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Contos-->A lagoa das montanhas flutuantes -- 26/08/2006 - 09:34 (Jader Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A LAGOA DAS MONTANHAS FLUTUANTES

Essas histórias são todas verdadeiras. Pode acreditar nelas, minha mãe é testemunha séria. A lagoa tinha montanhas leves, eram enormes vulcões erguidos com a palha de café que saía, dia e noite, da enorme bica quadrada da máquina do senhor Orlando. O vento as carregava de um lado para o outro, daí o nome de montanhas flutuantes que eu, menino ainda, sonhava em viajar navegando nelas...Enquanto os outros meninos brincavam, gastando seu tempo com correrias, eu trabalhava na horta e no bar do meu pai. Com o cérebro posto nas coisas improváveis da vida, o coração aquecido eu observava os acontecimentos, sobretudo a ação desastrada do Juca a conduzir a família. Foi dessa observação diária, dolorida e saborosa dos meus oito anos, que tirei estas histórias. A Vila de Água Doce, a lagoa, a Pedra de Santa Maria, a casa, o quintal e os compadres, tudo existiu de verdade. Foi um lugar de sonho real, perdido entre as serras de granito da fronteira Norte do Espírito Santo com Minas. Dona Francisca, minha mãe, foi a minha única testemunha, mas como ela morreu muito nova, infelizmente não poderá dizer nada em meu favor.



O Cemitério de Arame


Da porta da minha casa dava para ver, no morro que ficava em frente, o coreto de madeira e a pequena igreja de pau a pique da Vila de Água Doce. Um pouco mais acima ficava o cemitério de arame por onde passei várias vezes acompanhando o Juca, meu pai, a caminho da mata. Ele sempre levava consigo um rifle silencioso, calibre 22, que chamava de “flobé”, com o qual pretendia caçar alguns macacos barulhentos que moravam por lá. Sempre fui um medroso e passava encolhido, sem olhar para dentro do cemitério, evitando ver as cruzes fincadas nas covas fundas —feias como bolo solado, de forno aberto antes da hora. Por causa do meu medo mórbido, o Juca dizia que eu era um cagão. Vai ver que era mesmo, mas era ele quem levava um rifle a tiracolo.
Eu tinha medo, muito medo mesmo, porque aquela cerca delimitava um local misterioso, onde moravam os herdeiros das vidas e dos corpos dos meus antepassados. Se eu não partisse rapidamente dali, daquela Vila de Água Doce, também me tornaria uma herança pobre para os meus descendentes. Não havia túmulos no cemitério de arame, túmulos feitos em tijolos ou mármore, estes não existiam ali, eles eram embutidos no chão, formando pequenos outeiros desalinhados de terra vermelha. Era um formigueiro habitado por gente morta. Ninguém era rico na Vila para estar gastando dinheiro erguendo igrejinhas. Os corpos das pessoas queridas eram lançados em covas humildes, posteriormente demarcadas por gaiolas de madeira na forma de umas molduras rudimentares, feitas com ripas verticais, pintadas em azul ou rosa, envoltas em ramas verdes de chuchu. Eventualmente uma cruz se alteava, formando um cenário triste, lotado de gente morta para sempre. Ali moravam os novos pigmeus da Vila de Água Doce. Antigos homens que encolheram e agora cabiam em covas tão pequenas.
As gaiolas me faziam pensar que as almas dos mortos da Vila de Água Doce viviam presas como passarinho. O primeiro túmulo bonito, o mais chique que surgiu no cemitério de arame, foi o dos italianos Giostri. Lembro que ele tinha uma cruz de bronze malfeita, e um anjo feito de cimento caiado de branco. Parecia uma capelinha. Eu gostaria de ser enterrado num túmulo igual àquele, mas o meu pai não podia saber disso, nem pensar. Ali, no silêncio perpétuo, moravam homens, mulheres e os anjinhos corajosos que ousaram morrer primeiro do que eu. Aos nove anos eu já pensava que era preciso ter muita coragem para morrer, mas depois descobri que ter medo também não adianta nada.


O Medo do tio

Depois que a dona Francisca morreu, o tio Pedro chegou para nos buscar e levar para o Rio de Janeiro. Desse tempo, eu ainda me lembro que ele passou por momentos difíceis na nossa casa. O meu tio-herói não se deu bem com as águas insalubres do lugar e pegou uma maleita brava. De repente ele passou a sentir fortes calafrios e tremia como uma vara verde. Da cama destinada a ele, o pobre tinha uma boa visão do cemitério da Vila e eu pensava que ele tremia mesmo era de medo ser enterrado no cemitério de arame da Vila de Água Doce, onde os tatus-galinha entravam e saíam livremente. Ele morria de medo de ser comido pelos tatus. Tinha ouvido dizer que os tatus apreciavam comer carne de defunto fresco. Crendospadre.
Nesse tempo não havia médico na Vila. O único recurso na área da saúde era o habilidoso farmacêutico Florizel, que era um gordo competente mas nem tanto. Finalmente, o meu tio deu sorte e se curou. Fez uso de recursos caseiros, aprendidos com os negros umbandistas do Rio de Janeiro e ficou bom em pouco tempo. Durante o período em que ele ficou doente e acamado, eu observava o seu comportamento. O meu pobre tio, afundado na cama, olhava apavorado pela janela e via o cemitério de arame da Vila, mas nunca confessaria para mim nem para ninguém que tinha um medo danado de morrer e ser enterrado ali. Estou certo de que vi nos seus grandes olhos de jabuticaba o mesmo pavor que eu sentia quando passava pelo morro dos mortos. Aquele meu tio e herói certamente era também um grande cagão, como eu.
O coveiro Marriel, um negro bêbado contumaz, compadre do meu pai por nunca sabidas razões, era o traficante oficial de anjos da Vila de Água Doce. Eu sabia que ele reinava absoluto nessa área. Creio que o meu tio Pedro também já tinha ficado sabendo da sua história e era por isso que tremia tanto. Caso morresse, imaginava eu, o meu tio não gostaria de ficar sob os cuidados do coveiro Marriel, e menos ainda num lugar solitário e feio como aquele. E ele tinha razão, crendospadre!
Depois do dia triste em que deixamos a Vila, na caravana cabisbaixa dos meninos feios com destino ao Rio, nunca mais voltamos lá. Imagino que, se o meu tio tivesse morrido por causa da maleita, teria ficado por lá jogado no interior de uma daquelas covas fundas, tendo por colegas apenas caveiras estranhas, sem contar a mais que provável ação deletéria dos tatus-galinha, comedores de defunto. Me dá até arrepios quando lembro disso. Ele tinha razão. Coitadinho do meu tio Pedro!


