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Contos-->Sebastiana da Silva -- 28/08/2006 - 10:51 (Odilon Fehlauer) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Através da janela do barraco, formada por quatro placas de vidros trincados, encaixados em molduras no formato de cruz, podia-se ver o interior da moradia.

A luminosidade refletia-se coruscante na vidraça, emanada do lume do lampião, ativado pelo querosene. A língua preta do pavio, expelia espirais fumarentas, desenhando manchas enegrecidas, tingindo os caibros atravessados desordenadamente no alto.

O tosco rancho, construído de estuque, o fogão igualmente, a labareda, aquecendo a água da chaleira tisnada dependurada em uma corrente presa ao teto.

Dois frangotes de pescoço pelado, mantidos para fazer caldo quando alguém adoecesse, bicavam incessantes entre as frestas do chão batido e ressequido, na busca de resíduos de alimentos.

O matraquear cadenciado, emanava da antiga máquina de costura Singer, rompendo o silêncio da noite daquele local despovoado, no pedalar incessante de Sebastiana da Silva.

O som era entrecortado pelo piar das corujas, vagueando na noite em procura de roedores descuidados.

A máquina e uma velha garrucha de dois canos, eram os único bens que ela herdada de Marieta, sua mãe, com quem aprendera a costurar. Sebastiana tinha uma filha de quatro anos chamada Alice, única felicidade que obtivera do seu casamento destroçado.

As costuras proporcionavam alguns trocados que lhe permitia sobreviver. Alice abrigava-se sob a antiga Singer segurando nos braços uma boneca de pano, era onde as vezes dormia.




Ali também, era seu abrigo para proteger-se da ira do pai, alcoólatra, que ao chegar, esbravejava e proferia palavrões ofensivos à sua mãe, como se fosse culpada pela miséria na qual sobreviviam.

Ultimamente ele não mais se limitava às ofensas, agredia-a fisicamente. Os olhos de Sebastiana estavam cansados, necessitava usar óculos, porém, era um luxo que não podia permitir-se.

As agressões do marido José, tornavam-se rotineiras, ela decidira-se não mais tolerá-las. Eram assistidas pela filha que soltava a boneca e com a palma das mãos fechava os ouvidos chorando diante da brutalidade.

Sebastiana mantinha os olhos fixados nas intermitentes e constantes perfurações feitas pela agulha, conduzindo a linha unindo a costura dos tecidos. Carregava a mágoa dolorida somada ao ódio que a faziam imaginar sobreposições em gana odiosa.

Como se visse na agulha uma lança pontiaguda, penetrando na carne do maldito companheiro. Nesta rotina sem esperanças, vivia a briosa mulher, inculta contra sua vontade, somente aprendera a ler e escrever, porém, observadora, colhera nos sofrimentos o aprendizado e questionava-se.

Não pretendia que a filha, vivesse numa idêntica penúria contaminada pela impotência. Enquanto cosia, recordava-se de quando tinha quinze anos de idade. Como todas as meninas também sonhava.

No meio em que gravitava, excluída da sociedade, acabou seguindo a mesma trilha das mulheres da região, como contingência natural. Casou-se aos dezessete anos, com José, pouco chegado ao trabalho, beberrão e freqüentador de bordéis, sujeitando-a ao seu domínio ignóbil e machista.



Como se isso não bastasse, ele passou a embriagar-se e espancá-la, além de, tomar-lhe os parcos trocados ganhos exaustivamente nas noites insones e solitárias dedicada na faina.

O mérito que conquistara eram crostas de feridas marcando seu corpo e cicatrizes das constantes surras. Os raros utensílios domésticos, eram destruídos nas brutais investidas do companheiro.

Ela os substituía por vasilhames, compostos de latas descartadas. Costurava meditativa, bebericava o café requentado contido numa xícara sem alça.

