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Contos-->O Naufrágio -- 28/08/2006 - 10:49 (Odilon Fehlauer) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
João Degas era descendente de portugueses, nascido em Itajaí, no estado de Santa Catarina. Aposentou-se aos 60 anos como funcionário público estadual. Sentia-se frustrado e comentava que sua vocação era culinária e não aquele trabalho burocrata que desempenhara. Seu sonho era montar uma pequena cantina, porém jamais o realizara.

Aos domingos, em casa, se propunha a fazer o almoço. A esposa Suzana concedia-lhe e libertava-se dos afazeres da cozinha. Certa ocasião, conversando com um conhecido foi informado de que um armador da pesca, procurava por um cozinheiro para trabalhar a bordo de um dos seus barcos. Seria uma bela oportunidade para que seu sonho se realizasse. Apesar da adiantada idade para navegar, sua pretensão foi aceita, pois não requeria registro, pouco oneraria seu empregador.

Alegou para a esposa que atuaria naquilo que sempre sonhara e não pudera fazê-lo, ensejaria suplementar o ganho cozinhando para tripulantes pouco exigentes. Ela soube entender o significado do ideal do marido e não o frustaria concordando com a idéia.

Degas foi então conhecer o barco e as instalações onde trabalharia. Era uma grande embarcação pesqueira, tripulada por 10 pessoas. Ele seria o décimo primeiro membro. Andou pelo convés, o qual conheceu superficialmente.
Acessou a casaria ligada por estreitas escadas. Uma delas, em aclive, levava à cabina de navegação, onde ficam o mestre, o contra-mestre e o motorista, cada um contando com um beliche individual – eles representam a elite da tripulação.

No nível do convés, está a cozinha, em conjunto, uma ante-sala com mesa circular servindo de refeitório. No mesmo patamar, o alojamento composto de beliches para o restante da tripulação.

Degas teve dificuldade para transitar pela íngreme escada, pois era obeso, tinha 98 quilos. Ele chegava à cozinha, nela um fogão a gás de seis bocas, tendo em torno da chapa uma borda protetora na qual encaixam-se as panelas para que não deslizem durante a navegação.

Um freezer horizontal e armários no quadrilátero, com pleno aproveitamento do espaço e gavetas embutidas. Uma pia abastecida com água quente e fria. Nas paredes, talheres e utensílios pendurados, algumas frigideiras e vasilhames feitos em cobre, porém oxidados, apresentando a coloração azulada do zinabre.

Todos os espaços daquele ambiente eram utilizados. Nos gavetões, mantimentos de toda ordem, toalhas empilhadas. Sobre o umbral da porta, uma estampa de Nossa Senhora dos Navegantes, já desbotada, servindo também de calendário, envolta de uma fita de seda azul e amarela.

Degas observou que o local carecia de uma faxina completa, o fogão estava imundo e engordurado, assim como os demais utensílios.

Mais ao fundo, três degraus abaixo, uma pequena porta dava para um nicho. Lá havia um beliche, onde seria seu dormitório. Ao lado, um chuveiro e instalação sanitária,. Era exíguo, porém seco e aquecido pela serpentina de água quente embutida na parede do casco.

Na parede lateral, a estibordo, uma escotilha de bronze, redonda, formada de vidro duplo, presa pelo lado interno com parafusos tipo borboleta. Quando fazia tempo bom, ela permanecia aberta para ventilar o ambiente e proporcionar a exaustão. Igualmente, através dela entrava a luz solar.

Ao olha-la, Degas sentiu uma sensação incômoda, aquela resumida circunferência seria impossível de ser transposta, gerava uma sensação de claustrofobia. Atribuiu que, ao passar do tempo, se aclimataria e desviou o pensamento.

Entre os tripulantes, foi apresentado a um jovem chamado Júnior, uma espécie de ajudante a bordo. Assim que o rapaz afastou-se, comentaram dele ser órfão e sozinho na vida, criara-se ao redor da atividade pesqueira e ficara por ali, engajado no segmento, prestando pequenas tarefas a bordo.

O garoto era prestativo e vivaz. Quando os demais saíram, o jovem reiterou que estaria ao dispor de Degas. Combinaram de encontrar-se no inicio daquela tarde, para procederem à limpeza naquele ambiente.

Em dois dias concluíram o trabalho, repintaram as paredes com tinta naval branca brilhante. O congelador estava impregnado de gelo nas paredes, nunca haviam feito o desgelo. Deixaram o ambiente tinindo e asséptico. Coube a Degas proceder as compras para abastecer a despensa durante o período que navegariam. Com a ajuda de Júnior, supriu a cozinha com produtos básicos frescos e congelados.

Em casa, o cozinheiro preparou um cardápio com as variações dos pratos que faria. Numa manhã ensolarada, finalmente zarparam do trapiche em Itajaí, rumo ao Oceano, com destino às águas limítrofes com o Uruguai e Argentina, no extremo sul do país, onde os locais eram piscosos.

Júnior, carente e pouco ouvido pelos demais tripulantes, simpatizou com o novo companheiro, que nada sabia sobre navegação e lhe dava atenções e a oportunidade de doutriná-lo. Sentiu-se importante, pois aprendera sobre as lidas no mar desde pequeno, agora completara os 18 anos de idade. Porém, a rude atividade marcara sua fisionomia dando-lhe uma aparência de mais idade, a pele precocemente enrugada no efeito dos ventos e da maresia.

Degas apegou-se ao rapaz, penalizado ao saber da sua origem sofrida, mas via nele o entusiasmo juvenil. O garoto não alimentava expectativas sobre o futuro, submisso na ignorância, não sabia ler nem escrever e disse-lhe:

- Júnior, enquanto navegarmos haverá tempo suficiente para aprenderes a ler e escrever. Eu o ensinarei e em algumas viagens estarás alfabetizado.

- Oba... - respondeu o garoto - ganhei material escolar, cadernos lápis e borracha. Nunca usei, mas guardei na gaveta de meu beliche. Como eu gostaria de saber ler! Quando chegamos nos portos eu não entendo os dizeres das placas, só conheço os emblemas quando estes constam.

- Pois bem, se tiveres força de vontade e ajudares aprenderás. Ser analfabeto é como vegetar na vida, igual a isto – elevou um tomate na mão – Serás meu aluno de bordo.

Ambos riram...

Coube a Degas servir o café da manhã aos tripulantes que chegavam ao refeitório. Revezaram-se, obedecendo a uma escala hierárquica não especificada mas vigente. O primeiro a ser servido foi o mestre – comandante soberano do barco – acompanhado do contramestre e do motorista, substituído por um dos tripulantes, previamente escalado.