Galinha caipira

Não era sempre que acontecia, mas quando se aproximava a hora do almoço, a galinha mais gorda do quintal era abatida pelo meu pai. O Juca arrancava algumas penas da ave, na altura do pescoço, e em seguida aplicava a lâmina afiadíssima. E fazia tudo isso sem pedir licença ao pobre galináceo. Colhia o sangue abundante e reservava em xícara pequena de ágate. Depois, a galinha era depenada por inteiro, com ajuda de água fervente, ocasião em que as penas liberavam um cheiro esquisito. Em seguida, a dona Francisca a cortava em pedaços certos e refogava com maestria numa panela de ferro. O sangue colhido, coagulado feito um pequeno queijo suiço, era também cozido junto com a “oveira” —assim era chamada a estrutura central do ovário e a penca de ovinhos amarelos anexos que estavam prontos para vir ao mundo na forma de pintinhos. A meu pedido, a moela, o pescoço e os pés da galinha, sem as unhas, também entravam no processo. Depois de uns vinte ou trinta minutos no calor do fogão de lenha, com a tampa da panela sambando em meio à fumaça e ao caldo quente, eu me deliciava. Havia um caldo dourado, com muita cebola e bolinhas de gordura que eu botava sobre o arroz. Se tivesse polenta ainda era melhor, mas apenas os miúdos do frango e o arroz já eram suficientes. O tempo de cozimento era uma eternidade. Até que tudo ficasse pronto eu rodeava ali por perto gemendo, dando pulinhos, correndo feito um bobo, apressando a cozinheira. Eu era o principal freguês da minha mãe e acho que era só por isso que ela me tolerava.
Um dia o tio Sebastião, que morava na cidade de Santo Onofre, veio nos visitar e ficou conosco um dia inteiro. Na hora de voltar, convidou-me para ir com ele. Ele não tinha carro e seu sítio ficava longe, na direção de Ataléia. Para mim, que era pequeno, parecia uma distância enorme —umas sete léguas aproximadamente. Fui, mas não deveria ter ido. Ao final do dia, quando chegamos na casa do tio, eu estava com assaduras feias no ponto de fricção das nádegas e não consegui dormir. Para incrementar a minha insônia, veio o medo. Enormes vaga-lumes, de um tamanho que eu nunca tinha visto, entravam pelos vãos das telhas e acendiam fachos de luz azulada que me apavoravam. O quarto ora ficava escuro, ora ficava claro. Medroso, eu não dormia. Na manhã seguinte, o tio Sebastião moeu uma cana caiana e fez garapa para mim, mas na hora do almoço a tortura recomeçou. A tia Altair, irmã mais nova da minha mãe, que não sabia cozinhar muito bem, prontificou-se a fazer uma galinha refogada para me agradar. O caldo ficou ralo e o arroz empapado. Eu não queria desagradar à tia, mas também não conseguia dizer que não estava gostando da sua comida. A galinha parecia estar viva, crescia no prato e eu não comia. A situação foi ficando dramática e acabei fugindo para a estrada. Logo depois passou um caminhão cheio de sacas de café com destino à minha doce Água Doce. O motorista me reconheceu —ele conhecia o Juca, meu pai, e não foi difícil descolar uma carona. O certo é que cheguei em casa três dias antes do combinado: “Mamãe, olha eu aqui de novo!”






Tempo de canjiquinha

A minha infância foi uma grande pobreza. Só calcei o primeiro sapato quando tinha onze anos e assim mesmo foi um sapato emprestado de um primo, bem maior que o número do meu pé. Era a minha festa de colação de grau do primário e o sapato era velho e rachado, melhor seria se eu não tivesse comparecido naquela festa, uma das maiores vergonhas que passei na vida. De outra feita, lembro que o Juca tinha brigado com as padarias da Vila de Água Doce e me mandava às cidades próximas, como Barra de São Francisco ou Mantena, para buscar pão para revender no nosso bar. Eu não gostava daquelas viagens porque os passageiros que viajavam em cima do ônibus, no bagageiro, sentiam o gostoso cheiro do pão e assaltavam os sacos durante a viagem. De dentro do ônibus eu via a sombra deles projetada nos barrancos da estrada comendo meus pães e eu sentia muita raiva.
Um dia, quando cheguei na rodoviária de Mantena, vi o meu melhor amigo, o Astrogildo, acenando-me da plataforma, mas eu fingi que não o reconheci. Inventei uma desculpa para o motorista e fui com ele até à garagem e desci lá. Eu estava descalço e o Astrogildo, que estava de sapato novo, definitivamente não podia me ver com os pés empoeirados. Foi a fase mais dura da minha vida. Nesse tempo, dona Francisca, minha mãe, nos oferecia apenas canjiquinha para almoçar. À noite, no jantar, ela repetia o mesmo cardápio que detestávamos. Nesses momentos de mágoa, nós xingávamos mentalmente, o Juca: “Que pai bundão e pobre nós tínhamos!...” Os outros meninos da Vila comiam bem melhor, tinham carne todos os dias e certamente tomavam guaraná na hora da refeição. Vai ver que tinham até marmelada na sobremesa!... Definitivamente, não tivemos sorte. “O Juca era um perdedor nato...”, pensávamos.
Certa vez, quando recolhia esterco no pasto do fazendeiro Marcelo, vi uma cena que me fez ficar com pena do Juca. Ele disfarçava para que eu não percebesse e ia recolhendo punhados de sal grosso que sobrara no cocho dos bois. Meu pai recolhia as sobras daquele sal lambido e colocava nos bolsos da sua velha calça larga. Aquele resto de sal, que nem o gado quisera, seria usado para temperar a nossa canjiquinha, a mesma que a dona Francisca nos servia, envergonhada, todos os santos dias.
Depois daquela cena triste em que vi o Juca pegando sal no cocho, nunca mais reclamei da canjiquinha da minha mãe, nem fiz mais coro com os outros irmãos na “sessão xingação”, quando desancávamos o pobre Juca, nosso pai. A vergonha de ser pobre certamente haveria de ser bem mais doída para os meus velhos pais do que para mim. Mas dei o troco e fiz uma promessa severa: prometi que se ficasse rico nunca mais comeria canjiquinha, nem que fosse acompanhada de costelinha, nem de graça, nem em festa de São João!