Com a língua molhava a palha do cigarro feito com fumo de corda picado. Contestava aquele modo de viver, submetida, como outras tantas mulheres que conhecia, habituadas em semelhante condição e considerando ser um tributo feminino.

Algumas, fingiam não saber, dos abusos sexuais praticados pelos parceiros com os próprios filhos, silenciadas pelo selvagem terror. Sebastiana era corajosa, não derramava lágrimas, considerava chorar um sinal de fraqueza.

As privações sofridas desde a infância lhe ensinaram a reter sentimentos. Na tenacidade, almejava romper os tabus que a submetiam. Já decidira-se, não mais toleraria os espancamentos aliado à proteção de Alice, como uma leoa.

Afligida vendo as inúmeras vezes ela despertar aos prantos e sobressaltada, no efeito traumático das agressões que assistia praticadas pelo pai.

Sebastiana, usava as sobras de retalhos e confeccionava roupas para a garota. Elevou contra a luz um vestido que concluíra, era multicolorido, no efeito da junção de pedaços de panos de várias tonalidades. Na extremidade das mangas e da gola, envolvera uma entretela de renda.


Assim concluía as vestes que a garota necessitaria, durante o tempo em que a deixaria na casa da irmã Célia e procedesse seu plano.

Célia morava num vilarejo próximo, vivia sozinha e fora abandonada pelo companheiro. Sobrevivia fazendo doces e salgados oferecidos de porta em porta. Carregava sob o queixo, enorme papo duplo, bócio adquirido no efeito da hipertrofia glandular, advindo da ingestão de água não potável.

Era sua aliada e confidente e concordara em tomar conta de Alice. A amargura imposta pela vida as reprimiam, se entendiam tanto que, podiam dispensar o uso de palavras entre si, bastava a troca de olhares.

Apesar de machucadas pela adversidade, mantinham a sensibilidade feminina, interpretavam as seqüelas nas marcas indeléveis, estigma das mulheres daquela remota região.

Eram vítimas dos ajuntamentos, sucedidos geradores de novas etapas de privações, anuladas, desprovidas de direitos, subjugadas a vontade dos seus homens. Sebastiana levou a filha na casa de Célia.

Ao despedirem-se, abraçou Alice fortemente. Sua face contraiu-se evidenciando rugas precoces. A irmã na cumplicidade, lhe entregou a velha garrucha de dois canos, cuja arma Sebastiana deixara em seu poder, temerosa do marido poder usá-la nos acessos de brutalidade.

Tomou o caminho de volta ao rancho. O som dos passos cadenciados provocavam o ressoar de marteladas em sua cabeça pela decisão que assumira “ doravante, não seria mais agredida e sequer tocada em um só fio de cabelo. ”

No hábito, sabia que o companheiro chegaria em casa e lhe tomaria os trocados para embebedar-se com seu dinheiro.



Desta vez , estava preparada para reagir. A miséria caldeara-lhe a coragem, mesmo sabendo que o parceiro, fazia parte de uma família de pistoleiros, cuja má índole, era de todos conhecida. Autores de dezenas de mortes encomendadas, algumas com a participação de José praticadas em covardes emboscadas, patrocinadas por poderosos.

Não atribuíam valor algum para as vidas que ceifavam em troca de tostões, gastos em farras regadas com cachaça. A única solução que restava para se defender seria agir por conta própria.

Sabia ser impossível para uma mulher, conseguir êxito, através da lei, denunciando os maus tratos à polícia. As autoridades, não revelavam, porém, eram coniventes com os espancamentos praticados sem motivo.

Vigorava um pacto obscuro e soturno, aceitando na cumplicidade velada, as ações abomináveis. Como se fosse um direito dos homem e as mulheres objetos de suas propriedade.

Guardou a arma municiada com dois projéteis no interior da pequena gaveta do móvel da máquina de costura. Naquela noite já passava das onze horas, quando debruçada sobre as costuras sobressaltou-se pelo som brusco do escancarar da porta do barraco.