Uma auréola de suor, impregnada, demarcava a circunferência de um lado ao outro da aba do boné. Sua fisionomia era circunspecta, demonstrava nos lábios um arco para baixo, uma imagem austera e de pouca conversa. Um grossa corrente de ouro trançado em torno do pescoço, na extrema pendia um crucifixo. Chamava-se Ângelo, nascera nas cercanias da cidade gaúcha de Rio Grande, era filho de pescadores e seguira a profissão, chegara a mestre. Ao contrário de tropear cavalos, optara por cavalgar as ondas bravias, seu pampa passou a ser o oceano.

Júnior revelara a Degas como era procedido o rateio dos resultados obtidos nas pescarias. Cinqüenta por cento do valor apurado na captura é entregue ao mestre, outras parcela ao contramestre e motorista, e finalmente o restante é divido entre os demais tripulantes.

Quando a captura é farta, sempre cabe a distribuição de uma valor adicional, para os de bordo. A renda do mestre lhe proporcionava certos luxos. Júnior comentou que a corrente de ouro e outras jóias por ele usadas, tinham expressivo valor, permitiriam a compra de uma bela casa e automóvel. Diziam dele ser durão como todos os mestres, pois cabia-lhes manter a disciplina a bordo.

Degas perguntou a Júnior:

- Participas também destes rateios de dinheiro?

- Não senhor... mas sempre ganho uns trocados, pois sabem que não tenho ninguém para ajudar e não preciso de muito para sobreviver...
Aquela resposta humilde continha a insignificância da vida daquele miserável garoto e meditativo falou:

- Júnior, eu te garanto uma coisa. Que o mestre Ângelo e todos os demais sabem ler, escrever e fazer contas. Se não aprenderes, jamais poderás ser um deles...

- Verdade seu Degas, o senhor tem razão! Vou estudar para valer pela primeira vez em minha vida! Penso no futuro, serei um mestre algum dia. Conto com sua ajuda.

Após todos serem servidos, lavaram a louça, deixando a cozinha em ordem. Teriam uma hora de folga até darem início ao almoço. Degas decidiu ir ao convés. Firmou-se nos arrimos com o corpo ladeado.

Ao passar diante do dormitório coletivo dos tripulantes, formado por beliches sobrepostos, sentiu o odor de mofo e a umidade mesclada com chulé das meias jogadas a esmo. Degas fez uma comparação com o local onde dormiria, seria como um camarote, sentiu-se privilegiado.

Transpirando e ofegante, chegou ao convés e levou o impacto de uma lufada de vento frio. Trouxera um agasalho e nele se encolheu. Alguns homens, sentados sobre rolos de corda, fumavam enquanto proseavam, levados pelo balanço da navegação. Outros jogavam canastra.
Pelo corredor do convés, aproximou-se da popa, onde havia dois tripulantes. Vestiam capas de borracha na cor amarela com gorros fincados na cabeça. O reconheceram como o novo chef da cozinha e abanaram preguiçosamente as mãos enluvadas. Um deles, barbudo, perguntou-lhe:

- Já vieste buscar o peixe para o almoço? Vamos ver se já o fisgamos.

Degas o viu se afastar para junto da popa e puxar a linha jogada a esmo no mar. Na medida em que a içava, notou o sujeito imprimir mais força e pedir ajuda ao parceiro. Na extremidade do grosso cordão, surgiu fisgado um enorme peixe – era um dourado, com cerca de 12 quilos – que deixaram cair sobre o chão.

- Quer que o limpe ou fará isso na cozinha? – falou o sujeito

A pergunta pegou Degas de surpresa, porém sua hesitação foi interpretada pelo tripulante que sacou uma faca curva e ágil abriu a barriga do pescado, eviscerando-o. Juntou as vísceras sanguinolentas do chão jogando-as ao mar. Escamou-o e o colocou numa caixa de plástico trançado, entregando-a ao cozinheiro, que meditou:

“Ainda bem que me preservei não comprando pescado. Seria ridículo ter feito isso. A sardinha e o atum enlatados servirão para pratos e temperos especiais.”

Ao apanhar o vasilhame, ouviu o sujeito comentar:
- Quando jogarmos a rede, poderás escolher uma variedade de pescados para cozinhar, incluindo camarão e lula.

O sol se pôs cedo, coberto pelas nuvens escuras de um temporal ameaçador. O almoço não tardou a ser servido, composto por aquele generoso pescado, acompanhado de pirão cremoso. Degas foi elogiado por todos, para seu gáudio. Também foram surpreendidos por torradas com patê de atum com esmerado tempero. Degas associava que a ociosidade causada pela navegação poderia ser compensada pela comida, se bem feita. Assim alegraria aqueles pescadores.

O mestre chamou Júnior e através dele enviou a Degas uma garrafa de vinho tinto chileno, forma de reconhecimento silencioso pela lauta refeição que preparara.

O cozinheiro envaideceu-se feliz. Adicionou mais pescado às sobras do almoço e serviu no jantar. Nada sobrou, devorado que foi pelos membros do barco, ele sabia que a voracidade com que se alimentaram demonstrava a qualidade de sua culinária.

Degas e Júnior faziam as refeições na cozinha, adaptando a mesa sobre a pia. Naquela noite, iniciou a prática de uma metodologia doutrinária para alfabetizar Júnior, que decoraria o alfabeto, depois montaria palavras até chegar às frases. A seguir, ensinaria matemática, iniciando pela tabuada. Explicaria como fazer contas elementares até dominar equações. Notou que o garoto era inteligente e assimilava os ensinamentos.

A navegação tornou-se instável, provocando um balanço descompassado. Degas, confinado naquele espaço, com o corpo a balançar, sem cadência definida, sentiu engulhos. Júnior riu de sua palidez, chamando-o de marinheiro de primeira viagem.

Passava da meia noite quando a tempestade amainou. O cozinheiro tomou uma ducha quente, relaxou e ao deitar-se conciliou o sono. Pouco antes das cinco horas da manhã, foi despertado por sons e alaridos que vinham do convés. Não tardou, uma voz o acionou:

- Cozinheiro, prepare café forte e quente para todos!

Ele não sabia, mas tripulação preparava-se para lançar a extensa rede ao oceano, para capturar peixes de fundo detectados na área. Júnior estava acordado e vestira a capa amarela, também atuava naquela operação. Num caneco de alumínio, serviu-se com café fumegando, apanhou um naco de pão e subiu apressado ao convés.
Outros tripulantes desciam e serviam-se em idêntica pressa.