Meu Papai Noel

A rua da minha casa era apenas uma viela vermelha de terra batida onde a criançada brincava pra valer. Corríamos, gritávamos produzindo uma algazarra sem fim —a felicidade era vizível, um adesivo vermelho colado nos rostinhos de cada um. As famílias eram todas numerosas, na maioria das casas havia cinco ou mais filhos. Ainda não havia TV e a festa da meninada se prolongava pela noite, até perto das dez, quando tínhamos que entrar para lavar os pés antes de dormir. Quando ia se aproximando o fim do mês, a meninada ficava ansiosa, esperando pelo “homem misterioso” que vinha sempre numa bicicleta “Peugeot”, de cor preta. A qualquer momento ele poderia passar. Seu Ismael era o seu nome, um homem que nos parecia rico e tinha nome de anjo.
De repente, pontual como um cometa, surgia ele na sua “Peugeot”. Quando chegava, a alegria brotava. Havia uma razão especial para nossa alegria: ele jogava dinheiro para o alto e fazia uma aleluia milionária com notas azuis de um cruzeiro. As cédulas formavam uma nuvem sobre nós, borboleteavam ao vento e pousavam na terra. Nossas mãos pequenas, ansiosas e febris, surgiam de todos os lados e recolhiam a fortuna vinda do céu. O Seu Ismael era o nosso herói, o anjo do fim do mês que representava a bala e o picolé que nós, particularmente nós, jamais ganhávamos do Juca, nosso pobre pai. Seu Ismael era um tipo de Zorro bondoso, mais do que um santo, muito mais!
No Natal daquele ano de 1954 —ô tristeza de vida!—, não tínhamos ganhado nenhum presente do Juca, mas o seu Ismael parece que adivinhava e chegou de surpresa, jogando mais notas para o céu do que seria razoável. O Juca, um homem pobre mas justo apesar de tudo, pai de nove filhos, achou que não estava certo aquilo e interveio. Antecipou-se a nós, recolheu todas as notas e convidou o seu Ismael para entrar e tomar um café. Esperava que, com o café forte, o seu Ismael tomasse ciência da besteira que estava fazendo e aceitasse receber de volta o seu dinheiro (um montão de notas azuis amassadas que recolhera de nós, crianças emburradas).
Bem feito!... Doce e ledo engano do Juca. Era noite de Natal e o coração do seu Ismael estava ainda mais macio do que nunca. Ele viera no lugar do nosso Papai Noel e confirmaria que todo aquele dinheiro era nosso. Nós, que aguardávamos pela decisão favorável, explodimos de alegria. O seu Ismael estava apressado e dizia para a minha mãe: “Como é, Dona Francisca, esse café sai ou não sai?...” Minha mãe não conseguia entender a pressa dele, uma estranha pressa em tomar café e retornar para o tumulto da rua onde rolava a festa dos meninos. Mas tudo ficaria muito claro quando ele disse: “Tenho pressa, Dona Francisca... É Natal e eu ainda preciso distribuir mais dinheiro para a meninada...”
Dava para perceber que o Seu Ismael estava de “pilequinho”, mas continuava generoso como antes. Dizia e ameaçava: “Preciso ir, seu Ferreira, não tente me impedir. As crianças estão me esperando e eu ainda vou jogar mais dinheiro para elas...” E insistia em voz alta: “Como é, Dona Francisca, esse café sai ou não sai?...”
Era um anjo muito teimoso aquele seu Ismael, gostava de verdade das crianças. Quando deixou a casa e voltou pra rua, não só nos devolveu as antigas notas amassadas, como jogou para o alto mais um montão de outras notas azuis, novinhas... Ah, eu e os meus irmãos agora estávamos ricos! Não conseguimos dormir direito naquela noite —a adrenalina era tanta que nos tirava o sono, mas o nosso Natal daquele ano estava garantido! No dia seguinte, depois que a longa noite de emoções acabou, percorremos as vendas da Vila e torramos tudo em picolé, maria-mole, bala de goma, pipoca e guaraná de canudinho.
Até hoje não me esqueço daquele santo que jogou dinheiro para nós e voltou de bicicleta para o Céu. Choramos ao vê-lo indo embora pedalando, flutuando numa carruagem de apenas duas rodas. O Juca, meu pai, sentindo-se talvez o mais pobre e incompetente Papai Noel do planeta, aprovava a nossa alegria mas tinha lágrimas pesadas dançando nos olhos. O coitado do Juca não ganhou nada, tive pena dele!









Os gêmeos Bolívar e Bolivar


Nosso bar era muito pobre, sequer uma geladeira a querosene tinha. Ainda assim, alguns fregueses bem mais pobres do que nós chegavam das roças e pediam fiado. O Juca, meu pai, que era um péssimo comerciante, concedia crédito a qualquer um. Isto aumentava o movimento do bar mas diminuía o lucro. Eu percebia isso, mas fazer o quê?
Certo dia, apareceu na Vila de Água Doce um par de negros gêmeos, parecidíssimos. O povo dizia que eles eram “a cara de um e o focinho do outro”. A única diferença que havia entre eles era o acento agudo em um dos nomes. Um deles se chamava Bolívar e o outro Bolivar. Naquele dia de domingo e de festa, entraram no bar e ficaram à vontade. Beberam, comeram e depois pediram fiado. O Juca, péssimo negociante, abriu uma nova página para eles na sua antiga caderneta ensebada, onde já estavam anotados vários nomes de outros caloteiros. A conta foi aberta em nome do Bolívar, o mais velho. Este, que nascera alguns minutos antes do seu irmão, seria o responsável pelo pagamento da conta. Em cima da página, no topo, meu pai anotou um importante detalhe: "Observação: O Bolívar é irmão do Bolivar".
Por vários meses e por todos os domingos que se seguiram, os gêmeos retornaram ao nosso bar. O Bolívar e o Bolivar vinham sempre juntos. Comiam e bebiam à vontade e depois "penduravam" tudo. Quando a conta tomou vulto e já estava ocupando umas três paginas, os irmãos sumiram e nunca mais foram vistos. Deles não se tinha mais notícia. Sabia-se apenas que moravam num sítio na estrada de Mantena, na direção do Café Ralo. O Juca andou fazendo algumas incursões por lá, em busca do seu suado dinheiro, mas só encontrava o Bolivar. O Bolívar, o safado que ficara responsável pela conta, havia desaparecido. Nunca estava em casa. O Juca já andava desconfiado e tinha sérias razões para acreditar que estava sendo enganado por aqueles dois gêmeos de mau caráter...
Vejam o azar do Juca. Na festa junina de 1954, numa tragédia que se deu próximo à Volta do Jaó, houve uma desavença entre uma turma de roceiros que retornavam para o sítio, na qual resultou um morto. A vítima fatal tinha sido um negro. O infeliz fora degolado pelos próprios parentes alcoolizados. Ainda hoje o povo da Vila de Água Doce chama o local, apropriadamente, de "Corta Goela". Na manhã seguinte apurou-se que o morto tinha sido um dos gêmeos. Meu pai ficou curioso e interessado no assunto. Tanto podia ter sido o Bolívar como o Bolivar, mas, para tristeza e azar do Juca, o morto fora exatamente o Bolívar, o titular da conta...