Sob a soleira, agigantou-se o vulto grotesco do companheiro. Figura nauseante com filetes babosos escorrendo pegajosos e infiltrando-se na desleixada barba. Exalava o odor de morrinha impregnado na roupa e no corpo. No efeito da embriagues cambaleava proferindo palavras desconexas.

Sebastiana procurou manter-se calma na expectativa das ações que esperava advirem. Manteve a arma encoberta por um pano, nela apoiando a mão.



O brutamontes, rumou na sua direção. Incitado na ação sádica, exalava o suor nauseante de odor adocicado do álcool, vociferava blasfêmias impudentes.

Não tardou, ela sentiu na face o impacto ardente caindo ao chão levada pelo impacto do tabefe. Na queda conduziu a arma, sem que ele notasse. Ele acavalou-se sobre seu frágil tórax, imobilizando-a como procedia contumaz deixando-a à sua mercê.

Sobreposto sobre si, evidenciava àquela fisionomia suarenta, a tez arroxeada pelo teor alcoólico entranhado nas veias. A tontura etílica, dificultava-o coordenar os movimentos. Mesmo assim atingiu-a com um murro e com a mão imunda, repetia-se raivosamente socando-a a esmo.

Sebastiana contorceu-se e desvencilhou o braço, elevou-o empunhando a arma. Encostou os canos rentes ao olho do agressor. Antes dele poder reagir, sem hesitar, engatilhou ambos percursores e acionou-os.

O som seco dos dois estampidos seguidos, ecoou deixando no espaço uma rala ondulação fumarenta. O corpanzil desmoronou sobre seu corpo. Ela sentiu o líquido viscoso e quente escorrer sobre sua face atingindo-lhe os lábios.

Nauseou-se limpando-se com a borda da mão, elevando-a na claridade vendo a cor púrpura e sanguinolenta. Embalou com todas as forças o próprio corpo, desprendendo o cadáver de cima de si. Rastejou apoiando-se no assoalho e reclinou-se contra a parede, olhando em estado de pânico para o corpo estendido de barriga para cima.

Percebeu que os projéteis simultâneos penetraram no olho do algoz de onde fluía o sangue abundante. Incorporou-se no terror, a cabeça rodou, diante da cena de violência, sentiu-se desarvorada.



Aos poucos, recobrou a razão, deduziu chegado o momento de fugir, num gesto de repulsa jogou a arma distante. Apanhou a bagagem que mantinha pronta, composta de uma trouxa de roupas, envolvida por um roto lençol, com as quatro extremidades atreladas num único nó.

Rumou porta a fora e deparou com os latidos do magro cachorro, amarrado em uma corda ao tronco de um arbusto, decidiu soltá-lo. O bicho vendo-se livre, partiu em disparada entremeando-se no mandiocal, certamente na busca de calangos para aplacar a fome.

Ela caminhou durante meia hora, até chegar na margem da estrada. Postou-se na espera de conseguir uma carona. Um caminhão carvoeiro estacionou. Foi levada sobre os sacos de carvão, na carroçaria do veículo.

Durante o trajeto os solavancos elevavam a nuvem de poeira negra, impregnando-a, Sebastiana então lembrou da época, quando ainda era uma menina e juntamente de outras crianças, trabalhava nos fornos de queima e ensacamento de carvão. Naquela azáfama, a criançada envolvia o rosto com panos, protegendo a boca e o nariz evitavam intoxicarem-se com a fuligem carbonizada.

Suas figuras pareciam beduínos nômades, ficavam apenas expostos os olhos e dentes, contrastando com a negritude da pele dos corpos cobertos pela tisna. Transformados em espectros párvulos e esqueléticos. Aquele ignóbil trabalho as submetia à escravidão mirim, em troca de míseros centavos semanais.