O barco, em velocidade reduzida, foi puxando a rede que ia submergindo. Manobra sentida do interior da cozinha. Para aqueles pescadores, apesar de rotineira, a possibilidade da captura era alvissareira, encheriam os porões repletos de gelo em escama, sobre os quais colocariam os peixes. Após abarrotados, a missão estaria cumprida e retornariam à base.

No primeiro arrasto, pescaram quase 10 toneladas. Em repetidas passadas complementariam a meta. Naquele dia inteiro, as refeições esfriavam e tinham que ser novamente aquecidas. Degas estava sozinho, os pescadores comiam de acordo com a conveniência de tempo, intercalavam-se desordenadamente.

O interior do barco foi afetado pelo odor do pescado, igualmente impregnado nas vestes dos tripulantes. Degas nauseava-se, não habituado com aquele cheiro, porém, superou.

Concluída a captura, os homens estiraram-se no convés, exaustos diante da faina incessante. O mestre autorizou entregar-lhes cinco dúzias de latas de cerveja para descontraírem. As embalagens foram colocadas em um tambor de aço inoxidável, forrado com gelo. Todos bebericaram até o entardecer. Era um momento de comemoração, significava o êxito da primeira etapa da viagem.

Degas achou por bem servir os homens no convés. Preparou iscas de carne espetadas em palitos, servidas por Júnior. Ângelo, na cabina, elaborava a rota para continuar a captura.

Naquela madrugada, praticaram mais dois arrastos com sucesso, e assim sucederam-se doze dias quando atingiram o topo dos porões, lotando-os com cerca de 80 toneladas de peixes nobres. A captura representava muito dinheiro. O tempo mudava para hostil. Ângelo mostrava-se apreensivo, pois interceptara a comunicação entre navios mercantes comentando o tempo adverso que se formava no oceano. Não comentou com os companheiros.

Sentado em um dos beliches, o pescador Dauro, Conhecido por “Galego”, cuja pele era avermelhada e o cabelo lanhado. Comentou com o parceiro que comprara um bracelete para, no retorno, entregar à namorada Vanessa, com quem pretendia casar-se. Adicionou que a farta pescaria conseguida, lhe daria um reforço financeiro para pagar as parcelas devidas na compra.

A embarcação singrava rebaixada na água no efeito dos porões carregados, fato que tornava o barco menos veloz e dificultava as manobras com agilidade. Após navegar durante algumas horas, o mestre sabia estar atingindo a divisa dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. No computador de bordo, equacionou sua posição constatando estar a mais de 70 milhas da costa.

Na medida que a embarcação avançava, as ondas encrespavam-se. O céu coberto por nuvens escuras, impedia a visualização do horizonte.

Uma intensa chuvarada despencou, impedindo enxergar através do pára-brisa. Na direção da proa, localiza-se o além-mar, a bombordo, a costa. As ondas intensificavam-se e passavam a colidir à estibordo do casco, provocando um ajuste no rumo para enfrentá-las de proa, acompanhando as ondulações e evitando impactos inesperados, reduzindo a rotação dos motores e procurando navegar na transversal.

A navegação assemelhou-se a um tobogã, galgando as ondas e deslizando no declive. Os relâmpagos iniciaram uma cadência constante fragmentando-se no espaço e ribombando.

Pela primeira vez, o mestre sentiu medo pela intensidade crescente das marolas. Os clarões repetiam-se, permitiam uma enxergar ao redor.

Foi num destes reflexos que Ângelo temeu, ao ver no limitado horizonte uma imagem difusa. Era como se uma enorme cordilheira brotasse do oceano. Iludiu-se de que era fruto de sua imaginação e firmou-se no leme de direção, em expectativa angustiante.

No interior do barco, todos se mantiveram acordados. Alguns mais amedrontados que outros.
Em pé, na cozinha, Degas segurava-se num mastro de cobre que atravessava os andares na vertical. As palavras de Júnior “A B C D” ressoavam mórbidas nos ouvidos do cozinheiro. Ele nunca havia sentido um sacolejar desnorteado e tão intenso como aquele.

Em sua mente, lembrou de um vôo noturno que fizera, enfrentando uma tempestade, pondo em pânico todos os passageiros. Aquela sensação era semelhante, porém perdurava e sentiu a claustrofobia, impossibilitado de superá-la.

Um impacto inesperado contra o casco de uma onda em sentido distinto, atingiu e desarticulou a reta em brusco movimento. Júnior levantou-se rapidamente do banco e retirou de uma das gavetas suspensas, dois salva-vidas.

Degas mostrou-se estupefato, observando o garoto sinalizar para que o vestisse, como também procedia.

Os homens também preveniam-se deixando os beliches, vestindo os coletes. A cena pareceu dantesca para o inexperiente marinheiro e o suor gotejava em sua testa.

Na cabina, Ângelo desnorteava-se diante do barco ser impelido em direções difusas, impossível de mante-lo no rumo.

Nova e violenta onda abateu-se contra o barco revolvendo a proa e inundando o convés com uma forte corrente de água, invadindo a escadaria, empoçando na cozinha.

O barco inclinou-se perigosamente, porém voltou a nivelar-se em flutuação, levando-o à deriva, ao sabor das ondas. O mestre notara que a cada movimento as ondas eram mais elevadas, como se fossem empurradas e pressionadas por outra maior. Não hesitou e pelo rádio, mesmo não captando retorno, expressou “May-Day... May-Day” – na sua intuição, aquele pedido derradeiro de socorro tinha que ser realizado. Voltou-se ao leme.

Os pescadores benziam-se, temerosos pelas conseqüências que poderiam advir. Agiam próximos do estado de pânico. Com o peso da água a bordo, o barco carregado navegava adernado, com a água rente das bordas.

O mar revolto fazia as ondas colidirem entre si. Um trovão riscou o céu, reproduzindo um clarão instantâneo. Ângelo novamente deparou com a cordilheira que antes vira avançando, vinha de estibordo. Em fração de segundos tentou girar o barco contra a enorme massa de água que jamais ele enxergara. Tentaria evitar ser engolfado, mas era tarde.

A imensa onda encobriu a embarcação totalmente, adernando-a sem controle. O mestre ficou segurando firme o timão, até sentí-lo rodar livre no ar, consciente de que perdera o comando e emborcava.
Nada mais havia a fazer e saltou para água, onde se refletiam manchas amarelas dos companheiros que antes haviam abandonado a embarcação. O barco flutuava com o casco virado.

Júnior procurava por Degas e nadou para junto do casco, aproximando-se num mergulho da escotilha que dava para a cozinha. Teve tempo de ver a mão escorrendo com os dedos espalmados contra o vidro. Ele não tivera tempo de alçar as escadas, afogou-se.

