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Contos-->O CAVALO DE SÃO ROQUE - QUASE MEMÓRIA -- 09/09/2006 - 22:43 (Délcio Vieira Salomon) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CAVALO DE SÃO ROQUE

- quase memória -

Délcio Vieira Salomon



"Era um nome, ver o que. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da razão desse encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de algum crime arrependido, fosse, fuga de alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte". (Riobaldo em Grande Sertão: Veredas)



Menino, jamais soube o que esta expressão “cavalo de São Roque” realmente significava. Com freqüência ouvia-a da boca de minha mãe, dirigindo-se ou referindo-se ao homem, que, desde cedo, via no lugar de meu pai.

Quando nasci, dois anos antes a morte de pai, ele já pertencia a nossa família. Paradoxalmente o considerávamos nosso irmão de criação e, ao mesmo tempo, algo assim como pai, ou seja, o homem que a bondade do falecido deixara em seu lugar, numa espécie de gratidão invertida.

Para ser o guardião de minha mãe, nova como casou, viúva haveria de ficar. Seria uma espécie de Castor, a quem Egisto confiou Electra para mantê-la “virgem”?! No caso, viúva intocável?!... Seria isso? Ou simplesmente o provedor substituto? Mas a título de quê? Talvez, o pagamento a algum grande favor que tinha feito para ele, meu pai, desde o dia em que lhe deu guarida em casa? Ou, de fato, o tributo àquele com quem se identificara, desde o primeiro dia, ao ser acolhido, para o que desse e viesse, na dor e na alegria, até que a morte de ambos desfizesse aquele laço eterno de amizade e reconhecimento recíprocos? É possível até que fosse o resultado da intuição de meu velho, seguida da empatia de minha mãe. Apesar da situação confusa, pairava como espécie de profecia sem revelação, mas guardada no inconsciente coletivo de todos nós. Qual segredo guardado a sete chaves numa arca sagrada, sempre intocável.

Nunca soube, porque nunca perguntava pelo que via dentro de casa, particularmente pelo papel das pessoas que circulavam no comércio afetivo da constelação familiar.

E família para mim era aquele amontoado de todos nós, a viver juntos, sob o mesmo teto, a beber da mesma água e a comer do mesmo pão. Ajuntamento de gente, mas, ao mesmo tempo, união, alegria, tristeza, tudo, partilhado, na interação de uns com os outros, sobretudo aos domingos, durante a ajantarada, ao nos ser servida a abundante suculenta macarronada, preparada por minha mãe, todos sentados ao redor da mesa ou, por causa da limitação desta, espalhados pelos outros cômodos com o prato na mão. Em rodas de conversa, onde predominava a dos mais velhos, falando de coisas e usando certas palavras, que eu, menino, quase nada entendia. Mas admirava-os por isso mesmo. Supriam toda a carência de minha ignorância.

Nada indagava, porque, creio hoje, toda criança vai aceitando o mundo em que vive como algo fatal. Era assim, porque era assim e tinha de continuar assim.

Nunca soube o significado da expressão, disse-o há pouco. Mas, de vez em quando, criança encabulada, suspeitava de alguma coisa. Ficava, porém só na desconfiança diluída, que em breve se desfazia, sem deixar registro.

Um homem forte como ele, mãos enormes, calejadas, grossas, pesadas, era meu terror particular, a partir dos sete anos de idade, quando comecei a atinar com as coisas. Com algumas coisas.

Apesar de ter sido tênue a suspeição, jamais consegui esquecer o dia, em que ele chegou, tarde começada, de volta do trabalho de pedreiro e foi logo direto ao porão sem porta, no fundo da casa, debaixo do banheiro e da cozinha, onde guardava e amontoava peças e mais peças de refugo das demolições: telhas, pias, privadas, janelas, portas, portões, portais, maçanetas, grades, caixas e volumes de tacos amarrados, sobrepostos uns sobre os outros, quantidade enorme de madeira, canos de chumbo, de ferro... Tanto entulho e junto a tudo isso, as peças novas, ali, à espera do dia e da hora de serem instaladas em nova casa que estivesse sendo construída.

Gostava de mexer naquele quarto-de-despejo. Sempre encontrava um objeto - resposta ao pretexto de “brincar de casinha”, sob a tenda de colcha ou lençol, armada por mim e por Celinha, menina dois anos mais velha que eu, filha de dona Dolores, vizinha, cuja casa era oposta à de dona Silvéria.A nossa ficava no meio das duas. A casa de Dona Silvéria parecia mal assombrada. E ela era, para todos nós, uma feiticeira, pois a víamos sempre desgrenhada e mastigando fumo. Celinha era loura, gorduchinha, de cabelos longos, muito clara.

Eu era o pai e ela, a mãe. Marido e mulher para todos os efeitos, representados no lúdico mundo da inocência irresponsável e no fingimento de deitarmos juntos, abraçadinhos. Para seguir o ritual que ela comandava, até mesmo ficar pelado como costumava na hora do banho.

Fazíamos guisado com as rolinhas, que conseguia matar com o bodoque de elástico preto e forquilha de goiabeira, presente de um dos irmãos mais velhos. A caça era fritada à banha de porco, no fogão, feito com tijolos e trempe catados no porão. Usávamos como frigideira a lata de goiabada Peixe. Para a farofa, o resultado da farinha trazida por ela com os ovos roubados do canto do muro, atrás das bananeiras, onde nossas galinhas e as da “feiticeira”, fugidas de seu quintal, costumavam botar.

Naquela manhã, ao tentar tirar do meio do entulho, pequena pia, tipo lavabo, puxei de debaixo dela, estreita tábua comprida e com ela veio e rolou barranco abaixo um vaso sanitário novinho em folha. Rachou-se ao meio. Tratei de ajuntar os dois pedaços e com a ajuda de minha parceira refiz a peça e tornei a colocá-la no mesmo lugar.

À tarde, já tinha esquecido da estripulia aprontada no porão. Foi quando ele chegou e, ao procurar pelo vaso a ser assentado no dia seguinte, constatou a extensão do acidente provocado por minha imperícia. Teria que comprar outro, igualzinho, da mesma marca, cor e tamanho, para substituí-lo. Impossível àquela hora. Prejuízo na certa.

Subiu em três passadas os degraus da cozinha, onde estava tomando café com leite e mastigando fatia de pão com banha de porco derretida (manteiga sempre foi um prazer que minha infância desconheceu!) e me agarrou pelo braço, me sacudiu tanto que o pão saltou longe – “foi você, seu berdamerda, que quebrou o vaso de privada lá em baixo, não foi?” - “foi sim, mas eu o arrumei e coloquei no mesmo lugar”.

Não adiantava nessas horas ser honesto e dizer a verdade, muito menos apresentar esfarrapada justificativa, por mais inocente que fosse. A mentira talvez fosse a melhor defesa. Mas, em minha ingenuidade, não sabia mentir, ou melhor, ainda não o tinha aprendido.

Só me recordo que levei violenta palmada na bunda e em seguida um pescoção na cabeça com tanta força que voei, pelo corredor de sete metros (naquela hora deveria ter vinte), desde a cozinha até o quarto de mãe e fui bater, como um saco de batata, desmanchado e mole, de encontro à porta do quarto.

Mamãe, ao me ver estatelado no chão, aos prantos e aos gritos de “não me bata, não me bata, prometo não fazer mais”, correu comovida a me socorrer e, enquanto me consolava e me dava água para acalmar-me, berrou com toda a bravura de uma loba, a proteger sua cria: - “seu brutamontes, seu cavalo de São Roque, você não é o pai dele, não tem o direito de espancá-lo desta maneira; não é assim que se faz com uma criança de sete anos”.