Muitas daquelas frágeis criaturas, famintas e carentes, eram prematuramente, acometidas de problemas respiratórios. Seus pulmões comprometidos e subjugadas na tarefa que lhes impunham na execrável pobreza, explorados por adultos insensíveis.



Restavam os clamores ensurdecidos, contidos no âmago das almas, impedidas de serem escutados. A luta de Sebastiana incluía proteger estas crianças indefesas, temia de entre elas estar incluído o futuro da sua pequena Alice.

Perambulou na cidade grande miseravelmente, durante alguns dias dormiu sob marquises. Andou de casa em casa, na busca de emprego, até ser aceita numa residência, para prestar serviços domésticos. Considerou ter tido sorte, já que nada perguntaram sobre si.

Assim decorreram seis meses desde o nefasto acontecimento.
A saudade da filha, tornou-se insuportável. Juntou algum dinheiro e as escondidas, comprou a passagem de ônibus com destino ao vilarejo onde residia a irmã.

Naquela noite, sorrateira, deixou a casa onde trabalhava e partiu sem avisar aqueles que a acolheram, movida pela necessária cautela. Evitava que soubessem de sua vida e paradeiro, para não se expor a riscos.

Planejara regressar com a garota, caso fossem aceitas, continuaria a trabalhar para àquela família. Era madrugada quando chegou na casa da irmã. Após insistir com batidas, a porta foi aberta pela sobressaltada mulher que somente acalmou-se ao reconhece-la.

Trocaram cumprimentos frívolos, não adotavam afagos, abolidos pela rude vivência. Correu no rumo do quarto, onde dormia a filha. Ao vê-la pareceu-lhe enxergar um anjo, ressonava abraçada na antiga boneca de pano, que um dia costurara presenteando-a quando completara o terceiro aniversário.

O corpo da boneca feito com uma meia descartada estufada com serragem. As silhuetas dos olhos, boca e nariz, reproduzidas com bordado esmerado.



Alice despertou e agarrou-se ao seu pescoço com toda a força e assim permaneceram enlaçadas durante um tempo em completo silêncio.

Após, ouviu sua irmã sussurrante contar os acontecimentos sucedidos após sua fuga e terem encontrado o corpo do companheiro. Disse que a polícia a procurara no povoado, interrogaram muitas pessoas na busca do seu paradeiro, inclusive estiveram em sua casa onde procederam uma revista. Porém, no decorrer do tempo acalmaram-se, como se tivessem desistido de localizá-la.

Sebastiana escutou pensativa a explanação da irmã que mudou de assunto, comentando que sua aparência era de uma mulher fina, com aspecto bonito, o cabelo bem cortado, brilhante e sedoso.

Sebastiana sorriu, alegando ter optado pelo corte mais curto propositadamente, modificava a aparência evitando ser reconhecida. Quanto ao brilho, alegou ser o efeito do flúor, adotado no tratamento da água nas grandes cidades, somado da alimentação de melhor qualidade.

Ao concluir revelou seu plano de partir levando consigo a menina. Permaneceria no interior da casa, evitando de ser vista pela vizinhança. Deu um dinheiro para Célia incumbindo-a de comprar mantimentos. A menina a acompanharia enquanto ficaria organizando as roupas da menina.

Ao saírem, Alice pediu para comprar duas fitinhas para prender as tranças, autorizada pela mãe, ambas partiram. Na medida em que apanhava as vestes da filha, lembrava das noites insones de quando as costurara. Nas cenas recordadas aliava a sensação de tédio envolvidas.

Na reminiscência, lembrou do crime que praticara, sentiu-se angustiada, apesar de que, nunca se arrependera, fora a única solução para dar fim ao martírio infernal.


Meditava sobre o que a irmã lhe contara. Que desconhecidos atearam fogo no barraco onde vivera e que numa ocasião, ela lá estivera, e vira nos despojos incinerados a carcaça da sua máquina de costura estorricada entremeio às cinzas.

