base para o soro? Mas que é isso? Rossi mostra-se incrédulo.

— Duas décadas depois dos últimos sobreviventes da "amblose disforme" terem nascido, as pessoas mais ricas do planeta investiram tudo nessas pesquisas no intuito de prolongarem suas vidas.

Começam a falar com Rossi amigavelmente. Compreenderam que a história dele, por mais absurda que pudesse parecer, tinha a evidência de seu corpo e de sua pele, mais conservada e jovem que a deles. Contra fatos e evidências não há argumentos pertinentes. Todos parecem querer explicar a Rossi o que está acontecendo. Explicar como o mundo girou no período em que permaneceu abduzido.

— Parte dos produtos e serviços ficaram obsoletos por falta de livre concorrência entre produtores de mercadorias. A preocupação com a vaidade dobrou, triplicou. A velhice era o único inimigo a vencer. Eles não se incomodavam mais em fazer lavagem cerebral de baixo nível nos “da poltrona” para mantê-los globalmente idiotizados. A idade provecta tornou-se a única preocupação dos ricos do mundo. Queriam manter-se o mais jovem possível, fosse como fosse. A velhice precisava ser vencida a qualquer preço. Os pigs investiram tudo nas empresas de pesquisa deste setor.

— Cultivaram um vírus DNA dentro do fígado, capaz de produzir infecções controladas. Ele mantém superativo o fígado do infectado por longo tempo. O órgão dos "hots" capturados, com o tratamento vai inchando, como o fígado dos gansos usados para fazer patê.

— A ação do vírus vai comprometendo aos poucos o órgão de produção do soro hepático. Em trinta dias ele expande a produção da matéria-prima da pesquisa. Para que isso aconteça, torna-se necessário abrir a parede abdominal dos "hot-dogs" capturados. As partes mais afetadas pelo vírus artificial são banhadas em soro glicosado para que resistam às condições adversas, sem necrose. A hidratação é feita a partir da associação de moléculas de água a uma espécie de alga de laboratório. Esta produz uma reação química que combate o núcleo celular onde se multiplicam os radicais livres, impedindo as células de envelhecer.

— Certos radicais livres com ação oxidante, como a hidroxila, estão envolvidos no aparecimento de doenças e nos processos degenerativos dos seres vivos.

— Uma vez instalada o que os "pig-spas" chamam de função orgânica reversa, há uma septicemia, infecção generalizada. O paciente cozido vivo, aos poucos produz o que eles chamam de soro hepático da longevidade: líquido com propriedades medicinais que reforça o combate aos fatores responsáveis pelo envelhecimento das células.

— A pesquisa trouxe para os "spas" os medicamentos, os exercícios, os chás que fazem o conteúdo celular do citoplasma e do núcleo das células, combater a ação degenerativa dos radicais livres.

— O slogan dos "pig-spas", Fervet Opus, indica que devem manter-se em atividade intensa. “O trabalho ferve”. Quanto mais transpiram, mais a ação do soro hepático produz melhores resultados, devido a ação da substância radical-alcalóide ativa produzida nos aquários das algas.

— Mas nenhum de vocês parece ter mais de setenta anos.

— Sim, a farmacologia e a medicina evoluíram rápido. Uma década após o advento da "amblose disforme", as escolas secundárias se transformaram também, em cursos sobre conceitos básicos e avançados de ecologia, farmacologia e medicina. As pessoas aprenderam a preservar melhor a saúde, e o meio ambiente.

— Os laboratórios produziram em grande quantidade e a preços acessíveis, as cápsulas de reforço. Você ingeriu uma, há sessenta minutos. Dormiu pouco mais de meia hora, a disposição física e mental se manterá por 72 horas, quando os efeitos químicos começam a diminuir.
— Os "spas" queriam mais. Desejavam criar o soro da longevidade, nada menos. Há duas décadas não precisam mais caçar "hot-dogs" pelas ruas. Eles os mantêm, aos milhares, em campos de concentração e enxovias. Dormem em beliches e a higiene é feita em banheiros coletivos.

— Como nos tempos do Terceiro Reich. Os "hot-dogs" são mantidos nos dormitórioscâmaras numa temperatura permanente, mínima, de 45º.

— É o “Reich dos Mil Anos” em andamento, comenta Rossi.

— Com o advento da "amblose disforme", a coisa toda da sobrevivência, a partir de agora, vai durar apenas mais duas ou, quando muito, três décadas, a opinião do idoso se complementa com a de outro:

— A Terra vai ficar livre, para sempre...Olhando para Rossi, concluíram que ele e Tauil poderiam, talvez, gerar uma criança e Charles Brown disse, desta vez sem muita convicção, como se traduzisse o desejo e as esperanças de todos na sala. Falou como se desejasse que realmente acontecesse a geração de uma criança pelo casal, mas continuou a frase que anteriormente havia começado, ao dizer sem nenhuma convicção, e até de modo envergonhado. . . Da praga Homo sapiens/demens/sapiens.

Tauil e Rossi se metamorfosearam, de repente, na mente daqueles seres desesperançados. Havia agora uma expectativa em todas aquelas criaturas: a de que eles pudessem promover a continuidade da raça humana no planeta, como se fossem um novo casal Adão & Eva.

— Cristo, e Adriane, se eles resolverem usar o fígado dela nessas experiências ? A voz de Rossi ecoou no sentimento religioso da raça que havia desaparecido há tempo.

Uma senhora que parecia ser a mulher de Charles Brown e ter influência decisiva sobre as decisões do grupo, falou com firmeza e convicção:

— Precisamos tirá-la da clínica. De que jeito? Ajudem, por favor.

— O fígado dela, alguém comenta, deve ser uma preciosidade rara para a produção do soro hepático. Acreditem, eles não vão perder tempo.



O INFERNO
SUBTERRÂNEO
DOS “PIGS”

A enfermeira entra na sala e avisa Adriane que a doutora Ariadne Tauil vai atendê-la.

— Entrem, por favor. Sempre muito solícita, a médica ergue o braço direito à frente, recolhe o antebraço numa continência militar, com os dedos da mão destra pressionando-se, ao lado da cabeça, exclama: Fervet Opus, saudação que lembra o “Heil Hitler”.

Só então, de alguma forma, “caiu a ficha” para ela.

— Há muito tempo desejo conhecê-la, doutora Aldrian. A viagem foi cansativa ? Farei tudo para que sua estadia aqui seja proveitosa. O mais possível. Adriane era o nome de minha filha. Estranho, quase que completamente esqueci de ter tido uma filha. Agora, não sei por quê, essa lembrança vem despertar sentimentos há tanto tempo esquecidos. Misturados a uma apreensão e ansiedade que causam grande angústia.

Perimuricá, rosto largo, cabelos negros, pele morena, nunca se tem certeza se está sorrindo ou se a expressão aprazível da bocarra larga, é natural. Ele levanta o braço para a doutora, imitando-a. Sua cara é de quem tem de aguentar todo essa encenação pé no saco.

Adriane responde ao cumprimento da doutora, a princípio supondo ser uma senha entre médicos. Fica claro que está sendo tomada por outra pessoa. Devido às circunstâncias, prefere manter-se incógnita. A outra a chamou Aldrian, uma coincidência fortuita de nomes semelhantes. Quem é Aldrian, de onde está vindo, por que é esperada ? Lembra ter lido o artigo na sala de espera que menciona Aldrian Ostrowsky.

— Francamente, os progressos da clínica Ostrowsky são mesmo surpreendentes. A dra. Ariadne permanece entusiasmada. Com as mãos tateia para cima e para baixo a pele dos braços da recém-chegada, fixando o rosto de Adriane com certa e incontida perplexidade, enquanto belisca, por vezes com exaltada inquietação, os dedos na pele das faces de Tauil, como se querendo desmascarar uma farsa. Duvida de que a pele não tenha nada de artificial, a exemplo de enxertos sintéticos.