“Cavalo de São Roque” a partir daquele dia veio a ser para mim o xingamento de minha mãe ao homem que procedia como animal e eqüino. São Roque deveria ser famoso santo, apresentado nas estampas ou santinhos, montado a cavalo. Ou, então poderia ser Seu Roque (não fazia muita distinção!, a designar o nome do dono do cavalo, certamente conhecido de mamãe em sua terra natal desde remotos tempos).

Esta foi a nebulosa suspeição do significado daquela expressão que, pela primeira vez, passou pela minha cabeça.

Outra vez, já esquecido desta possível descoberta semântica, surgiu a possibilidade de significar simplesmente “burro” ou “ignorante”.

Hora do jantar. Estávamos todos tomando sopa de macarrão com feijão, batata, carne rasgada e tutano de boi, em que se misturavam umas pelancas, preparada pela Chiquinha e por ela servida com a atenção e o carinho de segunda mãe para comigo.

A conversa dos adultos era animada. Ele contava o caso daquele dia, acontecido com sua turma de trabalho. O relato das moças normalistas, as do bonde do Colégio Santa Maria das irmãs dominicanas, que passara frente à obra em construção sob sua responsabilidade.

Ao surgir o “especial” carregado de moças, todas uniformizadas, saia azul marinho, blusa branca com o emblema de um S sobreposto a um M sobre o bolsinho do lado esquerdo, em gótico e em relevo, e de boina também azul, da qual descia o cabelo em trança – o mesmo bonde celebrado por Drummond em seu primeiro poema, quando o descreveu como “o bonde cheio de pernas” e que o obrigava a exclamar: “para que tanta perna meu Deus?” - diante daquele espetáculo de beleza e juvenil sedução, os pedreiros e serventes começaram a assoviar e a mexer com as “recatadas” alunas do colégio das freiras. Ele se sentiu no duplo dever de protegê-las e de repreender os operários.

Quando, ao coroar a narração estava se gabando de seu feito, eis que minha mãe, em tom de galhofa, disse: “Você é mesmo um cavalo de São Roque. Quê que tem homem mexer com moça? Você não entende mesmo dessas coisas. Nunca passará de um cavalo de São Roque”.

Chiquinha ria às gargalhadas sem parar. E a risada contagiou a todos. Até ele riu da fala de minha mãe.

Sim, para mim, naquela tarde anoitecida, “Cavalo de São Roque” já passou a significar também “burro, toupeira”. Na minha limitada leitura infantil, todos acharam graça da ignorância rústica daquele homem, que se julgava entendedor de tudo.

Mais uma vez frágil hipótese. Por certo, o verdadeiro significado não deveria ser este.

Meras conjecturas. Não sei até hoje se minha mãe, quando soltava aquele “lá vem o cavalo de São Roque” ou diretamente: - “você não passa mesmo de um cavalo de São Roque”, o fazia para xingar ou para gracejar, mas sempre com o mesmo sentido. Ficava sem entender, porque entre os dois havia muita liberdade de comunicação, mas, sobretudo, muito respeito. Não era humilhação, nem sarcasmo, embora, no conteúdo e na forma de suas palavras, houvesse aguda ponta de ironia.

Nunca o vi retrucar, nem reclamar. Freqüentemente sorria com sorriso amarelo. Como quem se vê entre a culpa da tragédia e a graça da comédia. Ou melhor, na linha que separa, dentro de nós, o segredo e a fatalidade. No limite da divisão, mas sem pender nem resvalar para um dos lados. Quem sabe, sua reação não seria a mesma de todos quantos escondem, entre o amor à estética e a vergonha, leve defeito de nascença? O certo é que aquilo me deixava às vezes encucado. Rapidamente, porém, esquecia e passava a não dar maior importância.





O coração de meu pai era o próprio coração da bondade, se esta tivesse a mesma anatomia, órgãos e membros corporais como nós. Como dizia minha mãe, “seu pai, diante da desgraça e do infortúnio alheios, era uma manteiga derretida”. Facilmente se comovia, e facilmente também solucionava qualquer problema, quando se tratava de socorrer um inválido ou um necessitado.

Antônio, segundo mamãe contava, surgira à porta de casa, numa noite de chuva, todo ensopado, tiritando de frio. Era um rapaz de seus dezessete anos, pouco mais novo que ela.

Naquela ocasião, ela era praticamente uma noiva recém saída do altar. Casara muito jovem, com 18 anos. Sonhava desde menina em ser freira. Vovó Belica, apoiada por vovô João, se opôs violentamente. Se insistisse, sofreria castigos e prisão domiciliar. Jurou casar com o primeiro aleijado que aparecesse. Não é que pouco depois da promessa, surgiu sob sua janela, um rapaz sem um dos braços, em cima dum cavalo, para entregar o correio!? Foi justamente com ele, o estafeta Targino, de apelido Cacá, que ela realmente se casou.

Se o destino a atendeu, em parte lhe foi cruel. Ficou viúva muito cedo, com seis filhos para criar. Seu infortúnio se traduzia numa frase que gostava de ouvir: “Tenho dois arrependimentos na vida: o primeiro de ter casado a primeira vez; o segundo, de não ter casado a segunda”.

Achava graça, mesmo sem entender a profundidade do duplo pesar.



- Podem me dar uma sobra de comida, estou morrendo de fome.

- Pelo que vejo, de frio também e certamente não tem nem onde dormir.

Assim o recebeu meu pai. Olhou-o dos pés à cabeça. Reparou que era de compleição forte, mas que a falta de atendimento às necessidades básicas de todo ser humano, a fome em primeiro lugar, o tinha enfraquecido até o supremo limite de ter de violentar-se para pedir a esmola de um prato de comida.

Via-se que não era um mendigo. Rapaz, provavelmente acabara de chegar do interior. À procura do que fazer, do que comer e dum lugar para dormir.

Mãe já tinha se aproximado do alpendre, onde os dois estavam conversando e se assustou com aquela figura: muito jovem, de boa aparência nas feições, porém de modos rudes e bastante inibidos.

Pouco a pouco foi revelando que existia nele a timidez só quando o ambiente fosse estranho e hostil. Em ambiente em que pudesse sentir confiança, até que tinha a língua solta. Solta em termos. Por intuição ou por traço de temperamento sabia quando contê-la.

Mais tarde, mesmo sendo eu menino, de parco entendimento, ficava admirado de ver como ele se entusiasmava numa longa conversa, particularmente se o assunto fosse a guerra, Hitler, sobretudo política, Getúlio Vargas, de quem foi sempre admirador e entusiasta seguidor, Olegário Maciel, ex-governador do Estado, Juscelino, prefeito, mais tarde governador e presidente, Benedito Valadares, Arthur Bernardes e vários outros, ícones de sua elo-qüente admiração, que a memória paradoxalmente só me serve para não lembrar. Ah! Sertillanges, como tinhas razão: “la memoi-re c’est une faculté qu’oublie”!

Na noite em que surgiu, era o retrato da consternação. Por isso minha mãe entendeu logo que devia providenciar para ele, comida e algum trapo de roupa já descartada. Ligeiramente entrou até a cozinha a fim de tomar as providências.

Enquanto esquentava a sopa de legumes e carne, que sobrara do jantar, o diálogo com pai continuava.