Bicho-de-pé


O bicho-de-pé é uma espécie de pulga que penetra sob as unhas dos meninos. Ele se aloja silenciosamente no calcanhar e nos dedos dos meninos que brincam descalços nos quintais, ou que vivem fazendo festa ao redor das casas pobres e são comuns também nos areais da beirada dos rios. O nome científico do bicho-de-pé é “tunga penetrans”. Muitos desses bichos entraram no meu pé quando eu era pequeno, isso no tempo distante dos meus oito ou nove anos. Eu não tinha nenhum medo do bicho-de-pé, pelo contrário, gostava da sua coceira gostosa, da sua atividade febril penetrando em mim, avermelhando e aquecendo o dedo escolhido.
Eu fazia de propósito, volta e meia me metia sob a velha casa onde morava na Vila de Água Doce, apenas para “pegar” bicho-de-pé. A enorme casa da minha infância pobre era feita de pau a pique, uma espécie de palafita mista de madeira e alvenaria. O assoalho e as paredes eram suspensos por enormes baldrames de madeira rústica, encaixados em esteios quadrados que prosseguiam em direção ao céu, para receber, num pé direito alto, as vigotas que seguravam a gaiola do telhado escuro.
Sob a casa, havia um grande espaço, uma espécie de vão aberto, cheio de uma areia fria e fina onde eu brincava solitário. Eu me divertia naquela praia exclusiva, às margens de um mar imaginário somente meu, igual ao outro que diziam existir e que eu nunca tinha visto. O porão era um lugar fresco e tranqüilo: a pátria ideal e sagrada dos meus bichos-de-pé.
Hoje tudo é diferente, tudo mudou. No passado das Minas Gerais, no meu tempo de menino, não havia essa liberdade de pai e mãe beijar os filhos. Era tudo muito distante e solene, havia muito respeito. Por causa disso é que eu digo que não tive infância, apenas fui menino. Nunca beijei minha mãe, nem me lembro de ter recebido dela um beijo. Mas eu era esperto e usava o bicho-de-pé como desculpa para me aproximar dela e receber seu calor. Quando sentia necessidade de ganhar um carinho, de receber um toque da sua mão, eu me metia sob a casa e ficava lá durante horas até que um ou mais bichos-de-pé grudassem em mim. Depois, era só entrar na cozinha e me queixar para ela resmungando que “desconfiava” que tinha um “bicho-de-pé” entrando no meu pé...
Acho que ela já sabia da minha malandragem, mas pedia para ver se era verdade e examinava cada um dos meus dedos detalhadamente. Não tinha falha, o bicho estava lá, exercendo a sua função, penetrando bem fundo num dos meus muitos dedos e unhas. Então, dona Francisca, minha mãe, me fazia deitar sobre o banco comprido da cozinha, ao lado do seu velho fogão de lenha, e puxava meus pés para o seu colo. Esses momentos eram de delícia. Eram longas sessões de carinho indireto que eu tanto amava. Confesso, envergonhado, que minha mãe nunca me beijou, mas foi graças aos “bichos-de-pé” que ela me acariciou muitas vezes.
Nunca esqueço disto e me arrependo profundamente de nunca ter perguntado se ela também não gostaria que eu lhe “tirasse” alguns bichos do pé... Desculpe mamãe.


A moita de bambu


O quintal da minha casa era enorme, a cerca de cabiúna que o delimitava alongava-se até à beira do Ribeirão Bom Jesus. No primeiro plano, próximo à cozinha da minha mãe, havia um projeto de banheiro futurístico, muitíssimamente mal construído pelo engenheiro Ginuca, um sujeito burro, compadre do meu pai, que dizia saber fazer “de um tudo”, mas que na verdade não sabia fazer nada. Era uma besta.
O banheiro hierático, totêmico, habitou minha mente de menino. Por causa dele, sonhei com um banho quente que nunca tomei. Na Vila de Água Doce ainda não tinha energia elétrica e os banhos quentes eram apenas sonhos de menino. Da caixa d água do incrível banheiro partiam solenes canos de ferro amarelado em direção à cozinha e penetravam no interior aquecido do fogão de lenha da minha mãe. Depois de fazerem mil voltas por entre tijolos quentes e brasas vermelhas deveriam voltar trazendo água quente para o meu esperado banho. Deveriam, apenas deveriam... Este foi um dos meus primeiros e grandes sonhos não realizados.
Quem caminhasse ao longo do quintal, no rumo do rio, encontrava primeiramente o chiqueiro —a habitação dos porcos, gordos e sujíssimos. Depois dele vinha o poço de água, encimado pela bomba d água de ferro fundido, repleta de rodas dentadas. Essa bomba é de triste memória para mim. Certo dia, suas engrenagens lubrificadas e vorazes engoliram para sempre a primeira falange do meu dedo indicador direito. Por causa desse acidente pequeno, lembro que desmaiei longa e gostosamente, pela primeira vez. Foi muito bom desmaiar. Penso que se eu tivesse morrido naquele dia, não teria sofrido nada, nem feito falta nenhuma no mundo. Quando acordei, a primeira pessoa que vi foi a minha mãe, aflita. Logo em seguida vi que ela sorriu, feliz pela minha “volta” do mundo do desmaio.
Ao fundo, altivos delimitando os limite do nosso mini-latifúndio, como se fossem guardas do império, cresciam os bambus que o Juca, meu pai, plantara. A moita verde, segundo ele, seria uma barragem ciclópica para conter o rio numa eventual enchente. Muitas vezes me refugiei naquela moita de bambus, em fuga inútil para não apanhar do meu pai. Foram tantas vezes que fugi do Juca que ele acabou por descobrir o meu esconderijo e já me achava com certa facilidade. Meu pai pensava que a moita era só sua. Lembro que um dia ele também se refugiou na moita. Foi lá que ele se escondeu quando recebeu a carta dando ciência da morte do seu pai, o meu avô Eduardo. Na moita, durante um bom pedaço do dia, o Juca chorou sua tristeza de órfão e verteu lágrimas gigantes. Eu vi seu sofrimento e gostei.
Nos momentos de folga, quando os fregueses não vinham incomodar, eu ficava na janela dos fundos do bar, encantado, imaginando que os bambus, a julgar pelo jeito veloz com que se expandiam, logo tomariam conta do nosso quintal. Mas eu estava enganado. Certo dia veio um temporal, uma grande chuva que parecia durar meses, e o ribeirão Bom Jesus, que era apenas um filete de água, engrossou, ganhou força e levou tudo. Vi a moita descendo o rio. Parecia um navio corsário pintado de verde. O Juca, que tanto confiara na sua barreira de bambus, ficou estático olhando, parecia encantado diante das forças da natureza. Vi o meu pobre pai, impotente, mirando o fracasso da sua engenharia pragmática. Chorei ao vê-lo, magro e altivo, em pé na beira do rio barrento. O Juca resmungava baixinho: "A regra é essa!... a regra é essa!”
Ele sempre dizia essa frase quando se batia com a natureza e perdia. No lugar da antiga moita restaram apenas os brotos —minúsculos cones verdes—, sujos de lama, apontando para o céu. Eu via os brotos tristes no chão barrento e as lágrimas brotavam nos meus olhos. Mas tudo foi bem feito para o Juca! Agora eu não tinha mais um lugar seguro aonde me refugiar das suas surras, mas ele também não teria mais esconderijo para chorar, nem mesmo quando chegasse a vez de aquele meu último "vô", que já estava bem velhinho, bater as botas...