Com o polegar e o indicador, apalpa as orelhas da fotógrafa, passa as mãos pelos cabelos como se analisando a textura. Sempre a sorrir, manifesta uma simpatia acima do normal. Adriane devolve os sorrisos. Alguma coisa dentro dela, uma inusitada emoção, uma confusa carência, uma ansiedade inexplicável, a faz, num impulso, abraçar essa mulher, essa... Estranha. Esta médica, talvez nonagentária, que pode ser sua filha. Sua neta.

— Romenos são realmente insuperáveis. A médica mostra-se admirada. Em um instante o dr. Irwin Feiffer estará aqui. Ele fará as honras da clínica. I-na-cre-di-tá-vel! Exclama Ariadne ao sair. Per-fei-to. Di-vi-no, simplesmente di-vi-no. A ciência, a pesquisa científica livre do cabresto ético, pode fazer milagres pelo ser humano. Se não tivesse visto, avaliado com o tato, jamais poderia acreditar. Fiquem à vontade, se precisarem de algo disquem o 0900. A dra. Ariadne ergue efusivamente o braço direito na saudação: Fervet Opus.

Ao ficarem a sós, nota que Perimuricá está avaliando os acontecimentos. Aparência de vidente, Xamã do Xingu, como é conhecido entre os seus, com livre acesso entre a natureza humana e a sobrenatural. Do alto do corpanzil rotundo, a expressão, talvez, não sabe ao certo, se de tensa expectativa ou se de suprema beatitude. Atrás da poltrona da doutora, um retângulo emoldura a citação de Hobbes: Bellum omnium contra omnes: “A guerra de todos contra todos.”

— Viagem de navio costuma fazê-la enjoar dra. Aldrian, não é mesmo?

— Fervet Opus. Dr. Feiffer adentra a sala, a saudação prontamente respondida por ela. Perimuricá, calado, apenas levanta o braço lentamente, a olhar com enfado. Adriane simplesmente vai a reboque dos acontecimentos.

— Deus, vocês avançaram muito, as novidades devem ser realmente fantásticas. Dr. Feiffer não cansa de admirar, por vezes com assombro, a textura “quase juvenil” da pele de Adriane. Extasia-se diante do que denomina de “grande qualidade epidérmica”, enquanto manuseia, impulsionado por uma curiosidade incontida, com surpresa e espanto, os membros de Tauil, mesmo os que estão sob a proteção da roupa.

— Doutor Feiffer, por favor, não vê que senhor está sendo incômodo, inconveniente ?

— Desculpe doutora Aldrian, os avanços da equipe Ostrowsky são realmente fantásticos. Ele olha para Perimuricá tentando ser simpático. Tudo que consegue é mostrar-se muito excitado. O índio esboça uma careta como quem diz: Como você pode ser tão desprezível ?

— O guarda-costas, doutora, vai nos acompanhar à inspeção ?

— Ele nunca fica distante de mim. São ordens. Perimuricá desta vez sorri larga e ironicamente para ela.

— Acompanhem-me, por favor. Adriane, Perimuricá e Feiffer, descem alguns degraus, entram num pequeno hall, um elevador industrial os conduz ao sexto nível, no subsolo. Adriane não está à vontade e recosta-se no tórax do “guarda-costas”. Feiffer olha para ela e depois para o índio, como se a censurar tamanha intimidade.

Peri faz uma expressão de quem está à vontade com Adriane, e pousa a mão esquerda em seu ombro, abraçando-a carinhosamente. O médico mexe várias vezes na armação dos óculos no nariz, para cima e para baixo. Feiffer está nervoso, o dedo indicador inquieto, parece tentando concentrar-se em algo. Não consegue atinar, as idéias estão dispersas. A impertinente e incômoda presença de muito ruído psi atrapalham as tentativas de concentração. Pressente algo de muito errado, não sabe o quê.

Chegam no sexto subnível da clínica. Dr. Feiffer os conduz a um laboratório onde são processados líquens e se fazem estudos da associação dos mesmos com um fungo superior, e com algas que se reproduzem sobre rochas e esporos fúngicos, com multiplicação vegetativa por sorédios.

— Deles, prossegue o médico, como a senhora sabe, são produzidos os ácidos liquênicos... No passado, uma grande quantidade de antibióticos: a doutora sabe, substâncias de sustentação, após as aplicações do soro hepático.

Adriane se interroga: “Se eu sei, como ele diz, por que está explicando todo o processo ? Talvez seja o procedimento rotineiro.”

Entram em outra sala, na qual três dezenas de câmaras, umas horizontais, outras mais verticais, cilíndricas, rotativas, contendo dois exemplares humanos, cada uma, de "hot-dogs" aprisionados ao longo do eixo metálico central. Eles giram lentamente como frangos numa máquina de assar, as espinhas dorsais ligadas a um dessalinizador com trinta e três nichos, um para cada vértebra da coluna espinhal.

A diferença entre os hot-dogs e os frangos nas máquinas elétricas de assar, é que não estão literalmente espetados, mas presos ao eixo central. A tecnologia é muito avançada, o “Reich dos Mil Anos” está, supostamente, a caminho da longevidade. O antigo mundo mudou, mas ficaram as sequelas da exploração impulsiva cromagnon do Homo sapiens/demens sapiens por seus semelhantes.

Tauil e Perimuricá não precisam de explicações. A inacreditável tendência à tortura como compensação de suas demências endêmicas, fizeram a Guerra-Fria voltar, não entre dois blocos políticos e ideológicos que se enfrentam, mas entre seres humanos, pessoas, próximas umas das outras. Umas, lutando fanaticamente por uma quimera fantasiosa: a expansão cronológica dos limites de sobrevivência da idade avançada. Outras combatem os "spas" porque tiveram parentes e conhecidos, vítimas de suas experiências “alquímicas”, demenciais, em direção à realização mítica do sonho do soro da juventude.

Tauil observa atentamente: A metade do lado direito da câmara contém painéis luminosos que indicam a progressão lenta do estado mórbido, comatoso, prolongado, dos “pacientes”. A outra metade é transparente: os “hot-dogs” podem ser observados por ela. No rosto deles uma focinheira ligada ao oxigênio, posicionada numa reentrância giratória anexa aos lados da câmara. E um depósito de água ligado por um tubo ao esôfago, mantém hidratados os corpos. Ao aproximarem-se das câmaras inevitável sentir um odor intenso e sulfúreo de enxofre.

Doutor Feiffer prossegue explicando os processos químicos, através dos quais o humor aquoso peculiar das glândulas sudoríparas expele, através dos poros da pele, as secreções, por vezes viscosas, que exulam das fadigas orgânicas dos "hot-dogs".

— Quando mais resinosos os líquenes, melhores os resultados dos medicamentos geriátricos fabricados para manter a aparência da pele jovem. Os comentários científicos de Feiffer soam aos ouvidos horrorizados de Adriane, como se ele não fosse humano. Como se este médico fosse incapaz de qualquer mínima empatia com aqueles seres padecendo indizíveis horrores, para manterem, aparentemente mais jovens, por mais tempo, a viciosa vaidade dos "pigs".

— Infelizmente, nesta fase, quando a extrapolação orgânica do fígado já foi extirpada, eles não duram muito tempo. Três horas após a morte cerebral, não se podem utilizar mais nenhum dos subprodutos químicos das secreções. Afirma, não sem uma ponta de soberba, o doutor Feiffer.

Adriane não tem condições de continuar vendo e ouvindo as barbaridades desse “médico”. Ele por certo deve ter muitos argumentos “científicos” para esnobar o código de deontologia médica legado por Hipócrates a seus discípulos.