- Qual é seu nome mesmo?

- Antônio.

- Antônio, de onde você veio?

- De Juiz de Fora. Há três dias fiquei órfão de pai e mãe.

- Vítimas de uma tragédia, por certo. Doença não deve ter sido. A febre amarela já foi domada. E a “espanhola” também. Não acredito que os dois morreram no mesmo dia, na mesma hora, da mesma enfermidade. Não é verdade? Seria muita fatalidade!
- .........

Depois de breve silêncio, como a medir as palavras, indagou:

- Como se chama mesmo o patrão?

- Targino, mas pode me chamar de Cacá, porque é assim que todos me conhecem.

Pausadamente prosseguiu:

- Para o senhor entender a vida, seu Cacá, perdi meus pais estupidamente. Meu pai era ferroviário. Trabalhava perto de Mariano Procópio, na rede de trem-de-ferro que liga Belo Horizonte ao Rio de Janeiro.

- Conheço. É a Central do Brasil. Mas os dois foram atropelados pelo trem?

- Nada disso, não senhor. Como estava dizendo, ele trabalhava na rede ferroviária e costumava fazer plantão. Era noite. E chovia muito. Uma tempestade como nunca vira desde que nasci. Estávamos em casa, minha mãe e eu. Meu pai era filho de alemão e minha mãe, de índio. Ambos eram muito fortes, tinham muito boa saúde. Naquela noite, minha mãe me tirou da cama. Eu dormia cedo, porque muito cedo também tinha de levantar para pegar o batente - serviço de servente de pedreiro, numa construção no centro de Juiz de Fora. Minha mãe me acordou e falou para eu ir com ela, pois estava chovendo muito e tinha que levar agasalho, guarda-chuva e a marmita para meu pai, lá na estrada de ferro. Saímos os dois. Quando estávamos chegando, da plataforma da estação meu pai nos viu, acenou e veio em direção à minha mãe, pelos trilhos, pisando nos dormentes. Não sei como e porque, me atrasei um pouco. Minha mãe, ao ver meu pai, se adiantara com pressa para encontrar-se com ele. Só me lembro que neste exato momento houve um clarão no céu, logo seguido de forte estrondo. Caiu um raio e fulminou os dois, quando ela estava entregando a marmita, o capote e o guarda-chuva para ele. Recebi também parte da descarga elétrica e fui atirado longe. Desmaiei. No dia seguinte é que vi o tamanho do estrago que a tempestade fizera. Os dois estavam mortos e eu acamado, com febre, vômitos, tontura e dor por todo o corpo. Sem parentes, os amigos e os vizinhos juntamente com os funcionários da Rede Central do Brasil ajudaram a enterrar meus pais no cemitério da cidade. Quando, três dias depois, estava melhor, larguei tudo lá em Juiz de Fora, peguei o trem. Todos os ferroviários me conheciam, por isso me deixaram vir de graça até aqui. Cheguei há pouco. Do dia em que meus pais morreram para cá, não pára de chover. Não só lá, pois estou vendo que aqui também. E desde aquele dia, sabe o senhor?, estou sem comer. Nem sei como estou agüentando até hoje.

Neste momento minha mãe acabara de voltar da cozinha, com o prato de sopa na mão.

- Não, Zilda (voltou-se para ela, meu pai). Deixa o prato de comida lá junto do fogão. Arranje uma calça, uma camisa e um paletó para o Antônio aqui.

E dirigindo-se a ele:

- Vá lá ao banheiro, faça o que precisar e troque esta roupa. Pegue as botinas e as meias e entregue para ela colocar juntamente com sua roupa, perto do fogão, para secar.

- Nem sei como agradecer ao senhor, seu Cacá e à dona Zilda.

Disse, parado à porta, antes de entrar no banheiro.

- Não tem nada que agradecer. Vá e faça o que estou falando, porque você está muito molhado e pode pegar um resfriado e até uma pneumonia, o que seria pior ainda.

Enquanto Antônio se aprontava no banheiro:

- Zilda, ponha mesa e vamos sentar junto com ele, para o Antônio poder jantar como se fosse nosso convidado especial para esta noite.

Naquele 19 de outubro de 1915 Antônio entrou para casa e fez tudo conforme sugerira meu pai. Mal sabia que estava entrando definitivamente, como parte integrante e destacada, na família. Parece que o destino se arrependera de ter levado seus pais. Por isso, resolvera substituí-los por outros, conduzindo o filho órfão ao lugar, onde encontraria o que perdera e o que provavelmente nunca tivera.

O futuro mostraria que naquela chuvosa noite, se selaria um pacto de recíproca confiança e, só mais tarde, com o evoluir dos acontecimentos, se lavraria a ata de transferência de responsabilidade, jamais imaginada pelo inquilino de um lar recém instalado.

Inquilino, mas só no início. Jamais um estranho no ninho. Isso ficou sempre muito claro para papai, mamãe, mais tarde para todos nós, seus filhos e demais parentes e os outros acolhidos que vieram a morar conosco.

Sentou-se depois à mesa de jantar e tomou com sofreguidão a sopa de legumes com carne e batata, acompanhada de fatias de pão. Ao fim, foi-lhe servido forte café preto.

A conversa continuou entre os três, sentados diante da terrina de sopa e da cesta de pão, até alta noite. De uma das partes havia extrema curiosidade e da outra, muita coisa para contar.

Lá pelas onze e meia, meu pai sentiu sono e percebeu que Antônio, olhos avermelhados de tanto serem esfregados, fazia força para não cochilar.

- Zilda, coloque no chão do quarto de costura um colchão com roupa de cama e travesseiro para o Antônio dormir esta noite aqui em casa. Amanhã conversaremos melhor. E veremos o que se pode fazer.

Mal acabara a recomendação, os vidros das janelas de repente estremeceram e as luzes da casa se apagaram. Simultaneamente brilhou coruscante relâmpago que cortou o céu escuro de cima abaixo e ouviu-se forte estampido. Bem perto dali, na torre da igreja, acabara de cair um raio.

Quando a luz voltou, no canto da sala-de-jantar, do lado oposto à porta de entrada, estava o Antônio, sentado no chão, encolhido em posição fetal, com a cabeça enfiada entre os joelhos e apertada pelas duas mãos como a protegê-la da descarga elétrica, sua perseguidora desde Mariano Procópio.

Pai e mãe logo compreenderam aquela reação. Antônio ficara irremediavelmente traumatizado pela morte dos pais.

Intuíram que aquela cena seria recorrente: se repetiria dali para frente, em todas as tempestades acompanhadas de relâmpagos e trovoadas. De fato foi o que aconteceu.

Muitos anos mais tarde, várias vezes fui testemunha daquela neurótica reação. Bastava começar a trovejar e as bátegas da chuva baterem nos vidros das janelas, víamos aquele homem forte como um touro, capaz de carregar três sacos de cimento nas costas, correr como um cachorrinho espantado, para o quarto e se recolher ao útero materno de seu inconsciente.

Num gesto de solidariedade e compreensão, o ergueram do solo e o levaram para o aposento, onde já lhe estava preparado o colchão com lençóis, colcha, cobertor e travesseiro para ele dormir. E, quase simultaneamente, o tranqüilizaram dizendo:

- Pode dormir sossegado. Amanhã tudo terá passado.

Pai logo acrescentou:

- Lhe desejo uma boa noite.

E mãe:

- Que Nossa Senhora Aparecida o proteja.