Objetos flutuavam na tona convulsa. As ondas, após a passagem daquele enorme, acalmaram-se, como se a volumosa vaga houvesse levado-as num roldão.

Os gritos dos náufragos eram dispersos, ressoando ininteligíveis. Júnior, desolado pela perda do amigo e professor, soltou-se boiando - auxiliado pelo salva-vidas que prudentemente vestira.

Enquanto isso, os parceiros se aglomeravam expressando terror nas faces. Faziam entre si uma espécie de chamada dos sobreviventes, constatavam que, além do cozinheiro, faltava Dauro, o “Galego”, foram inúteis as buscas ao redor.

Com a voz agitada, um dos pescadores lembrou:

- Quando nos dirigimos ao convés, ele retornou ao aposento, pois não deixaria a bordo a jóia que adquirira para Vanessa.

Naquela ação, certamente perdera a vida. Todos, estupefatos, viram a popa do casco elevar-se e, aprumada na vertical, mergulhar no oceano e nada mais restar na tona.

Alguém apontou para logo adiante, entremeio aos escombros flutuantes, a balsa salva-vidas, gerando um alento em todos, em cujo rumo seguiram a nado. Os que primeiro a alçaram ajudaram os demais a subir. Sobre ela, jogavam-se exaustos.

Um dos sobreviventes era evangélico e ajoelhou-se elevando os braços ao céu, invocando pelo Senhor, pedia que os salvasse. A chuva continuava intensa, um dos homens sugeriu que colocassem a lona de proteção contida numa espécie de almofada travada por um fecho, assim ficariam menos desprotegidos.

Ângelo apoiava-se estarrecido, tornava-se comandante sem barco, agora nivelado aos sobreviventes em igualdade de condições. As cenas lúgubres pairavam em sua mente, impedindo-o de raciocinar.

Nestes momentos de aflição as pessoas se revelam em reações imprevisíveis.

Um esquálido pescador que se mantinha sempre contraído, agora, em pé, dava sugestões aos demais e aconselhou verificarem entre os objetos flutuantes algo que pudesse servir aos sobreviventes. Sua indicação permitiu localizar enorme caixa de isopor que flutuava, nela havia peixe espostejado e na salmoura, supriria o alimento que necessitariam. Com um cabo, a trouxeram para bordo.

A embarcação flutuava ao sabor das ondas e todos temiam serem invadidos por uma delas, movimentavam-se a bordo para evitar que isso acontecesse, mudavam de posição para que o lado atingido pela marola ficasse mais elevado, agindo como contrapeso.

Molhados e assolados pelo vento frio, encolhiam-se em si mesmos, à espera do nada ou de um milagre que os salvassem.

Nos acessórios de salvamento atrelados na balsa, havia uma caixa contendo uma pistola e cinco cargas de fogo sinalizador, alimentos enlatados e dois garrafões de água potável.

Aquele bote salva-vidas evitou que, levados pelos ondas, se dispersassem e morressem de frio.

O mesmo pescador que passou a liderar o grupo uniu-os, traçou um programa improvisado de sobrevivência e falou:

- Ninguém exercerá o comando, o faremos coletivamente. Somos nove sobreviventes, toda a decisão que tomarmos será aprovada pela maioria. Racionaremos a água e os alimentos. Com fé, sobreviveremos. Seremos procurados

Mesmo que efêmeras, aquelas palavras confortaram os náufragos.

- Eu juro que se me salvar, jamais me aventurarei no mar – a expressão foi ouvida sem definirem de quem partira.

A chuva abrandou, transformada em garoa, ainda era ruim, mas melhor que torrencial. Evitava empoçar no chão. Um sutil clarão surgia entre as nuvens, indicava o breve nascer do Sol que traria esperanças aquelas pessoas. O peixe em salmoura passou a ser o alimento de todos, porém consumido com moderação, respeitando o necessário racionamento.

O mestre comentou que pelos seus cálculos estariam há mais de cem quilômetros da costa, e à deriva não poderiam citar uma referência de localização.

Todos se deram conta de estarem em mar aberto levados pelo vento em várias direções, por vezes, sem avançar para lugar algum. Um dos pecadores de mais idade comentou:

- Devemos estar preparados para a hipótese de levar dias para sermos localizados, como também de não nos acharem. Imaginem, estamos há mais de 100 quilômetros da costa. Como poderão vasculhar o oceano e nos avistarem, se somos como uma ínfima casca de nozes flutuando?

Quando o mestre fez o apelo de socorro via rádio, foi impedido de dar sua localização, mas fora captado pela estação de rádio da aeronáutica em Florianópolis, que acionou a Marinha.
Em Itajaí, o núcleo dos pescadores agitou-se. A notícia percorreu veloz preocupando os familiares que se postaram insones, à espreita de notícias que retardavam. Pessimistas alardeavam ser impossível a sobrevivência no mar, diante da tempestade avassaladora.

Os parentes das vítimas juntaram-se na casa de outros membros da tripulação, na expectativa de alguma informação de sobreviventes. Entre eles estavam os familiares de Degas e Vanessa, a namorada de Galego, que se lamentava-se:

- Eu e Galego pretendíamos nos casar no mês que vem... - interrompia o lamento com choro intenso.

A esposa de Degas comentava:

- Sinto-me culpada em tê-lo incentivado, na interpretação de que ele realizaria seu sonho. Deveria tentar impedi-lo e não o fiz.

O Sol espalhou-se na tona da água, seus raios aqueciam a balsa. Alguns dos tripulantes retiravam os agasalhos expondo-os para secarem.

Um deles, colocava-se em pé na popa, perscrutando o horizonte em busca de enxergar alguma embarcação. Porém, nada via senão o infinito de água coberto pelo céu que se tornava azul e sem nuvens.

Nisso, um grito agitou a todos:

- Um navio, olhem lá!!!

O sujeito apontava a estibordo um enorme navio mercante, distanciado.

Em ato contínuo, alguém apanhou o sinalizador e disparou na vertical, no espaço aflorou o cogumelo rubro que pareceu pairar por alguns segundos e despencou lento rumo da tona. Não satisfeito, lançou outro sinalizador, seguindo de um terceiro, quando alguém alertou que economizasse os outros dois tiros, pois poderiam necessitar caso não fossem vistos pelo navio. Todos se acabrunharam notando a embarcação prosseguir na rota sem proceder manobras na direção, até confundir-se com o horizonte e perderem-na de vista.