— Os médicos juravam cumprir. “Infelizmente, a maioria deles apenas jurou.”

— Como? Por favor, repita, não a ouvi.

— Ahã, claro, não foi nada. Estava falando comigo, um pouco alto demais.
Perimuricá faz uma careta de desaprovação, como quem comenta: A barra aqui é muito pesada. Não tarda eles vão descobrir que você não é a pessoa que pensam ser. Aí a cobra vai fumar.

Tauil busca forças para conter todo asco e aversão à tonalidade compenetrada dessa voz subserviente, vaidosa, narcísica, afetada e necrófila, do doutor Feiffer.

O mal-estar cresce quando ela segue por um longo corredor, às pressas, acompanhando de perto o dr. Feiffer de volta à grade de entrada do enorme elevador industrial. Ele foi chamado com urgência, teriam descoberto sua identidade ? Estariam sendo identificados intrusos ?


O RESGATE DE TAUIL
E PERIMURICÁ
PELOS “HOTS”

Enquanto caminham apressadamente pelas galerias, os olhos esbugalhados de repugnância, não contêm algumas lágrimas. Olham as imitações de seres humanos, os hot-dogs por trás das grades, a pele brilhando de suor antígeno (anticorpos que combatem o envelhecimento das células), produzido para os "pig-spas". Tauil pára para observar, por momentos, a mórbida luminosidade azulada, do outro lado das grades das celas coletivas. É pega pelo braço por Perimuricá. Suave e vigorosamente ele sugere que ela se apresse.

Tauil pode ouvir a lentidão dos passos dos que se aproximam das grades. Alguns "hots" caminham mui devagar, como se seus gestos se desdobrassem num tempo paralelo, em câmera lenta. Ela aproxima-se para melhor vê-los. Sabe ser uma curiosidade mórbida, mas não pode evitar. Perimuricá, ao lado, encosta-se, por segundos, as mãos crispadas seguram as grades que os separam dos "hot-dogs" prisioneiros do "spa" Ostrowsky & Tauil.

Ela gostaria de trocar algumas palavras com eles. Mas deles saem apenas sons incompreensíveis, murmurantes, mal-assombrados, mortificados, tronchos. Perimuricá solicita, ao pegar novamente no braço de Adriane, que ela venha logo. Estão se distanciando muito de Feiffer. O médico insiste para que se apressem:

— Venham logo, caminhem mais depressa.


Adriane lembra nitidamente das frases do “Livro de Figuras” de Alberto Rangel:

"Belial empinava-se na montanha de escórias
fumegantes e sulfúreas
bem ao centro do reino de gritos e estertores
onde Éris, a Discórdia
dominava os infernos."

As frases vêm de muito, muito longe, de uma memória antiga que volta a estar próxima através de uma mecânica psi de simultaneidade. Esses seres humanos, vistos dentro desses galpões, através das grades, não passam de escórias fumegantes e sulfúreas, gritos e estertores que não conseguem sair da garganta dos hots prisioneiros: ouvem-se sons ininteligíveis, tartamudeantes, inimputáveis, provenientes de um desespero intraduzível, de uma situação desumana, de absoluta iniquidade: Dantesca. Satânica. Medonha. Horrenda.

Estampidos de rajadas de metralhadoras se fazem ouvir, tiros de pistolas e revólveres. Adriane imagina está havendo treinamento em stand de tiro. Peri sorri enquanto repete:

— Chuva, chuva.

Que quer ele dizer com isso? Pergunta-se Adriane. Não pode estar sabendo se está ou não chovendo, estamos no sexto subsolo. Ou está mencionando uma chuva de chumbo grosso?

Feiffer corre enquanto berra:

— Depressa, precisamos sair daqui. Entram no elevador que começa a subir lentamente, a porta aberta. Entre o quinto e o quarto pavimento ascendente, Charles Brown puxa o braço de Rossi:

— Venha logo, não há muito tempo. Saltam sobre o teto e abrem uma portinhola de acesso ao interior do elevador.
Feiffer, sentindo-se ameaçado, berra:

— Esses malditos "dogs", estamos sendo invadidos. O médico abre um escaninho de metal na parede interna do elator, tira um bastão na extremidade do qual, o choque de impacto é acionado, quando em contato com outro corpo.

— Os “dogs” estão nos invadindo, alerta Feiffer outra vez.
Charles Brown salta para dentro do elevador e esquiva-se do primeiro golpe, enquanto pergunta:

— Você é Adriane, a mulher de Rossi? Viemos libertá-la. Feiffer, outra vez, quase consegue acertá-lo. Atingido numa segunda tentativa, metade do corpo de Bronw é arremessada para fora. Para não ser esmagado pelo movimento do elevador em ascensão, ele salta da borda para o piso externo.

Brown reage aos espasmos, o medo de cair prisioneiro dos "pigs" é simplesmente superlativo. Mas seu ódio é maior. Recupera-se do choque e corre em direção às escadas. Meio trôpego alcança o elevador muito lento, e consegue saltar outra vez para dentro, com a ajuda de Peri, que se esquiva ativamente dos ataques da adaga elétrica do médico.

Feiffer acerta a ponta do bastão no braço de Peri. O índio sente o impacto, parece imobilizar-se por segundos, enquanto tenta um novo golpe. Charles Brown joga-se sobre ele, segurando-lhe o pulso e o impulso criminoso, a meio caminho de atingir o índio pela segunda vez. Peri, imóvel, apenas olha, estagnado como uma estátua que, de repente, pudesse ganhar vida. Aproxima-se um passo em direção ao Charles que está para ser atingido uma terceira vez.

As luzes internas piscam e voltam a acender-se, enquanto o elevador retoma, ora a subida, ora a descida, conforme acertam os controles manuais, ao atingirem os mesmos.

Fervet Opus, lê-se o slogan do spa, em letras estilizadas, inscritas em preto, em meio a uma bandeira vermelha, comprida, vincada nas extremidades, dentro de uma das salas de exercícios que se faz visível de dentro do ascensor. Na luta que se trava, Brown arranca um cartaz de dentro do elevador, que fazia a propaganda por consumo de cremes para a pele, bronzeadores, chás, refrigerantes, comprimidos, tudo com a marca globalizada dos produtos exclusivos das clínicas Ostrovsky & AnaTauil. Comercializavam via Internet.

Outra vez o elevador pára súbito em resposta da mancha digital do painel, atingida pela mão de Feiffer. Ele tira da reta a cabeça, no momento que seu opositor atinge com um golpe, os controles da geringonça tecnológica à antiga. Outra vez quase é atingido com a ponta da arma de choque.

Perimuricá havia caído de joelhos após um golpe lateral do bastão na mão de Feiffer. A aparência de quem não havia se recuperado do choque elétrico anterior ao choque lateral, levanta-se, enquanto com a palma da manopla direita entrepernas, agarra os bagos de Feiffer por trás, enquanto levanta-se alavancando-os em direção à nuca, para cima.

Um petardo talvez não fizesse o mesmo efeito. Peri puxa para si o braço que funciona como uma alavanca. Os membros inferiores do médico projetam-se, enquanto o peso do tronco, sem o apoio das pernas, faz com que o corpo vibre numa cambalhota involuntária, as pernas impulsionadas simultaneamente para cima, para trás, e outra vez para frente. Completo o salto mortal, cai com violência, desaba no chão como um pesado fantoche: o tronco esparramado, de bruços, a cabeça entre os pés do índio.

Após girar sobre si mesmo, bate com estrondo, de cara, no piso. O supercílio direito de Feiffer abre-se, ele começa a sangrar pela boca, por força dos dentes quebrados, e pelo nariz. Brown pega o bastão, puxa os cabelos longos e lisos do médico. Feiffer ainda se debate com firmeza, com um golpe de perna, mesmo caído de bruços, atinge com o calcanhar as costas de Brown. Ao levantar-se o doutor é fustigado várias vezes no tórax pela extremidade de choque do bastão.