Marmelada Colombo

Quando eu tinha oito ou nove anos, ficava sentado na porta do bar observando os andarilhos sem destino que vinham andando ao longo das estradas e cruzavam a Vila de Água Doce. Ora seguiam para o Norte, na direção de Ataléia, ora para o Sul, na direção da cidade de Mantena. Incomodavam-me, de maneira particular, as enormes mochilas que carregavam. Ao vê-los, arcados sob o peso de grandes fardos sujos, cheios de coisas inúteis e sem valor, indagava-me se não seria melhor e bem mais cômodo para eles se levassem apenas um pouco de dinheiro ou um cartão de crédito para pagar o hotel...
Aqueles miseráveis me faziam pensar na Cleuza, uma conhecida mendiga de voz rouca que ainda vivia na Vila, que tinha sido prostituta na juventude. Os mais antigos diziam que a Cleuza no seu tempo de moça fora uma mulher linda. Mas eu via seu rosto enrugado, seus dentes cariados e duvidava. Em virtude de algum desencanto pessoal ou talvez por particularíssimo motivo, num dia qualquer do passado a Cleuza fez uma estranha promessa para São João, o santo maior da sua devoção. Prometeu a ele que durante todos os anos da vida, sem falta, comeria uma lata inteira de marmelada Colombo, com queijo minas, debaixo do seu mastro. Esses mastros são fincados diante das igrejas do interior, e neles o santo loiro aparece sempre segurando um carneirinho com cara de bobo.
Sempre fui um menino pobre, filho de pobre, e estava careca de saber que o Juca, meu pai, jamais teria dinheiro para me comprar uma lata de marmelada Colombo, nem no presente nem no futuro, e achava que a Cleuza tinha sido muito esperta ao fazer a sua promessa, afinal, o único risco que ela corria a cada ano, era o de ter uma leve disenteria, nada mais. Quando ela passava pedindo esmolas eu ficava pensando na sua promessa esperta, no conteúdo delicioso da lata verde e quadrada, e achava que a missão dela era muito fácil, e até muito gostosa de se cumprir. Se um dia eu precisasse pedir alguma coisa para São João, já estava decidido: faria uma promessa igualzinha à da Cleuza...



Nata de leite com rapadura

O fogão de lenha da minha mãe vivia aceso. Eram chamas necessárias e eternas. Aquecido permanentemente por grossas toras de madeira, o dragão de barro emitia faíscas, chamas e fumaça o tempo todo. Eu, em minhas idéias de menino, imaginava que o fogão era uma locomotiva branca, parada na estação da cozinha, pronta para partir para lugar nenhum. Com o objetivo de abastecer os fregueses do bar, e a nós meninos comilões, duas fileiras de panelas gigantes, cheias de leite e chocolate, permaneciam sobre a trempe de ferro aquecendo suas bundas pretas.
Nos cantos das paredes, altas e escuras, as aranhas depositavam teias aonde cresciam tufos de picumã que as parteiras ignorantes usavam para apressar a cicatrização dos umbigos de recém-nascidos. Os meninos estavam recebendo, sem o saber, uma dose letal de tétano que sete dias depois os levaria à morte. A morte deles era sempre creditada à vontade de Deus, que não tinha culpa nenhuma no caso. Mas isto é outra história.
Lembro que a nossa casa não tinha forro e, do banco da cozinha onde eu deitava, dava para ver os caibros tortos apoiando-se na cumeeira, sustentando as ripas que formavam quadradinhos uniformes lá no alto. Através deles era possível ver a cobertura feita de telhas-canal irregulares, negras e eternas, a nos proteger do sol e da chuva, impedindo também de se ver a lua. Eu sabia que as aranhas caranguejeiras caminhavam por lá, roliças e pesadas, desafiando a lei da gravidade. Uma hora qualquer, distraídas, muito bem que uma delas poderia cair dentro das panelas de leite da minha mãe. Eu vivia pensando nessa remota hipótese, mas as panelas tinham tampas bem maiores e permaneciam sempre fechadas.
Um dia, bem cedo, a comadre Tute que estava grávida, chegou lá em casa e foi dizendo: “Olha comadre, estou com vontade de comer nata de leite com rapadura, posso?”
A comadre Tute era gente de casa e tinha liberdade para fazer o que bem quisesse. A preta, dona de enormes nádegas, pegou uma tigela e recolheu um montão de nata, anexou uns pedaços de rapadura e se pôs a comer furiosamente. De repente ouviu-se um grito na cozinha. Dona Francisca, minha mãe, foi ver o que era e encontrou a comadre Tute no chão, desmaiada. No meio da nata gorda da tigela restava parte do tórax disforme de uma aranha caranguejeira. O material estava semicozido e tinha assumido a cor amarelada do leite gordo, mas conservava ainda unidas ao tronco a cabeça e as mandíbulas. As numerosas pernas da aranha nunca mais foram encontradas. Para mim não restava dúvida: as pernas da aranha tinham sido degustadas em meio à nata e à rapadura, pela gulosa comadre Tute.
Anos se passaram e ninguém gostava de tocar no assunto, nem de pensar na hipótese nojenta de a dona Tute ter comido as partes da aranha que sumiram. Mas eu era um menino livre e contava para todos o que pensava. Eu achava que as pernas da aranha se misturaram à nata de leite e tinham sido saboreadas pela gulosa comadre. Se não fosse assim, por que é então que ela vomitava quando me ouvia repetir a sua história?




Radamés Guida


Havia na Vila de Água Doce um alfaiate simpático, brancão e gordo, cuja alfaiataria ficava perto do nosso bar. Eu achava seu nome estranho, chamava-se Radamés Guida e era muito amigo do Juca, meu pai. Era praticante de umbanda e tinha um zelo todo especial pela sua esposa, a Dona Conceição, uma mulher com cara de homem, bravíssima, que diziam ser “mãe de santo”. O senhor Radamés e o Juca, meu pai, chamavam-na de madrinha. Tinham um medo mórbido da velha. Eu também não gostava muito dela, talvez devido a uma espécie de barba e bigode de pelos grossos e esparsos que exibia.
Às vezes o Juca voltava para casa reclamando baixinho: “Não agüento mais este seu Radamés... Esse homem parece que vive cansado, tenha dó!” Na verdade parecia que aquele comportamento era um estilo pessoal, próprio do Radamés. Eu achava que ele queria era se valorizar, dizendo que trabalhava muito, que estava cansado, essas coisas.
Certo dia, os amigos encontraram o senhor Radamés chorando convulsivamente, debruçado sobre uns cortes de tecido marrom. Meu pai foi lá, puxou conversa e descobriu que o irmão do Radamés, de nome Sorvino Guida, encontrava-se hospitalizado, vítima de um acidente vascular sério, na Casa de Saúde de Mantena. O Sorvino e o Radamés não se falavam havia muito tempo, devido a uma briga boba. Era por isso que o Radamés chorava, estava sendo roído pelo remorso. O Juca e alguns outros amigos acabaram convencendo ao Radamés de que a doença do Sorvino seria uma boa oportunidade para os irmãos se reaproximarem, acabar com aquela querela antiga. Era bobagem deles, uma estupidez, ficar cultivando uma inimizade boba.
E tudo foi acertado. Na hora habitual das visitas, lá foi o seu Radamés. Estava emocionado, mas esqueceu o passado e se municiou de uma grande coragem para ver o irmão moribundo. Chegou meio sem jeito e se jogou sobre ele, abraçaram-se longamente e choraram juntos. O abraço, porém, prolongou-se muito além do normal e os amigos desconfiaram de tanta e tão duradoura emoção.
Quando foram retirar o “cansadinho” Radamés de cima do irmão, desfazer o nó do longo abraço, viram que ele tinha morrido. O coração do italiano bondoso não suportara tanta emoção. Não adiantava mais nada, nem se podia fazer qualquer coisa por ele. Os médicos descobriram muito tarde que o cansaço crônico do velho Radamés era uma insuficiência cardíaca grave, gravíssima, de que ninguém suspeitava.
Então era isso! Quando o Juca, meu pai, se irritava, achando que o velho italiano tinha mania de dizer que estava cansado, que tinha trabalhado demais estava enganado, completamente enganado. Depois que o senhor Radamés morreu, mesmo tendo passado vários anos, o Juca nunca mais se perdoou por ter zombado dele. Que Deus o tenha.