Não teve dúvidas em atribuir, àquela ação haver sido praticada por vingança. Neste momento, seu pensamento bloqueou, pareceu sentir nos lábios o gosto agridoce e horripilante do sangue. Nauseou-se esfregando-os fortemente com uma toalha.

Permaneceu concentrada no que fazia, buscava antever a nova vida na companhia da filha. A concentração foi rompida ao ouvir o som de palmadas, vindas da rua e repetiam-se insistentes. Decidiu verificar quem seria, abriu a porta e deparou com um homem, ainda jovem e magro, esboçando cumprimento frívolo.

Evidenciava dentes de ouro, fixados na arcada superior brilhando no contato salivar. A barba e bigode delineados em penugem rala, o cabelo de um preto retinto repartido ao meio, empastado de brilhantina. Os olhos bovídeos e inexpressivos, impediam de notar as íris do glóbulo.

Lábios finos formando um arco para baixo. Sulcos musculares contornavam a face, mostrando expressão raivosa. Vestia um terno branco encardido, o paletó curto, como se não contivesse as medidas do seu corpo.

A tiracolo carregava um bornal de couro cru. Sebastiana incorporou-se numa sensação mórbida, captava instintivamente os fluídos negativos emanando da criatura. Foi surpreendida pela pergunta : - Sua irmã Célia, está em casa ?

Confusa respondeu no impulso : - Não senhor, ela foi à cidade.

O sujeito alegou estar trazendo um lenço que ela encomendara, perguntando se poderia deixá-lo, para entregar-lhe quando regressasse. Envolvida na situação temerosa, deu-se conta, de ter caído numa armadilha, culpou-se pela insensatez. Quando ele perguntara por Célia, diante de sua resposta, identificava ser a irmã.

A mente influiu-se de intensa perturbação notando transparecer naquele rosto uma associação vaga de imagem que conhecia, e numa fração de segundos identificou-o . Sorria identicamente ao finado, envolvido no mesmo ar de deboche, sorria com a metade do rosto, movendo apenas a parte inferior.

Uma convulsão percorreu-lhe o corpo ao interpretar o significado daquela presença cruel. Meditou veloz convencida nas deduções ; “ Ele sabe que sou Sebastiana. Meu Deus ! É o irmão mais novo do finado, as características são idênticas.” Fora identificada, viu-o calmamente soltar a correia da bolsa colocando a mão no interior.

O reflexo metálico de uma arma cintilou diante dos seus olhos, ao ver o cano do revólver diante de si, pareceu-lhe enxergar um extenso túnel escuro.
Seu corpo congelou, impedindo-a reagir, num repente emanou o som ensurdecedor do estampido, acompanhado de um clarão seguido de uma risca queimante transpondo o interior da sua cabeça.

O chão inclinou-se, suas forças exauriram, as pernas dobraram, o corpo rolou desconjuntado, caindo sobre os degraus da escada, tudo escureceu.

O pistoleiro embrenhou-se no terreno lateral do casebre e sumiu envolvido na vegetação. Era um matador, sabia como evadir-se. Cumprira a incumbência. Desta vez, tratava-se de um assunto de família, vingara a morte do irmão.

Por instantes restou o silêncio, quebrado pelo som das vozes de vizinhos curiosos aglomerando-se no local, movidos pela comunicação que intensifica-se, quando o curso normal de um núcleo habitacional é quebrado.

Sebastiana da Silva jazia assassinada.

Sua luta fora inglória na busca libertária imbuída pela coragem que a impelira praticar um crime em legítima defesa. Buscara salvar a própria vida, e poder criar a filha com dignidade.

A tentativa de contestar o sistema, onde vigorava a subjugação ignóbil da mulher, diante do vil domínio machista, fora inócua. Um dos curiosos observou que ela segurava uma vestimenta de criança. Pairava as imaginações de incógnita, quais os motivos que causaram a morte daquela infeliz.