Dia seguinte, quando meus pais acordaram, Antônio já estava de pé. A chuva tinha passado e o sol já despontara no alto da serra. Na soleira da porta da cozinha, olhando ora para o terreiro, ora para o céu, tragava o cigarro que a vida inteira foi a marca registrada de sua preferência: o Jockey Club. Maço branco, mais largo que os comuns. Em alto relevo dourado, a marca e o logotipo de um jóquei em cima do cavalo em posição de corrida, com o típico chapéu, com a aba frontal, à guisa de tapa-sol sobre os olhos, e a tala na mão. Atrás, na extremidade da tampa a fechar a carteira, o selo estreito e comprido do Ministério da Fazenda, correspondente ao imposto cobrado. Lembro que livros, sapatos, móveis, tudo que se comprava era selado. O Jockey Club tinha vinte cigarros ovalados e mais grossos que os cigarros comuns e de fumo mais escuro. Já mais maduro, lá pelos seus trinta anos, acrescentaria a esse hábito, o do uso constante do chapéu de feltro cinza e com fita azul escuro em volta. E nos pés as mesmas botinas marrons que parecia nunca trocar.

- Bom dia, Antônio. Levantou cedo. Passou bem a noite?

Cumprimentou-o minha mãe, dirigindo-se para o fogão, a fim de fazer o café.

- Dormi um sono só. Há muito tempo não tinha uma noite como esta. Nem sei como agradecer à senhora, dona Zilda e ao seu Cacá.

Pai acabara de entrar na cozinha e arrematou:

- Bom dia. Já lhe disse, Antônio, não tem nada que agrade-cer. Estamos cumprindo um dever de humanidade. Aliás, de cris-tão, pois foi colocado por Cristo entre as bem-aventuranças: “com-partilhar o teto com os desabrigados e dar de beber e de comer a quem tem sede e fome”. Portanto, estamos até sendo uma espécie de interesseiros ou comerciantes do bem. Estamos querendo garan-tir nosso lugar no céu. Não diz o provérbio: “quem dá aos pobres, empresta a Deus”? Não sei se você é religioso. Mas aqui em casa, Zilda e eu somos católicos praticantes e tementes a Deus. A Zilda muito mais do que eu. Eu sigo a religião a meu modo. Ela é fervo-rosa. Não perde missa e comunga quase todos os dias.

- Infelizmente não tenho religião. Nem sei se meus pais me batizaram. Desde cedo ouvia meu pai dizer: - minha religião é o trabalho. Menino ainda, me pôs a trabalhar para poder ajudar em casa. Para dizer a verdade é a única coisa que aprendi na vida: trabalhar. Nem escola eu tive. Até hoje não sei nem escrever meu nome. Mas não me fez falta não. Nunca precisei de assinar nada.

- Ah! Isso não pode ficar assim. Desde já lhe prometo que vou ensiná-lo a ler e escrever. Faz muita falta na vida. Ainda mais hoje em dia, em que os espertos acham que todo mundo é bobo e querem passar a gente para trás.

Foi a promessa de minha mãe, que as quatro paredes da cozinha ouviram, com o testemunho de meu pai. No entanto, ela só tinha o primário de quatro anos de escola.

Religiosa e temente a Deus, ela haveria de cumprir aquela promessa de pretensa mestra de ensino primário.. Pelo que soube, aconteceu já a partir do mês seguinte.


Já “membro da família” Antônio tinha muita curiosidade em saber as notícias de guerra e elas só chegavam naquele tempo através dos jornais. A maioria com atraso de dias. Mas era o único meio de se colocar a par dos fatos que corriam na Europa em convulsão naqueles belicosos anos.

Mamãe nos contava que tal foi o interesse e a motivação de Antônio, que em poucos dias já estava lendo os jornais.

Demorou mais tempo a escrever. Aliás, esta dificuldade ficou insanável e foi por mim constatada, quando estava no terceiro ano de grupo e via que ele, já construtor licenciado, vivia recorrendo a minha prima Lourdes para escrever os ofícios endereçados às repartições públicas.

Um dia em que minha prima não pôde fazê-lo, não tendo outra pessoa a recorrer, diante da emergência, pediu-me que o fizesse, copiando, em papel almaço duplo, um ofício já usado, com troca apenas de destinatário e data.

Ficou chateado, porque minha letra, apesar de ser melhor que suas garatujas, era muito infantil. E acabou rasgando o papel e foi procurar uma pessoa, que passou a fazer o serviço daí para frente, mas sob pagamento profissional.

Vinte anos depois vim a conhecer aquele secretário, mas já fazia, em uma máquina-de-escrever Remington, o serviço - os ofícios, os laudos, os relatórios e toda a correspondência do Antônio – o construtor licenciado, que entendia de construção mais do que muito engenheiro diplomado e com anel no dedo.

Escrita, leitura, ambas estão muito associadas à conversação, ou melhor, e no sentido mais amplo, à comunicação. Observação que me traz vívida a presença do Antônio, sobretudo, à noite e aos domingos.

Eram as ocasiões, em que o via conversar muito, seja com o pessoal de casa, sobretudo mamãe, seja com os parentes e amigos, como o Nelson, antigo ferroviário de Divinópolis.

Um parênteses necessário: Nelson era amigo da família e namorado da Chiquinha. Esta praticamente me criou. Mãe trabalhava nos correios, cuja agência por ela dirigida, estava situada em outro bairro. Ia todos os dias pela manhã e só voltava ao entardecer. Motivo por que ficava a maior parte do tempo sob os cuidados de Chiquinha. Em acidente de trem, Nelson, ferroviário da Rede Mineira de Viação, perdera uma das pernas. Estava sempre de bengala para firmar a perna postiça. Apesar do defeito físico, o achava muito elegante. Era alto, cabelos ondulados e sobrancelhas espes-sas. Aparecia sempre de terno, gravata e chapéu - de - palhinha.

Devia ser do Partido Comunista ou, no mínimo, simpatizante. Óbvio que, menino, não sabia o que era isso e quase nada entendia da conversa dos adultos.

Uma noite me levou para tomar café com leite no bar que freqüentava no fim de semana, no centro da cidade. O ano? Provavelmente 1939 ou início de 1940. Todos ouviam o rádio do bar (motivo principal de estarem ali reunidos) e ao mesmo tempo comentavam, na mesa, o noticiário da guerra. Ele, entusiasmado, em defender a Rússia e atacar os alemães. Em reação ao último noticiário ouvido, em silêncio, por todos, arrematou: - Este filho-da-puta do Hitler deveria ser preso e colocado numa jaula em praça pública, para todo mundo escarrar na cara dele.

Pode-se imaginar o nível e o calor das conversações de que participava Antônio e seus interlocutores.

Mas, a partir de certa idade, diante dessas longas conversas recorrentes, já começara a perceber laivo da personalidade do Antônio como “debatedor” fosse qual fosse o assunto.

Ele quase nunca começava a conversa de que participava ativamente. Parece que preferia lhe dessem o mote. Bastava o interlocutor fazer uma colocação, logo a contestava. E tentava convencer o outro de que quem estava certo era ele. Usava um raciocínio tão confuso, citava fatos históricos, datas, personagens, episódios pessoais, enfim fazia uma salada de tal monta, para no fim chegar justamente à mesma colocação, à mesma tese, digamos, defendida pelo interlocutor.

Só mais tarde vim a compreender seu “estilo cognitivo” de amar a controvérsia. Provavelmente tinha sido o resultado dos distúrbios provocados pelas tragédias de sua vida. Deixaram seqüelas profundas.