A idade de Jesus


Quando eu tinha oito anos, pouco mais pouco menos, a minha professora Durvalina solicitou à classe uma redação sobre o Natal. Era para os alunos escreverem sobre a vida de Jesus. Falassem o que quisessem. Escolhesse cada um o tema de sua preferência. Eu, porém, decidi inovar. Não falaria do Jesus menino, coisa óbvia, mas do Jesus adulto, solene, entrando em Jerusalém. Mas não devia ter escrito aquilo, foi uma decepção. Depois me arrependi! Comecei a minha obra prima assim: "Aos quarenta e três anos, para que se cumprisse a profecia, Jesus entrou em Jerusalém cavalgando um jumentinho branco..."
Na hora da nota, que vergonha, tirei zero, e ainda levei uma bronca solene: "Onde já se viu errar a idade de Jesus, menino!" Tentei me explicar, disse à professora que tinha lido sobre Jesus, que sabia ser ele um grande líder e orador, que comandava homens e barcos pesqueiros, era dono de quase toda a Palestina, e achava impossível a um homem de apenas trinta e três anos ter tudo aquilo. Citei meu pai, o Juca, como exemplo, que estava com mais de quarenta e não tinha sequer uma casa para morar. Mas ninguém me ouviu. Fui para casa com minha nota zero e contei o ocorrido para minha mãe —a única pessoa que me entendeu e desculpou. Afinal, não tive culpa e o Juca, meu pai, também não. Mas, de qualquer maneira, foi comparando a obra dos meus dois heróis que acabei errando na idade de Jesus.




Meu Tesouro



A chuva já durava dias, duas semanas no mínimo. Nunca chovera tanto em Água Doce. As estradas para Mantena e Barra de São Francisco estavam intransitáveis. Os ônibus eram raros e quando chegavam era em dias alternados. Vinham imundos e lotados de gente. Lembro que fiquei tenso naqueles dias molhados por um motivo só meu. Particularíssimo motivo.
Aos nove anos eu já tinha concluído o terceiro ano do primário e passara, inclusive com certa folga, do terceiro para o quarto ano. Como ainda não tinha ginásio em Água Doce, aquele seria meu último ano de escola. Meu coração era uma tristeza só, uma ansiedade sem tamanho.
No primeiro dia de aula, a minha namorada e professora Durvalina nos passou o nome do livro de gramática que seria usado naquele ano. Lembro como se fosse hoje, o livro tinha o encantador título de "Meu Tesouro". Meu coração ainda bate forte quando lembro dele, cinqüenta anos depois. Aquele livro raro só era encontrado nas livrarias de Mantena, uma cidade maior. O Juca, meu pai, que estava sem dentes e precisava ir lá para botar uma dentadura —e também precisava comprar uma grande panela de alumínio para minha mãe preparar Toddy—, prometeu trazer o livro.
Eu estava inquieto. Havia dois dias que o Juca tinha ido e não dava notícia. Minha espera foi longa e sofrida. Nunca padeci tanto. O ônibus que deveria chegar trazendo o Juca e o meu livro, nunca chegava. Somente a chuva fina e fria continuava a cair. Da porta do bar, ansioso, eu olhava a toda hora para a curva da lagoa, na entrada da cidade, e nada de ônibus, nada de livro!
De repente, percebi um movimento estranho. Um grupo de pessoas molhadas se movia na estrada. Olhei atentamente e vi que o Juca estava junto. De longe o reconheci. Sua silhueta magra de beduíno desgarrado era-me sobejamente conhecida. Estava ensopado. Seu chapéu, de feltro marrom, escorria-lhe sobre os ombros magros. Na mão esquerda trazia uma enorme panela de alumínio —a encomenda de minha mãe. Mas, e o meu livro? De certo tinha ficado no barro da estrada! O Juca não era muito ligado nas encomendas dos filhos!
O pessoal da cidade, curioso, cercou o grupo. Queria saber de tudo. Cadê o ônibus? O que acontecera com o ônibus? Quebrara? Houve um acidente grave? Nesse dia o Juca teve o seu momento de glória. Sua dentadura nova, que chiava bastante, distribuía perdigotos aos seus ouvintes. Ele contava tudo em detalhes, explicava para um, depois para outro. Proclamava vantagens. Contava que percorrera mais de seis léguas sob a chuva gelada amassando o barro...
Os ônibus daquele tempo tinham um "design" de guerra. Eram caminhões comuns, adaptados para o transporte de passageiros em funilarias de Mantena ou Barra de São Francisco. Para cada centímetro de chapa aplicavam-se dez arrebites de aço. Os ônibus de Água Doce pareciam tanques da segunda guerra, espinhentos e pesadíssimos. Eram semelhantes a enormes tatus de ferro recendendo a gasolina e barro quente. Mas eram mal feitos, frágeis e quebravam a toda hora. O que trazia o Juca, para variar, tivera um problema mecânico na serra de Mantena. Diziam que o ônibus: "quase tombou”... “quase aconteceu uma desgraça”..."quase isso”... "quase aquilo.” Mas, e o meu livro?... E o Meu Tesouro?
Com os olhos arregalados, eu olhava enciumado para a grande panela de alumínio da minha mãe e ficava pensando no meu livro novo que talvez estivesse jogado ou se perdido no barro amarelo nos arredores molhados da serra de Mantena. Para mim, que era o seu filho, o fator mais importante, o Juca era um mistério só. Ensimesmado, cavalgando um mutismo irritante, entrou no bar e entregou a panela para a minha mãe, mas o malvado não dizia nada sobre o meu livro. E o Meu Tesouro?
Quando dona Francisca abriu a panela, retirando a enorme tampa para conferir se era boa a sua encomenda, senti um grande alívio no coração. Dentro, sequinho e repousando feito um filhote indefeso, estava o meu livro novo —o meu tesouro! A visão maravilhosa foi a minha grande alegria de menino, a represa trincada das minhas lágrimas contidas.