A notícia do crime percorreu célere entremeio dos moradores do lugarejo, que se aglomeravam ao redor do casebre. Célia retornava com Alice. Enxergando a junção de pessoas sobressaltou-se. Viu-se imbuída de mau pressentimento e acelerou o passo, com a menina segura no braço.

Naquele instante, estacionava uma velha caminhonete com o dístico da polícia, já desbotado. As pessoas abriram uma espécie de corredor ao verem a aproximação de Célia.
Ela acometeu-se de choro e emitiu um grito alucinante ao deparar-se com o cadáver estirado junto da entrada da casa. Dispensou ver mais, entendera o acontecido com sua irmã.

Protegeu Alice tentando evitar que ela visse a cena, porém a menina deduzira e envolveu-se em choro. Foram cercadas pela multidão com expressões espantadas. Um dos vizinhos relatou ter ouvido o estampido e ter visto um sujeito desconhecido embrenhar-se no terreno. Foi o suficiente para Célia tirar as conclusões da vingança cometida contra Sebastiana.

Não havia serviço de necropsia. O delegado limitou-se a transcrever as vagas informações, associando o assassinato com os fatos que conhecia e envolviam a finada. O corpo foi liberado para o velório, que aconteceu na sala da casinhola, colocado num tosco ataúde sobre cavaletes cercados de velas espetadas em garrafas vazias. Vizinhas carolas iniciaram rezas em sequência, acompanhadas em coro agourento. Na medida em que as pessoas chegavam, muitas movidas pela curiosidade, o assoalho da casa rangia como se fosse desmoronar.

Um médico que trabalhava esporadicamente na vila forneceu um atestado de óbito, baseando-se no óbvio do ferimento aparente. Ele residia numa cidade próxima e não tinha filhos. Falando com Célia prontificou-se a adotar a criança, argumentando que junto da esposa teria condições de criar com dignidade a órfã. Alegou :

- Caso contrário, Alice ficará a mercê da vida.

Analisando a proposta , Célia, que também temia pela vida de sua sobrinha, filha de Sebastiana, decidiu aceitar a alternativa.

Naquela mesma noite, Alice seguiu em viagem para o novo e desconhecido lar.

A esposa do médico Nogueira, mostrou-se feliz pela adoção e recepcionou a garota carinhosamente. Alice passou a viver com o casal numa bela e espaçosa residência. A triste adversidade gerava-lhe uma vida digna.
O tempo passou e a garota estudiosa, progrediu. Seus pais adotivos a estimularam, proporcionando que cursasse a faculdade de Direito.


Assim se passaram vinte anos. Alice prestou concurso no Judiciário foi nomeada juíza. Naquele dia estreava seu primeiro júri, o réu acusado de assassinar a esposa. Sentiu-se mal e encerrou a sessão com o ressoar do martelo. Ao sentar-se, afastou o calhamaço formando o processo colocado sobre a mesa. Apoiou a fronte com as mãos, postando-se meditativa, diante das imagens que povoaram sua mente.

Nelas confundia-se o som das vozes dos presentes, com o do matraquear de uma antiga máquina de costura, sob a qual via-se sentada. Nos braços, segurava uma boneca de pano embalando-a ao ritmo ressonante das pedaladas dadas pela mãe, Sebastiana da Silva, enquanto costurava.

No dia seguinte, foi retomado o julgamento entremeio de declarações de testemunhas e apartes acalorados dos advogados de acusação e defesa. As narrativas ouvidas pela juíza mostravam-se conhecidas. Absorvia os sentimentos envolvidos naquele crime, enquanto olhava para duas meninas gêmeas postadas na platéia, vestiam blusas enlutadas e chorosas, tornaram-se órfãs.

O réu condenado a 23 anos de reclusão, recebendo a sentença com irreverência. Uma pergunta transitou a mente da juíza :

“Onde estará o assassino de minha mãe?”.

Odilon Fehlauer.
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