Entre espasmos e convulsões, Feiffer treme-treme até perder os sentidos. Brown acompanha tudo, fazendo uma careta de menosprezo e aprovação: Morre, porco imundo, morre, maldito "pig-spa". O médico já não reage ao choque, mas a descarga elétrica prossegue atuando na extremidade do bastão seguro por Brown, indo e voltando do corpo possivelmente sem vida.

— Venha, Brown, logo, depressa. Os apelos de Rossi fazem o líder do grupo de "hot-dogs" voltar-se para eles, mas o elevador volta a funcionar e não há tempo dele saltar para fora.

Brown está possesso: a revolta, a raiva, o ódio, somatizam-se.

Poderia ter matado Feiffer com a metralhadora de mão, preferiu ficar aplicando choques. Ao parar no 2º andar, ele salta do elevador movendo rápido o pescoço para os lados, como se a intuir para onde deve dirigir-se em busca de "pig-spas" para enfrentar e combater. As sirenes doem nas orelhas. As equipes de segurança, armadas e a postos, buscam os invasores.

Guiados por outros membros do grupo de "hots" Adriane, Rossi e Perimuricá correm em direção às saídas. Os "hot-dogs" são perseguidos através de um túnel que perpassa o rombo feito com explosivos num dos andares subterrâneos por onde penetrou, para resgatá-los, a equipe de Charles Brown.

— Vocês, sigam, depressa, vão. Rossi berra, volta-se e corre, agachado, em direção ao interior do spa. Ele conta com algumas vantagens que não podem ser menosprezadas: é mais jovem, seu reflexo, em teoria, funciona melhor. Apesar de não ser treinado no uso de armas, pode perfeitamente manejá-las a curta distância. Agacha-se e pega uma metralhadora de um "pig-spa" atingido no olho direito. Com uma pistola atira no colete em direção ao chão, atingindo o "pig" morto, verifica que é a prova de balas. Tira o colete e veste-se nele.

O feitiço por pouco não vira contra o feiticeiro: um hot-dog atira nele, confundindo-o com um inimigo.

— Sou eu, Rossi, não atire. Vamos buscar Charles Brown, ele está no andar de cima. Vamos, logo, venha. Chegar ao andar superior pelas escadas não é fácil.

Para Rossi, confiante na ação mais ágil de seus reflexos, energizado pelo comprimido sintético, ganha coragem e realiza algumas ações que até o momento não se julgava capaz. Ganha a frente dos "hot-dogs", abrindo caminho entre os "pig-spas", atingindo-os na cabeça, no rosto, no pescoço, onde a proteção dos coletes à prova de bala não chega.

A audácia por pouco, outra vez, não cobra sua vida. A metralhadora emperra, a pistola está descarregada. Um "pig-spa" aponta para sua cabeça e atira, enquanto ele recua e se joga no chão. Não foi atingido, mas agora com a aproximação do inimigo, poderá ser. Não há tempo para levantar-se e correr. Um "hot-dog" chega ao local e dispara a queima-roupa no "pig" quando Rossi, indefeso, não mais contava salvar-se.

A adrenalina à mil. O resgate de Adriane e Perimuricá, virou ofensiva suicida. Sente-se irado, provisoriamente, mais líder do grupo do que o próprio Charles Brown. Os outros "hots", vendo o exemplo de Rossi, imitam-no, vestindo os coletes à prova de bala dos "spas" mortalmente atingidos.

O ataque relâmpago, de surpresa, está mostrando resultados. Os "pigs", por algum motivo que lhes escapa, deveriam estar mais guarnecidos, mas não estão. A noite de tempestade, com raios e trovões, permitiu a explosão da parede do spa e a infiltração dos "dogs", sem que fossem logo percebidos. Exceto a poucos momentos, os alarmes começaram a zoar.

Através dos corredores onde se encontram as enormes jaulas, sentem o odor das peles suadas, mantidas nessas prisões amplas, à temperaturas constantes entre 40º/45º centígrados. A revolta transforma-se em ódio. O ódio em perigoso sentimento de vingança. A turma de Charles Brown luta como Os Sete Samurais do filme, muito antigo, de Kurosawa. E a sorte está com eles. A quantidade de inimigos é maior. Devem sair logo desse lugar, antes que aumente a dificuldade. Os pigs devem ter pedido reforços.
À força armada.

Finalmente chegam até onde está Charles Brown, ferido por estilhaços no ombro, um na perna e outro no peito, no interior de uma sala de controle eletrônico envidraçada. Rossi lança uma rajada de metralhadora na parede de vidro que se estilhaça com a sucessão de outras rajadas dos que estão com ele. Os "pigs", do outro lado, imaginam que conseguiram cercar Charles Brown e invadem o recinto atirando nele.

Os "pigs" são recebidos por rajadas de projéteis nos membros superiores, pelos "hot-dogs" que entram pelo lado oposto do recinto. A violência do impacto faz com que pernas e pés patinem no ar, enquanto a parte superior de seus corpos desaba para trás, com violência despencam no solo. As cabeças caem em direção ao chão. Cli, clic, Charles Brown, clic, clic, clic, sem munição, ainda aperta os gatilhos, quando é puxado para fora, por cima dos milhares de estilhaços de vidro, rumo à saída. Os "pigs" não atingidos mortalmente recuam.

— Os controles... Acionem os controles, Charles Brown insiste: abram as grades, as jaulas, livrem os prisioneiros. Rossi percebe-se na sala de controle dos movimentos das portas de aço, atrás das quais são mantidos prisioneiros centenas de "hot-dogs". Elas podem ser abertas. Após rápida análise dos botões, made in England, ele aciona a abertura eletrônica.

Pelos monitores vêem os portões abrindo. Alguns "hot-dogs" que estão mais próximos a eles, chamam outros que parecem apáticos, a sentarem-se vagarosamente nas centenas de beliches nos quais estavam prostrados. Levantam-se, motivados pela informação de que devem se dirigir até o rombo na parede, em certo local estrategicamente destacado do pavimento térreo.

Os caminhões protegidos por lonas da cor verde-oliva, começam a chegar com reforços para os "pig-spas". Sob comando de oficiais, os soldados penetram no spa pelo portão lateral aberto, em frente ao qual se descortina a paisagem do Parque do Ibirapuera, próximo ao monumento em homenagem aos Bandeirantes. Vieram restabelecer a lei e a ordem na propriedade privada do spa, invadida pelos “vândalos hot-dogs". Os retardatários que esboçam reação são simplesmente escorraçados dos corredores, de volta ao interior das jaulas.

Parte minoritária consegue fugir. A maioria, os mais lentos, sem condições psicológicas para manter uma atitude consciente, de vigília, abatidos pela falta de vontade, de desejos, de ânimo, as esperanças sem consistência, vencidos pelo abatimento e pelo delírio, são massacrados pelos policiais. Os que nem sequer se deslocam dos beliches, são poupados pela insânia covarde dos polícias. 111 "dogs", dos que se encontravam no interior das celas, foram mortos traiçoeiraemente, a sangue-frio. Estavam desarmados e indefesos. Os poderosos são sempre covardes. O poder corrompe, perverte, desmoraliza.

Adriane e Rossi são conduzidos de volta ao clube. Estão retirando de Charles Brown as balas com que foi atingido. Zeca Zumbi, o apelido vem porque nunca ninguém viu Zeca dormir, está eufórico. Proclama à Tauil e a Rossi:

— Vocês vêem, idosos podem ser fogosos. Ainda damos para o gasto, estão sabendo? Que acham vocês?