Totalmente perdidos, prosseguiram à deriva com as expectativas exaurindo-se. Ao chegar a noite, trazendo novamente ventos gelados, recostaram-se de qualquer jeito, deixando-se abater pela fadiga. Alguns adormeceram.

Pela manhã, foram despertados por alguém que mostrava uma gaivota pousada na proa da embarcação e dizia:

- Isso é um sinal de não estarmos distantes da costa.

Um dos marinheiros meditava como seria bom ter asas como aquela ave, senão voar, poder subir bem alto e enxergar terra. O religioso sugeriu incorporarem-se numa oração, assim católicos e evangélicos uniram-se na prece coletivamente.

O vento forte soprado do oceano contido de maresia, formava salinidade nos lábios e na face dos sobreviventes. Os que fumavam mostravam-se ansiosos na ausência do tabagismo, mesmo que tivessem cigarros e fósforos estariam destruídos pela submersão que se impuseram. Um litro de aguardente que havia na balsa foi repassado de mão em mão, cada um ingeriu um gole.

Todos foram despertados pela cratera que, num repente aflorou na tona da água, de onde emergiu um enorme espadarte de quase quatro metros, reconhecido pelos pescadores pelo bico semelhante a uma espada desembainhada.
Logo foi seguido por outro, que atribuíram tratar-se de um casal que após alguns saltos sumiram de vista.

Era o terceiro dia que transcorria desde o naufrágio. As esperanças oscilavam entre o otimismo e o negativismo. Os assuntos eram variados, a maioria extravasava remorsos com promessas de corrigirem-se, cujas revelações eram aproveitadas pelo crente em pregações de fé que, de certa forma, auxiliavam a mente de todos.

Júnior decidiu contar que iniciara a prender o alfabeto mas que lamentava haver perdido seu professor e numa posição ousada para aquele momento, virou-se na direção de Ângelo e disse:

- Um dia, eu serei um mestre como o Senhor, sei que desta escaparemos e a vida de todos voltará ao normal.

Aquelas palavras partindo de um jovem eram positivas, não deixavam de fazer que todos antevissem a existência do amanhã. Ângelo, que sabia da origem daquele humilde pescador, aproveitou para falar:

- Júnior, eu fui um menino tão pobre quanto você. A vantagem que eu tinha era pais vivos e irmãos. Também comecei muito cedo, meu trabalho se limitava nos trapiches, auxiliando a descarga dos barcos e trabalhava sem receber dinheiro. Em troca, levava sardinhas para casa, atenuando as privações. Um dia, um professor esteve em nossa casa, lembro que repreendeu incisivamente meu pai porque eu e meus irmãos não estudávamos. Aquela repreensão foi suficiente para que meu velho me proibisse de freqüentar o trapiche. Doravante, eu estudei até concluir o ginásio. Meu pai também era pescador e aproveitou para nos citar seu exemplo de que a única riqueza que conseguira na vida éramos nós, seus filhos.

Aquele, homem com imagem de durão, diante da calamidade em que se encontrava, abrira seu coração na explanação composta de humildade. Todos escutavam boquiabertos quando ele prosseguiu:
- Aos 18 anos de idade, voltei a freqüentar o trapiche e consegui a oportunidade de um mestre, pelo fato de eu ser aculturado, estagiar a bordo de seu barco e aprender a profissão de motorista. Habituei, a praticar todo tipo de leitura, quer quando estava em terra e levava livros comigo nas viagens.

Júnior espichava o pescoço atento, empolgando-se na fala do comandante que continuou sua história:

- Um professor na escola sempre nos aconselhava a pratica a leitura, chegava a dizer-nos que pouco interessava a matéria lida, toda e qualquer palavra auxiliaria a cultura em nosso amanhã. Eu sei o quanto ele tinha razão em nos aconselhar, pois através da leitura minhas exigências ampliaram-se e decidi ir além, traçando o objetivo de tornar-me mestre em navegação. Com o tempo, galguei esta posição, infelizmente, comento num momento de adversidade, pois para um comandante, a perda de uma embarcação tem um sentido muito forte. Mas, da mesma maneira como as ondas se renovam no mar, as oportunidades também se sucedem. No insucesso, aprendemos lições e nos aprimoramos na vida.

Ângelo explanava coletivamente, não somente para o garoto, e colocou a cabeça apoiada na borda mantendo-se meditativo. Júnior, para quem tudo era novidade, atentou para aquelas palavras e de certa maneira sentiu-se trilhando o caminho de seu objetivo. Ao chegar na cidade, procuraria uma alternativa de trabalho, que lhe permitisse alfabetizar-se e ser alguém na vida.
Naquele instante, sua cabeça foi povoada pelas palavras de Degas:

“ Eu o ensinarei e em algumas viagens estarás alfabetizado”

Não pode ocultar a emoção e lágrimas escorreram de seus olhos. Aquele homem, no curto espaço de tempo no qual o conhecera, significara um marco em sua vida. Era como um enviado que cumpria uma missão divina, preenchera o vazio de um pai que não conhecera. Era a primeira vez que sentira alguém preocupar-se consigo e dar-lhe carinho.

Seguiu-se um silêncio que num repente foi entrecortado pelo som de turbinas de um avião, e todos colocaram-se em pé, na expectativa de enxergarem-no. Pelo som, constatavam que o avião procedia círculos no alto, porém o ruído perdurou cerca de quinze minutos e as esperanças se exauriram ouvindo o som afastar-se.

Naquele avião, o piloto conversou com seu auxiliar:

- Companheiro, hoje é o terceiro dia que sobrevoamos o oceano sem resultados. Temo que os tripulantes daquele pesqueiro naufragado não sobreviveram diante das hostilidades do mar.

- Comandante, sempre restará uma esperança, é possível caso tenham sobrevivido que em novo vôo amanhã localizemos, no mínimo os destroços da embarcação. A Marinha também faz buscas, rasteando por água.

O comandante imprimiu os manetes acelerando o turbo-hélice direcionando o vôo de regresso para Florianópolis, onde se baseavam, envolvidos naquela missão.

A bordo da balsa, recrudesceram as esperanças. Aquele sobrevôo, mesmo que não tivessem visto a aeronave, fazia-os interpretar de que estavam sendo procurados, indicando que as busca continuariam durante a semana. Mais uma noite tenebrosa, a mercê do oceano foi transposta.

A restrição alimentar racionada provocou emagrecimento nos náufragos e desidratação pela absorção insuficiente de água que restava naquela dosagem controlada para mais 24 horas. Os mais obesos evidenciavam menor resistência que os magros, aqueles permaneciam deitados imóveis, não se atreviam a sequer postarem-se em pé.