A horta


Éramos oito irmãos, todos pequenos, mas o único que ajudava na horta imensa era eu. O Juca, meu pai, por uma razão que desconheço, poupava os outros meninos do trabalho infame. O João e o Vavá, que eram mais velhos, raramente ajudavam no serviço Às vezes recolhiam adubo nos pastos vizinhos. Esse era o único trabalho pesado que eles faziam: buscavam esterco. Para mim, esterco não passava de bosta.
Comigo era diferente. Eu tinha de plantar, regar, colher e vender as verduras nas ruas da Vila. De todas estas tarefas a que mais me aborrecia era ter que molhar as plantas no final das tardes. Detestava também sair pelas ruas de Água Doce vendendo verduras numa enorme cesta de taquara amarela, eu tinha vergonha de me encontrar com minhas namoradas imaginárias, moradoras esquivas de incertas casas da Vila. Certo dia, saí da rota habitual e fui parar nas margens do Rio Preto, além da ponte torta, onde estavam acampados uns ciganos deletérios. Ali havia uns ciganinhos de mau caráter, quase todos do meu tamanho. Aproximaram-se em bando e me envolveram, fagocitaram-me literalmente. Tomaram-me todas as verduras e saíram correndo. Levaram tudo, perdi as mercadorias e voltei chorando. Quando cheguei em casa, de mãos vazias, levei uma surra do Juca. Era para aprender a ser esperto e deixar de ser bobo. Peguei um ódio mortal de ciganos.
Revolver a terra, plantar, regar, colher e vender, essa era a minha rotina de todos os dias. Quando chovia, havia um grande alívio no meu coração. A chuva me livrava do trabalho de regar a horta e eu podia brincar livremente. Podia ir ao campo do Vasquinho jogar ou assistir futebol, caçar passarinho, ler gibi, essas coisas de menino livre.
As chuvas, porém, eram raras e não caíam nos dias certos. Especialmente nunca caíam aos domingos. O que eu mais desejava era que chovesse aos domingos. Nos finais de semana sempre havia jogos ou outras festas no campo de futebol. A chuva eventual e libertária me livrava do trabalho e só assim eu podia brincar. Era importante, porém, que a chuva salvadora de domingo “precisava cair pela manhã”, do contrário não adiantava nada, nem precisava chover mais, porque, à tarde, a chuva “atrapalhava” as festas e o futebol...
Era esse o meu dilema dos nove anos. Eu olhava para o céu pedindo a Deus que chovesse aos domingos. Mas, “que chovesse somente pela manhã: à tarde não precisava mais...” Passei anos fitando o céu da Vila de Água Doce, com suas nuvens brancas, anêmicas, flutuando inúteis sobre as altas serras de granito. Nuvens que não me ouviam, nuvens que nunca choveram na hora certa para mim. Cabisbaixo e solitário, xingando a horta do meu pai, eu molhava as minúsculas hortaliças de apenas duas folhas e meu pensamento andava longe, sonhava maldades contra o Juca. Vingava-me nos pés de alface do Juca, desejando que todas as suas plantas, aquelas malditas tiranas verdes, fossem devoradas pelas formigas marrons e cabeçudas que eu sabia que vagavam pela noite em busca de alimento. Mas nem as formigas gostavam de mim.




É você, Maria?



Tia Maria estava com oitenta e cinco anos. A catarata que se instalara nos seus olhos incomodava-a bastante. A doença tomava conta da sua pouca visão e avançava escurecendo tudo. As imagens das pessoas eram pouco nítidas, embaçadas. Ficava difícil enxergar as coisas pequenas e mais simples. As atividades domésticas de que tanto gostava não podia mais executar. A Tia Maria, que sempre fora um exemplo de higiene e limpeza, já errava o copo e o bule, derramando o café sobre a toalha da mesa. Por tudo isso resolveu deixar-se operar. Garantiram para ela que a cirurgia seria um sucesso. Animou-se. Disseram que, enxergando bem, retornaria aos bons tempos de mocinha. Recordaria do tempo em que usava as melhores roupas, enfeitava-se, era faceira e bonita. A mais bonita da Vila de Água Doce.
Após a cirurgia delicada, feita em Vitória, durante vários dias usou uma bandagem protetora, com óculos escuros de reforço. Tudo eram cuidados para evitar uma possível infecção e assegurar um pós-operatório tranqüilo. Tia Maria mal se continha. Estava curiosa. Queria ver tudo bonito de novo, rever as cores das coisas, os detalhes das paredes da sua casa, das flores que cultivava no quintal, tinha saudade também do seu antigo rosto jovem e bonito.
Vinte dias depois tirou as bandagens. Dispensou os óculos e foi ao espelho se ver. A última vez que vira, nítido e claro, o próprio rosto tinha sido há uns cinqüenta anos passados. Agora estava ali, diante de si mesma, bem mais velha e cheia de rugas. Não se reconheceu e indagou espantada: “Maria, é você mesma quem está aí?...”






As lágrimas azuis

Uma vez por ano. o Juca, meu pai, desaparecia da Vila de Água Doce. Creio que ele ficava com o saco cheio de nós os oito filhos e dava-se um sumiço. Ele aproveitava qualquer briguinha banal com a minha mãe, aborrecia-se de brincadeirinha, e sumia de casa por vários dias. Nos períodos em que ficava ausente, vagando livre e solto por lugares novos e distantes, era um homem absolutamente livre. Sentia-se livre.
Certo dia, quando retornou de uma destas misteriosas viagens, contou-nos que estivera em Brasília, tinha ido conhecer a nova Capital que estava sendo construída por Juscelino. Virou herói na Vila de Água Doce. De outra feita, contou que esteve no Rio de Janeiro, onde se assustou com a pobreza das favelas. Descobrira que os moradores da Vila de Água Doce eram felizes e não sabiam.
Era sempre assim. Todos os anos a história se repetia. Depois de uns quinze dias de ausência, um pouco mais, um pouco menos, o Juca voltava para Água Doce. Ao retornar, não dava satisfação a ninguém, nem dizia o que fizera. Queria apenas demonstrar que era um homem independente. Dona Francisca, minha mãe, já tinha se acostumado com aquelas fugas anuais do Juca. Nós, os filhos, até gostávamos!
Durante as suas ausências, tocava-se regularmente o bar. A vida corria normal. Ninguém mais se afligia com suas escapadas. Da última vez, quando já se passara uma semana que ele tinha desaparecido, de repente chegou pelo ônibus um envelope pardo. Minha mãe reconheceu a letra do marido fujão e ficou apreensiva. Pegou a carta e foi ler no quarto. Alguns minutos depois, voltou sorrindo e nos mostrou o que lera. Tratava-se de uma mensagem do Juca. A carta viera de São Paulo, que, para nós, era um lugar tão distante e misterioso como a lua. Na folha branca viam-se três grandes bolas azuis, irregulares, feitas com caneta esferográfica e mais embaixo havia uma legenda, feita com a letra espaçosa, super conhecida, do Juca, explicando tudo: "Essas três manchas azuis são lágrimas de saudade que derramei..." Ninguém acreditou, claro!
Porém eu, que tinha apenas nove anos, fiquei impressionado com tudo aquilo. Imaginei que as lágrimas do Juca ficavam azuis apenas quando ele sentia saudade e chorava longe de casa.