— Foi incrível, eu não sabia o que fazer. Eles me tratando como se eu fosse outra pessoa. Chorando, Tauil divide seu segredo e suas mágoas ao exclamar, emocionada:

— Meu Deus, aquela monstruosidade, minha filha? Neta? E chora, soluça, entra em crise de pranto.

Rossi a abraça:

— Fica calma, está tudo bem, o pior já passou.

Uma senhora aproxima-se dela com uma cápsula:

— Tome, você vai dormir, vai lhe fazer bem. Nesse lugar, pensa Rossi, tudo se resolve com um comprimido. Ela ingere, e em poucos momentos entra num sono agitado.

Duas semanas depois, a Igreja do Salvador dos Últimos Dias, a qual, antigamente, pertencia o pastor Antunes, promove as Olimpíadas entre as várias zonas em que estão situados os templos. Para a realização desses jogos olímpicos entre seus membros, o Conselho Central da Igreja distribui um regulamento impresso comunicando aos pastores oganizadores, com a minuta dos horários das competições e jogos de salão: Local: Centro de Treinamento da Força Armada, antiga Polícia Militar.

Na capa da minuta, vê-se o desenho central de um atleta com o número 111 impresso na camiseta, homenagem ao massacre do spa, onde foram chacinados, covardemente, cento e onze "hot-dogs" dentro das celas. A “grande imprensa” ignora o evento interno da Igreja do Salvador dos Últimos Dias. Apesar de seus principais jornais não terem muito mais a noticiar em suas quatro páginas diárias. A Força Armada da repressão e a Igreja do Salvador dos Últimos Dias, conforme crônicas de jornais, comemoraram, através das minutas dos jogos, ou Olimpíadas, o assassinato coletivo de 111 prisioneiros "hots" no "spa" rebelado.


MAMAÉS (ESPÍRITOS)
TAMBÉM MORREM

Tauil, Rossi e Perimuricá ganham a estrada rumo às praias nordestinas, até as mais ermas e distantes do litoral piauiense. Rodam pelas vias ensolaradas, pela paisagem nostálgica, numa pick-up Ford GKS/3M, cabine dupla, Lighting, modelo WYW 125@. Pelas janelas, ao passarem por Porto Seguro, Santa Cruz e Cabrália, litoral da Bahia, toda essa beleza de paisagem lhes pareceria inútil, não fosse a presença deles. A Rossi ocorre que este pensamento é produto de um grande narcisismo. Uma variedade de milhares de milhares de espécies, usufruem a beleza e as profundezas do mar, assim como da superfície de praias e ilhas.

Poucas pessoas, por problemas de câncer de pele, se interessam em frequentá-las. Talvez porque não haja mais seios jovens, bundinhas empinadas, manequins dentes de leite, cabeleiras escovadinhas, lindinhas, limpinhas, implantes querendo mostrar-se em largos sorrisos colgates, xoxotinhas exibindo os pentelhos através das margens transparentes do bandeid. As praias se livraram do trivial variado, do frescobol, das candinhagens e exibicionismos tipo "marketpulled".

As percepções de Tauil debilitam a auto-estima. Rossi, intrigado com a sequência incongruente dos acontecimentos, pergunta-se: por quê ele ? Por que ela?

Anoitece. Perimuricá sorri sozinho no banco de trás. A paranormalidade faz com que veja nitidamente os mamaés que tinham escapado dos pássaros: canarinhos, gaviões, bem-te-vis, araras, tucanos, jaburus, papagaios e reiscongo. Os mamaés aparecem mais de noite, quando os passarinhos estão dormindo.

Peri contempla esses pequenos seres alados: eles podem bicar e conduzir os espíritos para o maior de todos os inimigos dos que morreram: os predadores de espíritos, as aves da rapinagem, a águia, e o gavião grande são os melhores exemplos. Mamaé (espírito), quando fica na Terra, não é eterno. Mamaé não pode ser ferido por espinho, caranguejo, sapo ou fogo. Se morrer outra vez, termina tudo. E só quem pode matá-los, devorá-los, são os pássaros. Eles não se confundem com os espíritos do tipo “faíscas quânticas”. Não são escravos de nenhum senhor, de nenhuma ideologia. Satã não tem poder sobre eles. São benfeitores da natureza, guias de animais. Pessoas desumanas e cruéis costumam serem favorecidas por eles quando se inserem na matéria sutil de seus pensamentos, mudando o curso de ações que seriam praticadas contra as leis mais simples dos sentimentos, da amizade e da cooperação entre os seres.

Perimuricá fica imaginando os mamaés, a sobrevida silvestre. Gostam da selva. Ao dormir cada um deles se abriga no corpo rastejante das serpentes, para não serem conduzidos ao bico das aves de rapina. Muitos morrem de uma vez por todas porque negligenciam suas defesas, são capturados por pássaros. Peri matuta sobre como vai ser difícil seu mamaé sobreviver num mundo onde os passarinhos vão crescer em quantidade, enquanto os espíritos vão diminuir cada vez mais em número, com o passar dos dias.

A companhia dos brancos serviu para ele saber que vai ser mesmo difícil seu mamaé sobreviver. Não aguentaria ficar longe das matas, viver no mundo de aço, metal, semáforos, borracha, cimento, asfalto, máquinas e vidro, do homem branco. Os mamaés não gostam do odor de carne dos que permanecem vivos, nem do cheiro proveniente dos objetos que usaram. Os espíritos dos brancos não convivem bem com os mamaés dos povos da selva.

Peri conhece um nidjienigi ou xamã, da tribo Kadiwéu do Pantanal.

O feiticeiro previu o que está acontecendo com os mamaés, e o que aconteceria com os espíritos dos brancos, aprisionados “na outra lua que não se ver”. Talvez nem tudo estivesse perdido. Perimuricá foi um xamã, um médico, um santo para seu povo. Poderá, talvez, ir para um lugar especial, onde seguiam os espíritos dos brancos quando saíam de seus corpos, sem vida, para um lugar muito, muito distante. Poderá ser levado outra vez, a nascer entre matas fechadas e selva. Ou, isso ele não sabe, no corpo de outra raça, ou mesmo num corpo de homem branco, em outra Terra, num outro lugar, dos muitíssimos lugares nos planetas entrestrelas.


A TRANSFORMAÇÃO
DE NORTON NUMA
“FAÍSCA QUÂNTICA”

Pernoitam por meses ao longo do litoral do Piauí. Os planos de seguir rumo sul/sudeste em direção às praias fluminenses foram se alterando ao sabor das influências do improviso, do repente.

O único canal de tvvisão que ainda está no ar é a tv fantasma, os "full-time movies". Talvez Lúcifer consiga levá-las até outro planeta habitado nesta Via Láctea, ou fugir em direção a outra galáxia. Tauil e Rossi têm certeza, salvo surpresa, de que serão, em pouco tempo, os últimos seres humanos vivos no planeta Terra.

Não sabem como vão reagir a essa angústia que tende, talvez, a se intensificar. Inexistem sentimentos coletivos de liberdade, igualdade, fraternidade. Inexiste esperança coletiva. É tudo muito fácil para eles, inexiste coletividade com quem dividir direitos, deveres e responsabilidades. Estão sós neste paraíso natural, como nunca ninguém esteve. Adão e Eva neste éden neo-pós-moderno. Rossi olha para o alto e se pergunta se numa das estações orbitais ainda existem, como num aquário, alguns astronautas sobreviventes, vai saber? A tvvirtual talvez mostre isso. Que importa? Quem se interessa?

No caminho do litoral saíram de Pequenos Lençóis, Ponta das Gaivotas, Tutóia, Ilha do Coroatá de Dentro, Arpoador, do Amor, Ilha do Caju, Ponta das Canárias, dos Poldros, Pedra do Sal, Atalaia, do Coqueiro, Itaqui, Carnaubinhas, Maramar, Macapá, Barra Grande, Cajueiro da Praia. Rumamos pelo litoral do Ceará rumo a costa do Rio Grande do Norte.