Em Itajaí, os familiares viam exaurirem-se as esperanças, pois haviam recebido comunicação da base aérea da capital de que as buscas naquele dia haviam sido infrutíferas. Porém, recomeçariam na manhã seguinte.

O primeiro vôo decolou às 8:15 da manhã do aeroporto Hercílio Luz, em direção ao sul e sudeste. Saiu rente ao oceano, voando em baixa altitude. Voavam a 25 minutos, mantendo a atenção para tona do oceano quando o comandante sinalizou ao co-piloto, com o indicador apontado para a água.

Ambos olharam, facilitados pela curva inclinando a aeronave e viram destroços espalhados a boiar. Indicavam terem partido de um mesmo lugar. Num rasante, puderam visualizar caixas plásticas e coletes salva-vidas boiando, provavelmente desprendidos do convés de um barco naufragado. Não hesitaram anotando a posição em que voavam informando o que haviam encontrado à base, via rádio, esta por sua vez acionou a Guarda Costeira que navegava em idêntica finalidade.

Aqueles entulhos flutuantes eram um indício de que o naufrágio ocorrera na área. Logo avistaram o enorme V formando-se sobre a água, sinalizando a vinda veloz de uma embarcação da Marinha, orientada na direção que haviam indicado.

Quando esta aproximava-se do local, retornaram à base para receber instruções e reabastecerem o avião.

Foram recomendados para voarem em distintas direções a cada 15 minutos, onde supunham estarem eventuais sobreviventes.

Eram 11:00 da manhã quando os sobreviventes sobressaltaram-se com o ronco de uma aeronave, logo vista, porém sendo encoberta pelas baixas nuvens que se formavam. Sem demora, municiaram a pistola sinalizadora e disparando os dois últimos cartuchos que em sequência contrastavam o vermelho contra a alva nebulosidade.
Os sinais foram evidentes para os pilotos que embicaram o avião e não tiveram dificuldades em avistar o toldo alaranjado e o abanar nervoso dos ocupantes. Passaram num rasante, evidenciando de terem sido localizados.

O avião procedeu um afastamento seguido de uma preguiçosa curva, e sua velocidade foi reduzida ao máximo enquanto a rampa traseira do modelo foi rebaixada.

Próximo de onde estava a balsa, caiu enorme fardo de primeiros socorros, fazendo com que Júnior se jogasse na água em busca daquele volume que conduziu puxando-o para a borda da balsa.

Após um último sobrevôo, rasante, o avião galgou altura e regressou ao ponto de partida enquanto pelo rádio transmitiam a alvissareira notícia, revelando a localização de nove dos tripulantes do pesqueiro.

Os sobreviventes sentiram salvos e abraçavam-se entre si em contagiante euforia. No embrulho, continha água em abundância, medicamentos de primeiro socorro, leite em caixas, pão fresco e outros alimentos permitidos a serem consumidos por eventuais desnutridos. Todos fartaram-se despreocupados com o racionamento ao qual se submetiam.

Logo foram atraídos pelo som dos motores de uma possante embarcação da Marinha que ancorou próxima da balsa. Arriaram um barco inflável para transladar para a nave, os sobreviventes. Finalmente no quarto dia a deriva viam-se salvos e souberam que havia sido comunicado aos seus familiares. Agora confirmariam os nomes para lançarem no boletim oficial do resgate.

Todos estavam sem documentos e soletraram seus nomes. Júnior constrangeu-se ao receber uma caneta para registrar seu nome – mais uma vez sentiu a imperiosa necessidade de saber ler e escrever – porém, o marinheiro anotou seu nome.

Em Itajaí, a notícia circulou rapidamente levando a alegria aos parentes e amigos que se mantinham na expectativa daquele fato. Seriam trazidos pela embarcação da Marinha, com chegada prevista para o meio da manhã do dia seguinte.

Depois de muitos dias, alimentavam-se com comida quente, a bordo serviram sopa, arroz e bifes.

Fartaram-se. Era uma das melhores refeições que faziam na vida e naquela noite dormiram aquecidos e descontraídos, mesmo que, alguns acordassem em meio a pesadelos, na suposição de estarem a bordo da balsa.

Júnior, por ser o mais jovem, ganhou um boné com o emblema da marinha e do navio que os socorrera. Oficias da Força Aérea que localizaram a balsa, incorporaram-se à tripulação da embarcação e iriam até Itajaí, destino final dos náufragos, onde foram recebidos como heróis.

Desde de cedo o cais, nas proximidades da Capitânia dos Portos, em Itajaí, estava coalhado de pessoas à espera.

Não faltaram os fogos, revelando a festividade receptiva. Jornalistas e a TV esperavam para colherem declarações e obterem imagens dos sobreviventes.

Vanessa, levada pelo irmão, estava introspectiva e abatida psicologicamente. Fora prestar solidariedade e informar-se sobre o acidente. Em sua mente, restava um fio de esperança de haver algum engano e Galego ter sobrevivido.

Próximo das dez horas, entrou no canal, na direção do porto, a inconfundível nave cinza-escuro da Marinha.

No convés, os sobreviventes abanavam incessantemente para os de terra.

O barco atracou, foi rebaixada a escada. Primeiro desembarcaram os marinheiros, seguidos pelos membros da força aérea. A seguir, em fila indiana, os esperados sobreviventes, que aceleravam o passo no desembarque.

Os abraços foram permutados entre gritos, choro e risadas, todos comungavam da alegria de haverem sido salvos.
Um dos últimos a acessar o cais foi Júnior, notado por poucos, pois não possuía ninguém para recepcioná-lo. Emocionou-se pela ausência do calor humano, lágrimas verteram de seus olhos e ficou por ali.

Uma senhora aproximou-se perguntando se fazia parte daqueles náufragos. Ele confirmou e espantou-se diante de novo comentário:

- Me chamo Suzana. Meu marido era Degas, o cozinheiro do barco.

Aquelas palavras ressoaram nos tímpanos de Júnior, estava diante da esposa de seu finado amigo. Jogou-se nos braços da mulher em choro convulso, nela via a mãe que jamais conhecera.

No afago, entre soluços, relatou para a mulher, que também chorava, a relação que mantivera com Degas. Revelou o quanto o quis bem apesar dos poucos dias de convívio.

A mulher estava acompanhada do único filho, Ronaldo, com 35 anos. Recompondo-se, ela fez nova pergunta:

- Seus familiares não estão por aqui?

- Não senhora, eu não tenho ninguém, sou sozinho no mundo...

Ela encerrou com uma última questão:

- Com quem resides?