De qualquer maneira, o transformou num bom “causeur”, admirado por gente muito mais culta que ele e que freqüentavam nossa casa , conciliando o interesse pelo objetivo de alguma construção ou reforma com o agradável papo por ele proporcionado. Talvez ficassem impressionados com sua memória e com aquela maneira “dialética” de dialogar. Percorria as contradições e desembocava na superação, com a mesma segurança dum condutor de bonde a deslizar pelos trilhos, mas em zigue-zague, se os trilhos o permitissem. A analogia é adequada. A semelhança repousava justamente no detalhe desta diferença. Os trilhos de sua dialética permitiam os zigue-zagues de seu raciocínio.

Hoje chego a catalogar Antônio como um “filósofo dialético” por natureza, sem nunca ter estudado filosofia ou ter ouvido falar em dialética. Tal qual Riobaldo o personagem central de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Essa associação me surge, relendo a genial saga sobre os jagunços, no gande chapadão das gerais. Destaco um trecho, que me trouxe ao vivo Antônio discutindo na sala-de-visita em casa, tendo como interlocutor o Nelson da Chiquinha:

"Tem que ter. Se não a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto; mas, fora dessa conseqüência, tudo que eu fizer, o que o senhor fizer, o que beltrano fizer, o que todo o mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondido e vivível, mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador – sua parte, que antes já foi inventada, num papel [...] então não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma...Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor: então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador[...]*






Os dias passavam. Antônio, desde aquela noite de chuva, passou a morar definitivamente em casa de pai.

O fato de Antônio ter batido à porta não fora mera coincidência. Quem acredita no destino talvez atribua a ele o acontecido. O fato é que meu pai estava reformando e ampliando a casa. Da rua, ele deve ter visto as pilhas de tijolos e telhas, o monte de areia e o andaime. Por isso imaginou que ali teria serviço de servente de pedreiro e, quem sabe, de tomador de conta da obra. Meu pai o contratou como servente de pedreiro e conseguiu que ele ajudasse também na construção do acréscimo de um cômodo, onde, para sua surpresa, passaria a dormir.

Trabalhador, muito interessado em aprender o ofício de pedreiro, em pouco tempo dominava toda a tecnologia da profissão e começou a ajuntar dinheiro, com o pensamento no futuro. Pouco, a cada semana, mas dava para amealhar.

Lembro que ele passeava comigo, à altura de meus oito, nove anos, e mostrava-me colégios, mansões, igrejas e ia apontan-do, um por um, aqueles prédios, dizendo que tinha trabalhado ne-les, desde servente até pedreiro, assentador de taco e pintor. Colégio Arnaldo, Igreja São José, a mansão de Olegário Maciel, governador de Minas, e tantos outros edifícios e dezenas de casas tiveram registrados desde o desaterro até a escavação, desde a feitura do alicerce até a cobertura do telhado, desde a interpretação da planta até o acabamento, seja na massa do cimento preparada e espalhada para ser colocada nas formas e se transformarem em colunas, vigas, lajes, seja nas paredes erguidas, nas pedras simetri-camente colocadas, na argamassa puxada pela colher-de-pedreiro, no uso do martelo, do nível (a mostrar a bolha dentro do vidro, verdadeiro talismã para minha imaginação!), da trena, da turquesa, do alicate até da picareta e da enxada, passando pelo carrinho de ferro para transportar todo o material de construção, juntamente com as ferramentas e o próprio ritual que uma obra exige, tiveram as edificações citadas e dezenas de outras, a marca de sua contribu-ição e de seu trabalho. Sobretudo a de seu progresso profissional. Durante anos. Do servente-de-pedreiro vindo de Juiz de Fora até o dia em que conseguiu o diploma de construtor licenciado, depois de ter passado pelo ofício de pedreiro e mestre de obra.

Construtor licenciado. Eis o título que ostentava nas placas expostas à frente de suas construções. Conforme podia constatar durante os passeios em que me levava, com o entusiasmo de um pedagogo e a alegria de homem realizado.

Para ele o dia mais feliz era “a festa da cumeeira”. Levava para lá meus irmãos e a mim para vermos a colocação do galho de árvore sobre o telhado recém concluído da nova casa, qual bandeira chantada no pico do monte conquistado pelo alpinista. Todos os operários, que trabalharam na realização daquele projeto, festeja-vam o término da obra.

Participávamos tomando guaraná e comendo salgadinhos, enquanto os serventes, os pedreiros e ele, o “construtor licenciado”, alegres, às vezes até cantando e sempre com muita conversa ani-mada e repetidas brincadeiras, tomavam a sua cerveja, logo depois que a garrafa da primeira delas acabava de ser estourada contra a parede da frente da casa recém terminada. Fazia parte do ritual..

Para todos tinha o mesmo valor que a inauguração de um navio no estaleiro, de um monumento com descerramento de placa comemorativa ou a entrada triunfal na praça pública dos soldados vitoriosos depois da guerra.



O final do ano de 1919 marcou indelevelmente a vida de Antônio e definiu seu lugar em nossa família.

Já tinham corrido quatro anos desde que batera, ensopado, à porta de casa. Pai ainda era vivo. Viria a morrer só em 1933, dois anos após meu nascimento. De meus irmãos, creio, só o mais velho era nascido.

Antônio estava trabalhando como servente na construção de uma igreja do lado oposto da cidade. Fase de acabamento. O pedreiro-mor revestia de cimento as arredondadas paredes da torre. Faltava pouco para concluir a obra.

Começou a chover e não se podia interromper o assenta-mento da massa, à custa de o reboco e a massa de cimento endure-cerem antes da hora. Seria a perda total do trabalho já começado.

Subindo as rampas rudemente feitas de madeira, pontes de ligação de andaime com andaime, um sobre o outro, em zigue-zague, até o alto da torre, ele conduzia o carrinho, carregado com a massa de cimento, preparada, lá em baixo, por outros dois colegas serventes.

Quando já estava se aproximando do pedreiro-mor, eis que de repente o tempo se fecha, o céu escurece e fatídico raio estoura no para-raio já assentado no alto da torre. Com o carrinho, massa de cimento, dezenas de tábuas e ripas a caírem em bloco, Antônio se despenca lá de cima e na vertiginosa queda, torre abaixo, tem o corpo todo dilacerado de encontro à ferragem, aos mourões e esta-cas dos andaimes, e se espatifa no chão. Surdo baque é ouvido, acompanhado de lancinantes gritos. Todos os operários que esta-vam na parte térrea correm para socorrê-lo. Estava quase irreco-nhecível. Bastante ensangüentado, expondo feridas e ossos quebra-dos em várias partes, seu corpo jaz agora estendido como amorfo saco empapado de viscoso líquido vermelho. Com perda dos senti-dos, mal e mal respira. Sinal apenas de que ainda vive. É carregado em improvisada maca até ser colocado dentro da ambulância. Mi-nutos após, dá entrada no Pronto Socorro.

A noticia do acidente só chegou em casa noite entrada. Meu pai e minha mãe correram para o hospital. Ficaram sabendo que a queda fora grave e deixaria mais graves conseqüências. Cor-ria risco de vida. Mas já estava na mesa de cirurgia e os médicos cuidavam do caso desde sua entrada no hospital. Havia duas horas. Mas até aquele momento não tinham terminado o atendimento e só depois que saíssem da sala é que se poderia ter melhor avaliação.