Adriane observa as imagens da tvgost. Hoje ela fixou os olhos no monitor por mais tempo. Estávamos na Lagoa do Caracara, próxima à praia da Barra de Tabatinga, boa para a prática do "surf".

O filme do dia narra os últimos momentos de Norton nos subterrâneos da Serra do Roncador. Um monge está ao lado dele junto a Esfinge, num grande salão onde se vêem as enormes estátuas dos chamados Guardiões Silenciosos.

— Por favor, senhor Norton, venha ao stand seguinte. Acredite, a Esfinge costuma devorar os que dela se aproximam. O senhor pode não ser uma exceção.
— Houve tempo para saber se decifro ou não, e qual meu enigma. Responde Norton. Édipo decifrou a trindade do tempo do homem. Saberei interpretar ou será por demais obscuro, difícil?

— Para cada ser, o imprevisível começa no momento em que é gerado. Apenas um embrião, e já está a vivenciar seu enigma. Quanto mais cedo compreender isso, mais chance terá de decifrá-lo. As palavras do monge soam para Norton como um desafio.

— “O estar preparado é tudo”, Norton cita a frase de Hamlet. Mal sabe ele: o cristal mental de que é feita a Esfinge já o havia devorado mil vezes vezes mil. Já havia rasteado seu código genético por milhares de gerações passadas. Ele nem suspeitava.

A Esfinge, mesmo antes de penetrar o grande "Salão dos Guardiões Silenciosos", encontrou a maneira mais adequada de vê-lo frente a frente com o que julgava ser seus pontos fortes e suas fraquezas. A Esfinge daria uma mãozinha no sentido de fazê-lo perecer através delas. Rossi se junta à Tauil na vidiação do movie do dia da tvvirtual. Ele comenta:

— Norton parece confiante demais. Talvez tenha ingerido a cápsula de alguma droga que tenha aumentado muitas vezes a autoconfiança. Norton pensa em tudo, terá pensado em comprimidos, barbitúricos e outras drogas de incentivo neural. Militar enérgico treinado na lida dos conflitos armados e em combates de guerra psicológica está excessivamente senhor de suas atitudes. Vê-se que sua atuação crítica é tênue com relação ao lugar em que se encontra. Rossi comenta:

— Ainda não percebeu que nesse sítio, nessa guerra, nada é previsível. Tauil ouve Rossi comentar quase que num murmúrio. Os grandes olhos dela estão, não sabe bem os porquês, temerosos e atentos.

O grande salão subterrâneo exibe preciosidades impressionantes para qualquer colecionador de antiguidades.

Norton está impressionado com a aparência bizarra deste museu arqueológico perdido no subterrâneo do sertão amazônico. Vêem-se ídolos de jade encravados com pedras preciosas, armas, fetichismos bárbaros, imagens do nascimento de deuses, vasilhames, e outros utensílios do período minóico, com desenhos em alto relevo de teogonias, em pura cerâmica, tipo Cnossos. Há grande quantidade dos mais diversos objetos manufaturados por habitantes da civilização pré-incaica e por ceramistas cretenses. Há armas e jóias: taças, louças, talheres, baixelas, cinturões e escudos de cobre, prata e ouro.

Os olhos do explorador fixam fascinados uma máscara funerária semelhante à das tumbas de Micenas e das egípcias. O olhar ávido desloca-se agora em direção à brilhante leitosidade de uma grande pérola branca dentro de um encaixe de metal que se abre horizontalmente. Então esta pérola lendária não é apenas folclore “o olho dos incas” realmente existe, está aqui, diante de seu olhar perplexo de cobiça.

Uma surpresa sucede-se à outra. A cupidez exagerada de Norton desloca-se em direção a um crânio de cristal asteca com olhos de jade. Ele comenta de si para consigo: Parece vidro soprado. Esse tipo de crânio tem propriedades mediúnicas e premonitórias, que podem ser largamente exploradas por quem o detém entremãos.

A transparência de uma adaga com lâmina sutil chama a atenção, ao mesmo tempo em que se dá conta de que não visualizou ainda o rosto do monge cicerone. Uma curiosidade intensa e mórbida toma conta da reflexão do explorador, por alguns breves segundos. O guia sente a ganância incontida dele por um punhal de cristal de dois gumes. Comenta:

— Senhor Norton, alguns antigos a chamavam “adaga de cristal”. Este museu guarda preciosidades que fariam os colecionadores de sua civilização arriscarem tudo, a vida inclusive, para tê-las, senti-las, pesquisar suas origens. Elas se perdem no limiar dos tempos. Vejo pela extraordinária cobiça de seu olhar, que o senhor sabe valorizar estas preciosidades.

Norton ouve o outro como se um eco da própria voz. De alguma forma o outro é ele mesmo. Perde de uma vez a vontade de há pouco, vê-lo, olhar nos olhos do monge. A sensação que o envolve, é a de uma intimidade a espelhar tudo que espera de um combatente inimigo. O monge está aqui sozinho, não há sinal de mais ninguém. Se houver mais alguém, estará tão longe que nem preciso me preocupar. Quem poderia socorrê-lo de um ataque traiçoeiro? Ora, traição é minha rotina.

A ansiedade por olhar no rosto do anacoreta renova-se com duplicada ansiedade. O monge abre a redoma de vidro das peças com a simples aproximação dos dedos. Norton, bruscamente, empunha a adaga de cristal e desfere golpes mortais em locais onde bastaria um soco para desacordá-lo, ele a impele ferozmente várias vezes. Quer vê-lo morto. Sair deste lugar levando consigo a maior quantidade possível dessas riquezas fabulosas, sem que ninguém possa atrapalhar. Tem certeza de que merece tal recompensa. Organizou a Expedição, chegou até aqui, descobriu o lugar. Não mais vai perder tempo com cortesias.

— A hora de decisão, meu caro, afirma com olhar alucinado, enquanto esfaqueia compulsivamente o monge uma dezena de vezes.
Mata e abandona o cadáver. A curiosidade por vê-lo face a face diluiu-se. Intui: se olhar esse rosto, algo de inusitado poderá acontecer. E esse algo poderá destruir-me. Um homem precavido vale por dois.

Por um longo tempo permanece inutilmente a buscar uma saída das câmeras, túneis, passagens, poços, corredores, salas e frinchas desses labirintos. Nada. Esforços inúteis. Agacha-se para descansar, beber um pouco do líquido do cantil. Ao erguer a cabeça para o gole, vê o religioso de pé. Mesmo sem ter visto o rosto, sabe que é a mesma pessoa, pelas sandálias nos pés. Levanta-se transtornado, pistola em punho:

— Quem é você, maldito? Que faz aqui? Volte para o inferno. Ele desfere vários tiros, atinge o lado direito do rosto, a cabeça, o tórax.

— Nem todos os caminhos que guiam para baixo, conduzem igualmente para cima, senhor Norton. O monge puxa lentamente para trás, com ambas mãos, o capuz. Norton olha estarrecido o rosto branco e liso, sem feições, do outro. Gradativamente alguns traços vão aparecendo. Sente-se melhor. O rosto que se está formando é o dele. Isto o tranquiliza: não faria mal a si mesmo.

Começa a visualizar os registros akásicos das operações militares e paramilitares das quais participou. A memória traz ao nível consciente as tensões que precediam as matanças indiscriminadas. A ferocidade de alguns combates. O prazer cromagnon de sentir o sangue adversário respingar no rosto após o golpe de misericórdia. A produção excessiva de adrenalina, o transe maligno a partir do qual liderava os subordinados. Sente também, de modo estranho e recorrente, dor. Muita dor. As dores produzidas pelos ferimentos em suas hostes, nas de seus adversários.