Ele, cabisbaixo, respondeu:

- Não tenho casa, durmo junto dos trapiches, às vezes no interior dos barcos de pesca.

A senhora penalizou-se instantaneamente daquele sofrido jovem e convidou-o para ir até sua casa, sugerindo que lá poderia se hospedar por alguns dias.

Teve que insistir para que ele aceitasse. Ronaldo, o filho, levou-os de carro para a residência de Degas. Na mente de Júnior rodava a imagem do companheiro e deduzia que, mesmo morto, ele o protegia, através da esposa que se mostrava bondosa, querendo ajudá-lo.

Chegaram numa rua onde as casas possuíam fachadas semelhantes, construídas e financiadas para funcionários do Estado. Aquela residência fora adquirida por Degas, único patrimônio que deixara para a viúva. A casa era simples, mas bem pintada, e antecedida por um jardim. Um cachorro lanudo veio festejar sua dona, que o acarinhou enroscando os dedos nos pelos dizendo:

- Este é Sultão, criado por Degas...
Júnior adquiriu coragem e afagou o animal, que se embrenhou faceiro entre suas pernas.

Suzana abriu a porta convidando o rapaz para entrar, no interior havia um jogo de sofás, um maior ladeado por dois de assentos individuais, na frente uma TV, sobre a mesinha de centro, uma vaso com lírios brancos.

Júnior sentia-se constrangido, não ocultava seu estado de espírito enquanto olhava discretamente o ambiente.

Viu na parede uma foto emoldurada, nela reconheceu seu amigo ao lado da esposa - uma estampa de busto, quando ambos eram jovens.

Ronaldo entrou na sala, na fisionomia havia tristeza, porém mostrou-se afável com Júnior. Sentaram-se nos sofás e Ronaldo comentou:

- Veja a ironia do destino. Papai esperou 40 anos para se aposentar e fazer aquilo que sempre sonhara. Nem bem iniciou e morreu. Nos consola dele ter realizado seu desejo.

Júnior sentia-se mal, não era habituado a residências e participar de conversas formais. Sua vida era voltada para a rua, entremeio de pescadores envolvidos em cultura própria. Suzana chegou trazendo café e serviu-os com bolachas.
O garoto observou que queriam que ele contasse sobre a morte de Degas, tinha pouca cultura mas detinha sentimentos, não contaria a derradeira e triste cena que vira.

Limitou-se a relatar que foram envolvidos por uma gigantesca onda e todos no convés foram jogados ao mar. Dois deles não foram localizados: Degas e Galego. A viuva ouviu silenciosa, não escondendo o pesar, comprimia fortemente a mão de Ronaldo.

O filho, buscando dissimular a tristeza reiterou o convite para Júnior residir na casa de sua mãe. Seu quarto de solteiro poderia ser usado pelo menino, além de sua mãe não ficar sozinha. Ela, desde que soube da morte do marido, informara que não mudaria da casa.

Ronaldo, de estatura semelhante a Júnior, disse que tinha no guarda-roupas vestes que não mais usava. Sugeriu que ficasse com elas, o rapaz, mais calmo, agradeceu.

Para ele, um teto decente para residir era um sonho, dormia entremeio de caixotes e sacos. Não conhecera o calor de um lar e sabor da comida quente.

Suzana preparou um lanche para todos, Júnior fartou-se e logo bocejou demonstrando cansaço. Ronaldo despediu-se. Suzana insistiu para que ele se recolhesse ao quarto, indicando a direção.
Sabiam que Júnior já era adulto, porém, era analfabeto e carente, para nortear-se na vida precisava ter uma base, um lar. Decidiram lhe dar tal condição.

No aposento, havia um chuveiro e instalações, munidas com água quente.

Deu boa noite a Júnior, puxando silenciosamente a porta do quarto. O jovem estava perplexo pela forma que o tratavam. Sentou-se sobre a cama e perscrutou as dependências.

Havia uma extensa prateleira ao longo da parede, nela dezenas de livros. Sobre uma cômoda, um pequeno aparelho de TV e na mesa de cabeceira um rádio relógio.

Ao deitar-se, Júnior sentiu o aroma das cobertas limpas, aquele mesmo aroma que imaginava que os filhos sentiam em suas casas. Desligou a luz de cabeceira, estirando-se na confortável cama e adormeceu.

Acordou-se cedo, sentiu o cheiro delicioso do café. Num salto rumou para o banheiro onde, sobre a porta de vidro laminado do boxe, estavam duas toalhas uma de rosto outra de banho, um sabonete ainda na embalagem .

Após banhar-se e secar o corpo, olhou-se no espelho do armário e abriu-o cuidadosamente. Nele havia escova e um tubo de pasta de dentes. Numa cartela, lâminas de barbear. Não hesitou e aparou as penugens do rosto.
Uma espécie de toalha mais espessa estava no chão, usou-a para enxugar o assoalho, atentando se havia mais lugares molhados. Aprendera com Degas a manter a cozinha limpa, e ali não seria diferente.

Ganhara da Marinha uma camiseta de malha, um jaleco, calça, cueca. tênis e meia. Atribuiu das vestes estarem limpas e as colocou. Quando calçava o tênis ouviu batidas na porta seguidas da voz de Dona Suzana:

- Júnior, o café está na mesa...

Na sua memória vinha-lhe idêntica chamada que fazia uma mãe no sobrado, sob cuja marquise dormia.

Num instante, pareceu-lhe ter dormido no local habitual. Mas deu-se conta que desta vez era realmente chamado.

Apressou-se e rumou para a cozinha, deduzindo que se situava nos fundos da casa. Dona Suzana estava sentada aguardando-o e deu-lhe um bom dia afável, por ele retribuído.

Sentou-se no lado oposto, deparando-se com uma mesa repleta de guloseimas, além de pão, havia um bolo, pequenos frascos com geléias e queijo fatiado no interior de um prato. Ela prontificou-se a servir café com leite. Ele costumava tomar café puro e gelado, sentiu o aroma do leite misturando-se ao café. Apanhou uma fatia de pão, sobre a qual passou mel e complementou com queijo. Compunha uma mistura que sempre quisera comer, mas que ficava na imaginação.

Mastigou devagar para sentir o sabor, intercalando com goles de café com leite.

Suzana falou:

- Vamos encontrar uma escola para matriculá-lo.

- Mas... – gaguejou Júnior - A senhora não precisa se incomodar eu como por aí...

- Por aí coisa nenhuma, agora tens uma casa e família.

- Esta bem – ele limitou-se a responder.