Resignados, meus pais retornaram para casa. Minha mãe logo acendeu uma vela diante da imagem de Nossa Senhora Apa-recida, que ficava sobre a cabeceira da cama, no quarto-de-casal e começou a rezar o terço. Depois fez promessa a Santo Antônio: se seu “afilhado” homônimo desde aquele momento, sobrevivesse, ela o batizaria na Igreja de Santo Antônio do bairro de mesmo nome, erguida na Avenida Contorno, esquina com Espírito Santo. Igreja que ele ajudara a construir.

No dia seguinte veio a boa nova. Ele estava fora de perigo. Sofrera várias cirurgias pelo corpo. Teria que ficar internado no hospital muitos dias e só quando conseguisse se locomover, teria alta.

Esta, a história fidedigna que mamãe nos contava, desde que eu comecei a tomar consciência da configuração de minha família e em sua estrutura o lugar que Antônio ocupava.

Misto de irmão-e-pai-de-criação, sem ser pai e uma espécie de padrasto, sem ser padrasto. Como já disse em outro lugar, faço questão de o repetir: “a força da reminiscência do progenitor que nunca tivera, somada a do vazio por ele deixado, mas constante-mente ocupado por outro homem, ora identificado com a figura do retrato da parede, montado a cavalo, ora com o “padrasto” das histórias terríveis contadas por mamãe, foi sempre espécie de mis-tério que carreguei comigo”.

Apesar de criança sentia por ele medo, misturado com res-peito e amor.

Dentre os quatro irmãos homens, sabia que Antônio tinha certa predileção por mim. Ao contrário de mãe, cujo xodó era mi-nha irmã mais velha. Nascera de sétimo mês e este fato servia co-mo racionalização para as preferências jamais escondidas de minha mãe por ela. A mais nova, coitada, que nascera dois meses depois da morte de papai, era a “enjeitada”. Ademais era a única loura da família. Deve ter puxado o lado do sangue de mãe, pois vários de seus irmãos eram “germânicos”, inclusive um dos meus tios tinha apelido de “Alemão”. Somente mãe e tia Geralda é que nasceram morenas e de cabelo grosso. Lourdinha, minha irmã mais velha, além dos cabelos negros, da pele morena, era também de uma be-leza de chamar a atenção.

Provavelmente, por ser o mais novo dos irmãos masculinos e ter ficado órfão com dois anos de idade, devia pesar na balança para ser o preferido de Antônio.

O fato de muito cedo, com apenas dez anos, ter sido inter-nado em colégio de padre, fez com que não entrasse em muitas reflexões sobre o papel de Antônio em nossa família.

Por ser o predileto ou por ser o mais novo, a verdade é que tinha muito cuidado comigo. Desde o episódio do vaso quebrado, passou a me vigiar mais de perto e, por saber que era peralta, por intuição ou premonição, salvou- me, várias vezes, do perigo ou socorreu- me na hora exata.

Aconteceu, um dia, vir a quebrar o braço em queda do pé de manga coco, no terreiro de casa. Brincava, solitário, de Tarzan. Imaginei ter os mesmos poderes do artista que via, na matinée dos domingos, no cine Avenida. Amarrei corda no galho mais alto que pude alcançar e me projetei para outro galho na extremidade oposta da árvore, depois de soltar o clássico grito do rei das selvas: - Oho-hohohohohoh!... Mas a extremidade que alcancei não foi a do ga-lho almejado e sim a do chão numa queda violenta. O resultado foi o pulso do braço esquerdo partido em vários lugares.

Mamãe ausente, pois estava na agência dos Correios, nem em pensamento poderia socorrer-me. Foram chamar o Antônio na construção. Ele me pôs no colo e me carregou para seu Zacarias, velho turco que morava perto de casa na rua Rutilo.

O homem entendia de encanamento de braço. O Pronto Socorro tinha má fama. Muitos que consertaram o braço lá, tiveram que tornar a partir o braço, porque ficara torto. Acreditava-se, então, que o fato se devia ao atendimento ser feito por estudantes, estagiários de medicina. Talvez, por se saber de tudo isso, é que fui levado para seu Zacarias.

O duro foi eu, menino de oito anos, agüentar a dor horrível, quando, sem anestesia, ele puxou com toda força minha mão para colocar os frangalhos de ossos do pulso no lugar certo. Depois, lambrecou meu braço com clara de ovo, breu, arnica, cálcio em pó e ajuntou à pasta outros ingredientes misteriosos que só ele sabia. Era seu segredo miraculoso. Apertou várias talas de taquara de bambu em volta, amarrou com gaze e esparadrapo e engessou mão e antebraço. Colocou meu braço numa tipóia e me mandou ter cui-dado, só usar o lado direito. Ainda bem, porque não era canhoto.

Quatro meses após a torturosa operação, estava curado, a-pesar do antebraço ter ficado, no início, fino igual a um rolete de cana. Tão bem feito foi o encanamento que duas semanas depois da retirada do gesso, estava com mamãe acompanhando procissão em Rio Acima. Uns moleques, pouco antes dos puxa-filas darem a meia volta lá no alto do morro, soltaram uma vaca sobre a multi-dão. Foi correria infernal e eu no meio deles, desprendido já da mão de minha mãe, desembalei ladeira abaixo e acabei caindo den-tro duma vala pluvial, à beira da estrada. Justamente sobre o braço recém saído da tipóia. Mamãe ficou assustada. Só depois que a poeira baixou é que a vi. Sua aflição converteu-se num “Deus seja louvado” ao constatar não ter sofrido nada. O serviço de seu Zaca-rias fora perfeito.

D’outra feita, numa manhã, na época das férias escolares, fui brincar com o Nero, vira-lata, que vira nascer, filho da cadela Diana, morta dois anos antes. Pertencia à casa de seu Chico Ferrão, assim chamado por causa da criação de abelhas que tinha no imen-so terreiro de sua casa. Neste quintal brincava de “nego fugido”.

Ao me aproximar do cachorro para tomá-lo ao colo, como sempre fazia, eis que salta e me lasca uma mordida na barriga da perna direita. Todos ficaram apavorados, pois sabiam, menos eu, que o cão estava zangado.

Enquanto me contorcia de dor e de ver a perna a escorrer sangue, correram em casa para avisar e pedir ajuda. Mamãe como sempre estava na agência dos Correios. Só à tarde, pouco antes de voltar, é que ficou sabendo.

Quem me socorreu, mais uma vez, foi o Antônio, que, por pouco, também já não estaria em casa, pois ia saindo para suas obras de construção.

Deixou- me deitado no sofá da sala lá de casa, pegou um dos sacos de correio, com listras verde e amarelo, símbolos da Re-pública Federativa do Brasil, guardados em cima do grande armá-rio feito por papai e que ficava entre a cozinha e o banheiro e cor-reu, escada acima, até a varanda da casa do seu Chico Ferrão, para subjugar o cachorro e jogá-lo dentro do saco de lona e levá-lo para o Instituto Ezequiel Dias, juntamente comigo.

Com muito custo, o conseguiu. Amarrou a boca do saco com fio de luz e prontificou chamar o único táxi da região. O forde bigode do Claudionor que morava na rua Formiga. Colocaram-me dentro do automóvel, deitado no assento traseiro. No banco da frente, com o Nero ensacado e preso entre as pernas, assentou-se o Antônio.

Todo esse cuidado e manobras realizadas não impediram que a fúria do animal rasgasse o saco. Por pouco não fora também ele mordido. Ele e o motorista. Teve de usar segundo saco para reforçar o primeiro.