O prazer de estar em situações de risco chega à tona com a necessidade de convivência subordinada aos senhores das trevas, dos conflitos fabricados, das barbáries, das mortes, das guerras. Serviu, servil, a esses senhores da usura, da estupidez e da ignorância, do complexo industrial-militar dos EUA, de Israel, de países árabes.

Seu rosto refletido no semblante do monge traz à memória um sem número de situações "horribile dictu", aonde covardia, agressão, taras, traição, ódios, crimes, padecimento atroz em suas hostes, e nas dos inimigos, acontecimentos trágicos vitimando civis, por ele liderados em operações de guerra: o karma de sua vida nesses instantes finais, passa na tela mental, como se fosse um filme virtual. Então é verdade: quem está a morrer vê a vida toda passar diante dos olhos. A expressão do rosto contorcido é medonha. Ele berra.

À soma desses horrores vêm somar-se dezenas, centenas, milhares de faíscas quânticas que nele penetram como se fossem um enxame de marimbondos de fogo, transformando ossos, plasma, a pele e músculos, em poucos segundos, num amontoado de cinzas que uma corrente de ar dissolve em instantes, misturando-a com a areia pardacenta do chão subterrâneo.

Perimuricá observa Adriane admirar-se com o fim do “filme do dia” da tvgost. O jornalista está impressionado. Custa acreditar que o corpo, a mente, a memória, do todo poderoso líder da Expedição Norton tivesse, realmente, virado pó. Em tão pouco tempo, o ex-traficante de matéria-prima estratégica, minério de urânio concentrado em pasta amarela (isótopos U-235 e U-238), e plutônio, para grupos militares de países do Terceiro Mundo, num instante, esse homem familiar dos coquetéis em embaixadas, amigo íntimo da diplomacia de bijuterias, das chancelarias latino-americanas e européias, não fosse, agora, mais que cinzas diluídas num pé de vento.



A CAPITAL
FEDERAL
DOS “PIGS”

A faísca quântica Norton, sua alma, como os místicos de antigamente haveriam de denominar, em poucos segundos transforma-se, com milhões de outras faíscas, em ondas de VHF/UHF. A faísca Norton havia partido da estação orbital invisível, datada em um espectômetro de referência de elétrons, ligado a um altímetro e a outro espectômetro, este último de florescência de raios X. Tecnologia da “sintonia quântica” via satélite.

A faísca quântica Norton descobre estar fazendo parte da energia que faz funcionar os bilhões de aparelhos da tvmagnéticofenômenoosmótica. É isso: é preciso morrer para saber como a coisa toda funciona. Ele agora está monitorado por um modelo sensorial, um organizador biosensor que mantém estável o nível de autoconsciência das partículas. Este modelo encontra-se numa estação retransmissora, direcionado a partir de uma sofisticada infra-estrutura paratecnológica, na capital lemuriana, no interior da selva amazônica.

A infra-estrutura em terra capta sinais de uma torre tetraedral para projeções de imagens anímicas em órbita da Terra. O satélite se realimenta a partir de um mapeador espectroestereoscópico, acoplado a um radiômetro térmico de infravermelho e a outro espectrômetro. Este, de raios gama, articulado a um eixo de painéis, controlado por um radiômetro de microondas, antenado em faixa média “SS” de ganho médio, e em faixa “S” de baixo ganho, tencionado em fontes de coletoras parabólicas de energia, calor e luz solar.

Essa parafernália de tecnologia de ponta transformou a Terra em um campo psi luciferino, neurounificado, globalizado. As faíscas quânticas, ou espíritos humanos desencarnados, sem forças para vencer a lei da gravidade em direção ao cumprimento de seus desígnios de desenvolvimento anímico, ficaram aprisionados pela lua invisível, cumprindo a lei do eterno retorno à satanização mortífera, terminal, da raça humana no planeta Terra.

Rossi imagina: sem poesia, a alma do homem está aprisionada para sempre no castelo do Drácula Virtual, na lua invisível, do outro lado da Terra, com posicionamento simétrico à Lua natural. E ninguém pode fazer nada. A descendência Lúcifer/Caim venceu. Terá vencido mesmo? Todos esses acontecimentos, como queriam fazer acreditar alguns ilustres cientistas, são uma maneira pacífica de extraterrenos livrarem a Terra da praga espécie humana satanizada: Homo sapiens/demens/sapiens.

As profecias se cumpriram. O tempo na Terra passou para todos os Homo sapiens/demens. Ao idoso casal do fim dos tempos resta a memória. Tauil traz a idéia de quando, da última vez que estiveram em Brasília, no Planalto Central. Na época, os jardineiros mantinham ainda a aparência externa do lugar. A grama aparada da Praça dos Três Poderes.

Olham-se com ternura, acham que isso é amor. Ambos, simultaneamente, lembram dos versos de Kerouac:

"O amor é o cemitério populoso da podridão
Leite derramado dos heróis
Destruição de lenços de seda pela tempestade de pó
Carícia de heróis vendados presos nos postes
Vítimas de assassinatos aceitas nesta vida
Esqueletos trocando dedos e juntas
A carne trêmula dos elefantes da gentileza
sendo despedaçada pelos abutres
A fria Esperança do Gólgota pela esperança do ouro
Morte por longa exposição à desonra
Mais gargantas cortadas que grãos de areia
Amor: saber beijar minha gata na barriga
A suavidade de nossa recompensa."

Aproximaram-se da rampa do Palácio do Planalto, caminharam curiosos entre os membros decrépitos dos assessores jurídicos, dos parlamentares, dos ignocratas, dos juizes que se faziam presentes. Viram a guarda de honra do presidente perfilada. Muita movimentação: estava em curso os rituais de um cerimonial de fantoches, vaidosos até o estertor. Depois seguiram até a Esplanada dos Ministérios.

Foram vistos por magistrados, autoridades do Supremo, áulicos da imprensa, promotores, desembargadores e ministros... A nítida sensação de que não mais pertenciam àquela raça. Todos pareciam ser extensões das curvas de cimento armado dos palácios da capital federal. Seres humanóides. Criaturas em seus últimos gestos semoventes. Burocratas representantes fanáticos da propriedade privada do capitalismo cromagnon.

Eles, mesmo nos estertores, não paravam de lutar pela manutenção dos privilégios corporativistas do poder político e econômico primitivo, selvagem. Para Tauil foi uma visão impressionante: aqueles jalecos dos poderes centralizados, mantendo privilégios à “pig-spas”, até a derradeira cardiopatia. Outra vez a memória traz à tona a poesia, desta vez nos versos de Junqueira Freire:
"Os áulicos salões
Onde reinavam
A mentira
A traição
O vício
E o crime."

Pareciam sombras inúteis, semoventes, cheias da insustentável empáfia do poder (inútil tentativa de mostrarem alguma dignidade). Rossi pergunta a Tauil se não está sentindo o mesmo odor que ele. Aquela fragrância desagradável e odiosa que sentiram quando próximos às celas onde prisioneiros “hots" aproximaram-se deles por detrás das grades, nos corredores subterrâneos fétidos da clínica dos “pig-spas”.

— Sim, responde ela, a transpiração desses usuários dos produtos das clínicas dos “spas” Ostrowsky e Tauil...Enxofre, como se estivessem usando as pílulas, sabonetes desodorantes, pastas de dentes, cremes e loções de barbear, cosméticos à base do suor antígeno dos “hot-dogs”.

A juventude de Tauil e Rossi parecia desagradar àqueles “pig-spas” que paravam por momentos para vê-los. Não havia simpatia neles. Os ignocratas, assessores e parlamentares dos “lobbys” da capital federal, decrépitos demais, sem futuro algum, que não fosse os conchavos entrerugas. A presença do casal fim dos tempos, serve apenas para afrontar a vaidade decadente dos “pigs” do Planalto.