Ele envergonhou-se diante de Suzana e cabisbaixo revelou ser analfabeto. Sem dar tempo, relatou que começara a estudar através de aulas iniciadas pelo Senhor Degas.

Esperava dela reagir com uma repreensão, mas ao contrário ela falou:

- Ok Júnior, afinal ninguém nasce sabendo e não vou criticá-lo. Ainda está em tempo de estudar e ser alguém importante na vida. Me dê seu documento de identidade que vou inscrevê-lo no curso supletivo.

Notou nele a reação indecisa e ouviu-o:

- Dona Suzana, eu não tenho identidade. Possuía uma carteira concedida pelo juizado de menores para que eu pudesse trabalhar e não ser molestado pela polícia, mas perdi a carteira no naufrágio.

Ela penalizou-se, lembrando dele ser órfão e sabe Deus como viera ao mundo. Comentou:

- Ok meu filho, nós vamos providenciar uma segunda via e obter uma carteira decente para que uses. Qual seu nome completo?

- Júnior – respondeu – Assim que todos me chamam e me conhecem.

Aos poucos ela identificou que ele era um excluído, sem nome e sobrenome, sem origem, apenas alguém na multidão. Sentiu enorme angústia em seu coração, diante daquela criatura desamparada que, se não fora a casualidade daquela naufrágio, continuaria nas ruas.

Então falou:

- Bem, façamos o seguinte: hoje a tarde iremos juntos à escola na qual estudarás. Não se preocupe em trabalhar para comer e vestir, não terás mais problemas. Aquilo que eventualmente precisares eu e Ronaldo te daremos

Suzana catou no quarto do filho um caderno semi usado, caneta e borracha. Entregou-lhe dizendo:

- Estas são as ferramentas das quais precisarás para tornar-se gente.

Levou a mão à boca e corrigiu-se:

- Quero dizer, para tornar-se alguém.

Na manhã seguinte, foi o primeiro dia de aula de Júnior. Ele notou que a tarefa que recebeu consistia numa semelhante àquela que Degas lhe dera - aprender o abecedário. Depois escrever os algarismos de 1 a 10, juntar letras e com o tempo escrever frases. Tinha que decorar a tabuada e iniciar exercícios simples.

Constrangia-se na sala de aula, os colegas sabiam mais que ele. Sentava-se na última cadeira e mostrava-se atento aos professores.

Em casa, à noite, após o jantar, auxiliava nos serviços da limpeza da cozinha - sua especialidade - Suzana ministrava duas horas de aula puxadas, intercalando português e matemática. Em um mês ele nivelava-se aos primeiros colegas, prosseguindo no aprendizado. Mas algum tempo, formava palavras e avançava em outras por conta própria. Assim como aprendeu as quatro operações matemáticas.

Nos finais de semana, Ronaldo os buscava para almoçarem em sua casa, tratava-o como irmão que não tivera. Júnior apegou-se à família que nunca possuíra.

Aos poucos, ele evidenciava-se na escola e à noite arriscava-se a folhear os livros que retirava da prateleira, ia até tarde esforçando-se na leitura.

Naquele ano, Júnior conheceu o Natal e pela primeira vez na vida comeu carne de peru, participando de uma ceia íntima na residência com o irmão adotivo, a esposa e dois meninos.

O jantar foi antecedido por uma oração coletiva, em memória de Degas.

Júnior sentia-se feliz, porém seu comportamento sofria altos e baixos. As vezes, se portava como criança, pois vivia fatos que no devido tempo fora privado.
Em cursos intensivos, estudou ininterruptamente de 8 a 10 horas por dia, avançou nos estudos e concluiu o segundo grau.

Suzana e Ronaldo jubilavam-se com o jovem e lhe presentearam com uma bicicleta. Facilitaria suas freqüência à escola.

Restava agora obter os documentos para que obtivesse emprego e tivesse o próprio ganho. Com o auxílio de amigos e beneplácito de um juiz, penalizado com a história de Júnior, conseguiram um registro de nascimento, cadastrando-o como filho. Passou a chamar-se Júnior Degas, orgulhando-se do sobrenome.

Na junta de alistamento militar, o consideraram dispensado do serviço.

Através de suas relações, Suzana conseguiu um emprego para Júnior numa agência de navegação. Ele deu-se bem e demostrava o interesse em aprender a língua inglesa. Aos vinte e seis anos, ele superara a falta de estudos. Comunicava-se em bom português e revelava desembaraço.

Numa certa noite, falando com Suzana revelou que se informara sobre um curso de navegação. Mantinha em suas veias o sal do oceano, sonhava em navegar. Mais dois anos de intensos estudos ele conquistara o diploma de mestre em navegação.

Aquele jovem, agora com 28 anos, instruído, conseguiu emprego no comando de uma bela e nova embarcação. A profecia feita em conjunto com Degas, anos atrás, confirmara-se. Júnior jubilava-se de seu barco, conectado em navegação via satélite, radar e equipamentos sofisticados a bordo.

Um dia, ele zarpou.

No trapiche ficaram lhe acenando Suzana e Ronaldo. Ele com um boné de ramos dourados e uma indumentária de comandante.

Navegava numa noite de lua cheia prateando as marolas oceânicas quando avistou na proa, em sentido contrário, uma embarcação de pesca que retornava.

Através do rádio comunicaram-se. Ele ouviu nitidamente a voz do outro comandante:

- Olá marinheiro... aqui fala Mestre Ângelo, aproximando-se do Porto de Itajaí.

Aquele nome, associado à pronúncia sulista, ativou a memória de Júnior que contestou a chamada:

- Olá, companheiro, aqui fala Júnior Degas, comandante da embarcação Júpiter, vindo da base de Itajaí.

Ângelo não associou quem seria aquele comandante, para ele, certamente, um novato. Quando o rádio foi novamente acionado e atendido por Ângelo, confirmou a escuta dizendo:

- Atento, prossiga.
- Mestre Ângelo, tu não lembras de mim? Sabes quem sou?

– Não...

Não deixou-o prosseguir:

- Sou aquele seu tripulante, ainda garoto, que sobreviveu ao naufrágio. Não esqueci de seu incentivo. Estudei e aqui estou no rumo do mar. Foi um prazer tê-lo reencontrado.

Dizendo isso encerrou a chamada.

O mestre Ângelo pôs-se meditativo, tentando formar imagens na mente. Num repente, lembrou-se daquele rapaz sentado à sua frente sobre o chão da balsa salva-vidas.

Rápido, retomou a chamada, insistiu duas vezes seguidas, mas não houve contestação.

Virou-se na direção da popa e viu delineada e distante o barco Júpiter.



Odilon Fehlauer
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