Ao chegar ao Instituto Ezequiel Dias, fui logo levado para uma sala onde me aplicaram enorme injeção na barriga. Seria a primeira de uma série de dezenove, uma por dia.

No dia seguinte, quando voltei lá, para sofrer a segunda pi-cada, vi no pátio interno, ao sol, como estátua, o Nero com a cabe-ça cortada na parte superior. Sobre a cavidade, à guisa de tampão, um chapéu feito de papel de jornal, igualzinho ao que fazíamos para brincar de capitão e soldado. Fiquei sabendo, que sacrificando o animal daquela forma, conseguiam fazer pesquisa e colher mate-rial para a fabricação do soro anti-rábico.

Graças ao Antônio e ao pronto e correto atendimento fiquei curado e, depois daquelas enormes dezenove injeções, devo ter ficado imunizado contra a hidrofobia para o resto da vida.




Apesar de ele me querer muito, talvez por causa de seu temperamento, cheio de altos e baixos, alternando carinho com surra, apesar, também, de minha pouca idade, ainda sem ter atingi-do o nível da percepção do mundo e da racionalidade do julgamen-to, sem a consciência do que fosse bom ou mau para mim, por parte dos adultos, a verdade é que eu não o queria casado com mi-nha mãe, sobretudo porque o via dormir em quarto separado e não na mesma cama como acontecia com os pais de meus amigos, nas casas dos vizinhos, sem atinar para o significado moral, religioso, jurídico e até psicológico de tal convivência.

Já estava acostumado a não chamá-lo de pai, nem de irmão. Simplesmente era tratado por todos nós como Antônio. Curiosamente Antônio não era somente nome de uma pessoa, era o topos que esta pessoa ocupava na dinâmica de nossa constelação familiar.

Um nome de pessoa ao mesmo tempo de um ícone. Difícil de explicar. Mas para todos nós, irmãos, parentes, fácil de enten-der. Sabíamos que não era nosso pai nem padrasto. Por isso o tratávamos como irmão de criação, mas com a responsabilidade e o halo do pai que não era.

Afinal era muito criança ainda e o que presenciava e o que vivenciava não me permitiam levantar qualquer dúvida sobre aque-la situação. Para mim ela era inteiramente normal.

Continuasse meio-irmão, meio-pai, meio-padrasto. Nada disso me importava. Era o provedor da casa. E para todos nós bastava.

Minha tenra idade, acrescida da aceitação do fato como normal, não me permitiria, de modo algum, levantar a suspeita de que os outros, ou seja, os vizinhos, os conhecidos, as pessoas que entravam em contato com a gente, sobretudo por desconhecerem o núcleo de nossas relações familiares, também assim não pensassem e não aceitassem tudo com a mesma naturalidade que eu.

Mas, repito, todo esse universo de intenções, interpretações, desejos e volições deveria estar ocorrendo dentro de mim inconscientemente. Só vim a compreender tudo isso mais tarde, já adulto, um ano e meio antes da morte de Antônio.



Já tinha ficado em colégio interno e em estudo na universidade, fora de casa, cerca de quinze anos. Quando voltei a conviver com os meus, nossa família não era como antes.

Mãe já se mudara para Porto Alegre com minha irmã que se casara e fora com o marido transferido pela Companhia de Seguros Minas Brasil, para ser gerente da filial no Rio Grande do Sul.

Cada irmão casado e com filhos tinha seu próprio lar. A irmã caçula morava também em Porto Alegre. Acompanhara nossa mãe e conseguira emprego na mesma empresa, onde meu cunhado era gerente.

A casa onde passara minha infância continuava no mesmo lugar, na rua Diamantina, embora em grande parte restaurada pelo próprio Antônio. O terreno também já tinha ficado um décimo do que era. Miha mãe teve de atender à imposta desapropriação para a construção da Avenida Antônio Carlos que passaria nos fundos, ficando a outra parte, que nos ligava à Rua Itapecerica, desligada, ao ser cortada pela avenida. Só lhe restava vender o restante do lote.

Casa e terreno tinham sido comprados por meu pai para realização de seu projeto de criar cavalo. Mal sabia ele que viria a falecer poucos meses depois. Foi quando mudamos para lá. O bar-raco e o miniquintal existem até hoje.

Três anos depois de minha volta, casei-me e fui morar em apartamento do Conjunto do IAPI, no bairro São Cristóvão, deixado por minha irmã, quando de sua ida para o sul.

Na casa da rua Diamantina morava meu irmão Célio com a mulher e quatro filhos. Como Antônio já estava lá, continuou com eles. Um ano depois de minha volta para Belo Horizonte, meu irmão morreu, aos trinta e quatro anos, fulminado por infarto do miocárdio.

Viúva, minha cunhada sustentava a casa, costurando o dia inteiro para fora, economia completada pelo Antônio com seu trabalho na construção civil. Tal qual fizera com mamãe no meu tempo de menino.



Era noite. Acabara de chegar em casa, depois de dar aulas na Universidade Católica, e mal entrara para o quarto, quando o telefone tocou. Do outro lado da linha estava minha cunhada Elza.

Noto logo que o telefonema não é para me transmitir boas notícias. Por coincidência, era o mesmo modo de telefonar de sete anos atrás, ao anunciar-me o infarto fatal que levou para sempre meu irmão.

Antônio tinha acabado de sofrer derrame cerebral, enquanto assistia à televisão.

Ela me pede para comunicar o fato aos demais irmãos e me garante que acabara de tomar as providências de chamar médico e de trasladá-lo para o hospital.

Ao chegar ao Prontocor, vi que Antônio já estava sendo atendido. Os médicos o colocaram no CTI. Com os tubos espetados nos braços e na narinas, só podia concluir que aquele era o atendimento correto. Junto do leito, uma enfermeira acabava de tirar-lhe a temperatura e sacudia o termômetro para o mercúrio voltar ao ponto zero. Antônio respirava ofegante, mas estava completamente inconsciente.

O médico me disse que ele ficaria assim por umas setenta e duas horas. Só depois poderiam avaliar seu estado e a extensão do prejuízo e suas seqüelas que o acidente cardiovascular teria causado. À primeira vista lhe parecia ser grave e provavelmente teria dificuldade de voltar a falar e de locomover- se. Mas teríamos que aguardar. Acompanharia com cuidado o caso e estaria sempre em contato com a família.

O tempo passou. As previsões foram confirmadas. Antônio não mais voltou a falar. Escutava e entendia tudo. Mas não conseguia mover as pernas nem o braço esquerdo. Canhoto, a falta de movimento desse braço deveria ser mais doída para ele do que a paralisia das pernas.

Durante aqueles trinta meses que ainda teve de vida, viveria na cama ou conduzido numa cadeira de rodas. O atendimento médico era quase diário. Tomava quatro ou seis remédios diferentes por dia.

Depois que saíra do hospital, Antônio continuou onde morava, em nossa casa, em companhia de minha cunhada. Mas, como tivemos que vender a casa alguns meses depois do derrame, para fazer frente ao tratamento médico e ao pagamento dos remédios, foi transferido para o apartamento de meu irmão Délio. Ele se ofe-recera para cuidar dele, porque de nós todos era o que tinha mais espaço livre em casa.

As visitas de nossos parentes, amigos e conhecidos eram numerosas e freqüentes. Sobretudo no primeiro mês. Depois foram rareando.

Num domingo de agosto, poucos meses depois do derrame, apareceu um visitante inesperado. Neste dia, por coincidência minha mulher e eu estávamos lá.