Esses políticos olhavam-nos com indisfarçável rejeição. Eles, que sempre primaram pela aparência, pela conservação da pele: esses políticos ocos, sem essência... Exceto a conservada pelo aspecto, por tratamentos de beleza nos salões das lipoaspirações, cirurgias plásticas, estéticas, medicamentos rejuvenecedores, quinquilharias "hightech" de uma raça em extinção, a justificar a coisa principal de suas vidas: a vã vaidade. A perversidade social.

A ilusão da boa aparência na ilusão de fazê-la esconderijo de uma essência de larvas aterrorizando-se mutuamente e a seus eleitores, a quem nunca correspondiam a confiança das urnas. Nunca se importaram em ver a vaidade como um processo de fermentação, que os fazia apodrecer mais rápido por dentro, enquanto, artificialmente, tentavam tudo para parecer bonitinhos, arrumados e adequados, por fora. Aparência e quantidade de perfumarias, sempre. Essência e qualidade de valores coletivos e ética, nunca.

Tauil, a memória disponível para tudo que quiser, lembra de um poema de um autor do princípio do século XXI, sobre esta cidade, nessa ocasião Capital Federal da Reeleição Presidencial. O poema, reproduzido no romance PSYCOCITY :

Brasília do corporativismo
Das aposentadorias com idade de trombadinhas
Tombadas crianças em direção aos guzanos
Marginalizadas por gerações de políticos necrófilos
Brasília, capital dos magistrados miraculosos
A serpentearem em torno do berço esplêndido
Sugando a aura de cada recém-nascido
Garantia para que não haja futuro
Eles conseguiram
Eleger o presidente “cavalo de Tróia”
Do real que valia um dólar
Que deu ao povo uma inflação baixa
E lhes tirou tudo o mais a que têm direito
Brasília dos motéis à Lady Cinderela
Capital da memória coletiva negativa
Das perebas e viroses terminais
Cidade que se vinga dos eleitores
Órfãos de tudo
Negando-lhes a mais elementar Ética.
Brasília dos lobbys piratas do ensino privado
Vaca folclórica dos boiardos do Pelourinho
Que abortam o futuro
E entronizam as atrozes políticas a fragogate
E à “rei Mulatinho”
Algoz feroz e impiedosa dos semteto, semterra
Semsaúde, semsalário, sememprego
Terra dos parlamentares malucos por tudo
Exceto por Ética
Amaldiçoados nos terreiros da anaconda e do arco-íris
Capital do futuro inexistente
Aliados dos supostamente adversários
Dos malandros ministros
Mumificadores de gerações
Investidores fanáticos de um amanhã
Sempre amanhã, sem presente.
BenditosejaJeováquemefarásairdaterradoEgito

Tauil e Rossi saíram da proximidade deles. Poderiam, a qualquer momento, ser agredidos por essa corja “respeitável” de autoridades da política à pig-spas. Que lhes restava fazer? Só mesmo esta sensação agradável de sentirem-se distantes deles, em tudo, na idade, inclusive. Que bom que a idade os distancie tanto. Como se estivessem em outra dimensão do existir.

Que bom estejam livres dessa proximidade maligna. Não é tudo o que poderia querer um ser humano? Estar livre da poluição do contato com outros seres humanos, produzidos pela tecnologia luciferina das faíscas quânticas ? Não é para isto que se isolavam de seus grupos originais e partiam em férias ? Para saírem da proximidade da saturação familiar e social dos grupos em que viviam ?

Rossi pensa que agora compreende a solidão. Solidão não é estar só, é estar inadequadamente acompanhado. Peri chega-se à memória de Tauil. Deve ter virado pó. Sentia-se inquieto quando muito tempo num lugar. As percepções de Perimuricá ganhavam em intensidade e se renovavam com a mudança de paisagem, como na maioria das pessoas. É uma reação psiorgânica natural. Encontrou um Norte. Segundo ele, ia continuar combatendo os "pig-spas", ajudar no que fosse possível, a libertar os "hot-dogs" da tirania institucionalizada dos "pigs".

Rossi, em sincronicidade com Tauil, ideoplasma: Aquele Che Guevara do fim do mundo comenta para consigo, rindo às gargalhadas desse D. Quixote fim dos tempos.

O homem, pensa Rossi, foi criado para delirar. “A matéria é feita de sonhos”. Realidade, consequência desse êxtase, gera mais delírio. Temos todo tempo, companheira, para sermos viajantes da quietude da paisagem. Busca Tauil. Ele a abraça e submerge num “tsunami” de ternura. Uma ternura da qual, até então, não se sentia apto. Tinha fé que aquela cultura de fanáticos por bugigangas eletrônicas informatizadas, por vaidades e novelas de narcisismo necrófilo, entre uma e outra oferta de varejo, não recomeçaria outra vez.

O planeta está cansado de humanos. Que Tauil não fosse Sara, nem ele chamar-se-ia Abraão. Não haveria nenhum descendente para construir uma cultura a Caim. Tauil fica a cismar com as cismas de Rossi.

Amavelmente chega-se nela, abraça-a, olha a mulher nos olhos cheios de graça, apesar da idade.

Tauil sente os dedos do companheiro a apalpar seus ombros, os cabelos longos, os olhos a implorar:

— Diga o que você quer, querido, diga.

— Você me promete uma coisa Adriane? Por favor, diga que sim.

— Sim, claro que sim. O que poderá ser que ele quer ? Não, não prometo nada, nada mesmo. Diga primeiro o que você quer. Só faltava, ser a última mulher da Terra e aceitar fazer promessas.

Por um momento Rossi regride a certo estágio chauvinista, a início do século XXI: "Por que uma única vezinha você não faz, sem reclamar, algo justo de fazer?

— Diga... Eu farei... Prometo.

— Mesmo?

— Garanto. Qualquer coisa. O que é?

— Nunca fale com anjos. Nunca mesmo. Não podemos começar tudo outra vez.

— Anjos. Ora, anjos... Anjos de natureza vegetal ? Anjo lagarto, ave, serpente?

— Jure. Por favor, jure.

Adriane, agora uma idosa cheia de manias, defesas e narcisismos. Nos dias de seus pais costumavam dizer das mulheres que aprendiam a contar até seis, porque não havia fogão de sete bocas. E eles riam disso.

— Eles riam disso, fala Rossi.

— Quê? Que você disse?

Se depreciavam suas mulheres assim, imagina o resto do mundo.

— Você está falando sozinho outra vez.

— Nunca fale com anjos. Você promete mesmo?

— Sim, claro. Prometo. O que ele quer dizer com isso?

— Não aceite nada deles.

— Que será que ele quis dizer com isso?

— Nada mesmo. Nenhuma promessa. Se aparecerem não fale com eles.
— Bom Deus! Pare com isso querido.

— Se algum anjo aparecer, diga que não quer ter filhos.

— Anjos! Está ficando bobo? Como se ela pudesse alguma coisa com anjos. Contra anjos.

— Nunca vi nenhum anjo a vida inteira.

— Rossi mantém a esperança: Eles não virão dessa vez.

— Não pode ser. Somos as últimas testemunhas. Não precisa ficar caducando. Você não tem o direito de decair, de prescrever-se. Mesmo que queira você não pode cair em desuso, você é o último homem da Terra. Segure a peteca.

— Querida, ser o último, tudo bem. Começar tudo outra vez, nunca. Tanto horror, todo aquele horror... Não, não quero ser essa espécie de criminoso. Nunca mesmo.

Sjsprojsjisjsjteunss.

O zumbido soou nítido em seu significado na mente da mulher:

(Não quero ser instrumento de nenhum Deus “ex-machina” disposto a começar tudo de novo.)



 

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