Era um dos operários que trabalhava com Antônio há mais de vinte anos. Pedreiro e pintor. Chamava-se Enéias. No início pareceu tratar-se de um velho amigo que vinha prestar sua solidariedade e consolo.

Só o estranhamos, quando revelou o motivo de sua ida até ali. Antônio, bem antes de ter o derrame, tinha contratado com ele um serviço duplo de reforma e pintura de uma casa. Ela ficara pronta naqueles dias. Por isso viera cobrar a quantia tratada e que o Antônio lhe devia, pois a parte do proprietário da casa ele já a tinha recebido. Correspondia apenas à reposição do material e das tintas usadas.

Minha cunhada, mais atirada que eu, tomou a frente da conversa:

- Mas meu senhor. Não está vendo que seu Antônio não pode atendê-lo, sobretudo no estado em que está? Ele já nem da cama consegue sair. Infelizmente quando ele teve saúde, descuidou até de si mesmo. Nunca pagou a previdência para si. Portanto na hora, em que mais precisou, não teve instituto para ampará-lo. Meus cunhados é que estão arcando com todas as despesas. E lhe digo mais. Ele está morando comigo, porque a família teve de vender a casa onde ele estava, uma vez que as economias de todos não deram para sustentar o tratamento.

- A senhora vai me desculpar. Não acredito em nada do que a senhora está dizendo. Quero dizer, em quase nada. Ao menos no principal. Conheço seu Antonio há vinte anos. Sempre morou na rua Diamantina. E era lá que todos os sábados nós os pedreiros, os serventes, os pintores como eu, íamos receber nosso salário semanal. Ele nunca deixou de acertar com a gente. Sempre o dinheiro, contado e separado para cada um de nós, estava num envelope fechado. Recebíamos e assinávamos a folha de pagamento. A senhora está dizendo que ele não tinha Instituto de Previdência, o IAPI. Só se foi para ele apenas, porque para nós ele pagava. Tí-nhamos, todos, carteira assinada. E dinheiro ele devia ter, porque era o construtor – o que equivale a engenheiro de obra – portanto, o que ele ganhava era muito mais do que nós. Tá certo que ele ti-nha....(começou a revelar na voz e no semblante misto de ironia com galhofa) ... como vou dizer.... esposa não, porque não era ca-sado no religioso, nem no civil, mas...

- O que o senhor quer dizer com isso? Que ele tinha uma companheira, uma amante que morava com ele? E essa mulher era dona Zilda, a minha sogra?

-Bem, eu não disse isso. Mas como a senhora, que é da família, está dizendo, deve ser isso mesmo. Ao menos era o que sempre acreditei e de vez em quando meus companheiros, os outros pedreiros e serventes de obra, comentavam. Chegaram até a dizer que a primeira mulher, dona Zilda, não é assim que a senhora a chamou? separou dele e ele agora vive com outra viúva bem mais nova que a primeira... De forma que lhe está deixando, no mínimo, uma herança ou pensão. Portanto, tenho o direito de receber dela o que ele me deve.

Nem bem acabara de pronunciar as últimas palavras, minha cunhada se levantou da poltrona e, possessa, saltou à frente do pintor e lhe soltou na cara:

- Que infâmia, senhor Enéias! E como o senhor é nojento. O senhor acaba de infetar o ar que a gente respira. Me dá asco. Mas o senhor vai engolir tanta calúnia, e para o resto de sua vida há de se arrepender de alimentar tanta sujeira em sua mente doentia. Vem cá comigo que vou lhe mostrar uma coisa.

Puxou-o pelo braço e o levou até o quarto onde Antônio estava deitado e ressonando. Nós todos como automatizados pelo que víamos e ouvíamos, também nos erguemos e nos dirigimos para o mesmo lugar. Da soleira da porta vi a cena que jamais pudera imaginar. Ficou gravada em minha memória, como se eu fosse a testemunha escolhida de insólita revelação. Reservada, durante toda minha vida, para aquele momento.

Nervosa, ríspida, minha cunhada puxou com raiva e de uma só vez cobertor, colcha, lençol que agasalhavam a invalidez ali estendida. Sem a calça do pijama, nu da cintura para baixo. O descontrole dos esfíncteres forçava-o a assim ficar, para poder urinar, através de tubo, e evacuar dentro de um vaso de louça, colocado sob a cama. No momento em que foi descoberto, fomos tomados de grande estupefação: Antônio era um homem mutilado entre as pernas. Não tinha pênis, nem escroto. A perda dos órgãos genitais deixara, em seu lugar, enorme cavidade vermelha. Mesmo cicatrizada, parecia carne viva, estendida de uma virilha a outra, repleta de pregas nas bordas. No centro, leve ondulação enrugada, de coloração mais escura, do tamanho de uma ervilha, ostentava o que restou da antiga uretera: minúsculo orifício, onde fora introduzido o tubo condutor da urina.

Quando menino, o imaginava uma montanha de músculos. Misturando o presente com o passado, via, então, naquela caverna, entre suas coxas, a boca aberta de um vulcão encravado num pe-nhasco em demolição. Num átimo compreendi que todo aquele quadro nada mais era do que o surgimento tardio para nós, sobretudo para mim, do estigma de uma tragédia, que aquele homem, forte como touro selvagem, mas sensível como cordeiro, sem o merecer e sem jamais reclamar, carregara em segredo, desde o dia em que, há quase cinqüenta anos atrás, sofrera a queda da torre da igreja.

Diante do pungente quadro daquela figura ferida física e moralmente, mutilada, dilacerada, vítima de tantas tragédias, pela primeira vez consegui compreender o paradoxo do homem corajoso e valente frente a qualquer perigo ou ameaça, mas amedrontado como cachorro acuado, ao mero anúncio de tempestade. Sobretudo o homem que sempre reagiu em desconcerto a nossas expectativas, ora com a doçura do passarinho, ora com a violência da fera.

O que via naquela cama, tudo explicava. Era a ruína da própria imagem da força de vontade a superar os maiores obstáculos, mesmo quando se via atacado pelos distúrbios neuróticos que ciclicamente o atingiam. Ao mesmo tempo era o homem inibido que sabia esconder a timidez com a mesma cautela que ocultava a mutilação jamais suspeitada.

Despertei de minha viagem pelo passado, sobretudo de minha perplexidade, quando ouvi a voz firme de minha cunhada:

- Seu Enéias, como um homem neste estado em que está, desde os dezenove anos de idade, vivendo decepado da parte mais cara a todo macho que se preza, vítima de uma tragédia, ao despencar da torre de uma igreja, em que estava trabalhando, ainda rapaz robusto, como servente de pedreiro, me diga, como um homem assim pode ter amante!?

O pintor não agüentou o choque e saiu do quarto cabisbaixo e sem despedir- se de ninguém, desceu, em disparada, a escadaria dos seis andares do prédio em direção à rua. Nunca mais apareceu.

Abatido e confuso, caí sentado ao pé da cama parelha a do Antônio. Voz embargada, falei como se estivesse pensando alto:

- Até hoje ignorava tudo isso. Só neste momento acabo de entender por que minha mãe o chamava de “Cavalo de São Roque”. Não vou consultar a vida desse santo, mas, por certo, devia ter um cavalo castrado.

Levantei-me e dirigi-me a ele, ainda a dormir. Beijei-lhe a macilenta face e pensei , com vontade de sussurrar-lhe ao ouvido:

- O destino é cruel, mas a humanidade é muito pior.


______________________

*ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 343

















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