Piromaníaco


Os ônibus, que vinham de Mantena e Barra de São Francisco, passavam por Água Doce e seguiam a caminho de Santo Onofre ou Santo Agostinho. Alguns iam mais longe, chegavam até Ataléia, Prata dos Baianos ou Ecoporanga, quase na Bahia. Esse era um lugar distante, de sonho, onde diziam que era possível ver o mar com suas ondas gigantes.
Nosso bar era o ponto de parada desses ônibus. Os viajantes, os turistas e os vendedores profissionais vinham esperar por eles na nossa calçada. Gastavam seu dinheiro no nosso bar. Todos os dias havia festa de gente nova na frente da minha casa.
Nesse tempo ainda não havia posto de gasolina na Vila de Água Doce. A Vila estava só começando. Solenes, encostados na parede do bar, ficavam dois enormes tonéis ensebados, feitos em latão marrom, cheios de gasolina. Tratava-se de uma reserva estratégica de combustível, cujo objetivo era abastecer os velhos e lerdos ônibus do meu padrinho, Victório Coimbra, equipados com motores obsoletos, beberrões e imprevisíveis.
Nesse tempo eu tinha nove anos e andava com mania de pirotécnico. Carregava comigo uma caixa-de-fósforo e botava fogo em tudo que via. Uma semana antes eu tinha sido apresentado a um mineral fantástico: o carbureto. Segundo me disseram, o tal de carbureto, quando em contato com a água, liberava um gás combustível. Não acreditei, claro, e fui fazer o teste no meu quarto. Peguei uma leiteira da dona Francisca, minha mãe, e enchi de água. Lancei dentro as pedras marrons e risquei o fósforo. Minha experiência, porém, com o mineral era pouca e acabei provocando uma explosão. Quase incendiei a casa e levei uma bela surra.
Dias mais tarde achei um frasco de óleo de freio —um líquido desconhecido e perigoso—, tão cheiroso quando inflamável, mas eu não sabia. De posse do frasco, fui para as proximidades do Ribeirão Bom Jesus e botei fogo. O frasco decolou feito um foguete. No rastro incandescente, o maldito "foguete" me torrou os dedos da mão direita. A seqüência foi a mesma: farmácia e surra!
Depois que se passaram uns quinze dias, já com os dedos novos e a pele da mão recuperada, voltei a caminhar pelas ruas da Vila de Água Doce levando minha potencial e perigosa caixa-de-fósforo. Tramava outra arte, outra explosão. Eu amava aquilo.
Por dias e dias namorei os dois barris de gasolina, lindos e cheirosos, encostados na porta do bar... Não fosse a voz da dona Francisca, sábia e previdente, sempre a martelar nos meus ouvidos: "Não caia noutra!... Não caia noutra!", aqueles dois barris de combustível certamente teriam ido pelos ares. Foi Nossa Senhora de Fátima que me protegeu. Com certeza foi ela também que guardou a saúde daqueles passageiros distraídos...




A chácara do Judas


Os Sábados de aleluia eram uma festa na Vila de Água Doce. Nesses dias o povoado amanhecia alegre e todos comentavam as novidades da chácara do Judas, menos o Juca, meu pai. Ele detestava tudo aquilo. E eu sabia por quê. Os organizadores da chácara eram desocupados que se valiam de coisas alheias para fazerem a sua brincadeira, e roubavam tudo na véspera.
Na véspera do Sábado de aleluia, na calada da noite, o “pessoal” trabalhava. Desconhecidos tomavam emprestadas as coisas dos vizinhos, qualquer coisa que fosse. Davam preferência aos bens das pessoas mais influentes na vila. Os notívagos levavam, desde móveis e objetos pessoais, até placas de rua e casas de comércio. O Juca vivia dizendo que ninguém ousaria roubar nada seu. Dizia que ninguém seria ousado o bastante para fazer isso. Doce e ledo engano!
Naquela manhã de 1954, Sábado de Aleluia, o Bar e Café Ramos amanheceu vazio. Levaram quase tudo. As mesas, os bancos e até a placa (muito mal desenhada pelo compadre Ginuca), que exibia um suposto ramo de café, encimado pelo nome do bar. O Juca, como era de se esperar, virou uma fera.
Fui ver a chácara. Tinha sido montada ao lado da casa do dentista Antônio Otti. Bem na entrada penduraram a placa do bar. A chácara, ó suprema ironia, transformara-se no "Bar e Café Ramos". Ao centro, no meio de um sem número de objetos estranhos, furtados na noite anterior, estava o solene boneco do Judas. A cabeça era de abóbora. Na boca, havia um cachimbo. Aquele, então, seria o novo dono do bar?
O povo passeava entre as mil coisas roubadas. Elogiava-se a façanha dos organizadores da brincadeira. Ao meio dia chegou o Juca. Viera, furioso, buscar suas coisas. Até então ele não sabia que a chácara do Judas tinha sido transformada em "Bar e Café Ramos". Ao ver a placa, que lhe era tão cara, ensaiou retirá-la mas levou uma vaia e desistiu.
Dias depois, da mesma maneira que tinha sido levada, a placa do bar voltou. Curiosamente, depois que o bar abrilhantara à "chácara", o movimento de fregueses melhorou bastante. Acredito que o pessoal entrava no bar só para ver a cara do Juca, meu pai.
Nos anos seguintes, nas vésperas do Sábado de Aleluia, o Juca não dormia. Fumando, sentado na porta do bar, com seu jeito desafiador, cumprimentava a todos que passavam. Da minha cama eu ouvia as vozes dos suspeitos respondendo: “Boa noite, seu Juca!...” Eu sabia que os vândalos aguardavam apenas um cochilo do meu pai... E eu, filho ingrato, torcia por eles.




A Quaresma



Eram quarenta dias muito, muito tristes. As tardes pareciam noites, as cores do céu se tornavam mais escuras. No altar da igreja as imagens ficavam cobertas por um pano roxo. Eu me perguntava: "Que assunto secreto, e tão importante, teriam os santos para tratarem?” As pessoas falavam baixo, os gestos bruscos não eram recomendados. Os mais antigos não realizavam o simples ato de acender um fogão de lenha. Era a quaresma.
Durante os quarenta dias, sempre à mesma hora da noite, centenas de pessoas, portando tochas feitas de bambu e papel celofane juntavam-se próximos à construção da igreja nova e se agitavam para dar início à procissão. Logo depois, a coluna de luz se movia, descolando-se da casa do carola Juca Paixão e lentamente atravessava a cidade, furando a escuridão a caminho da velha igreja de madeira onde eu assistia ao sineiro Beraldo acariciar o sino com uma ferradura, batendo com a peça do lado de fora, fazendo um repique extra. Ele dizia que a ferradura era um reforço para ajudar o badalo esverdeado do velho sino, cujo som solitário era pouco. O povo da Vila de Água Doce gostava daquele barulho de ferradura. Bater no sino pelo lado de fora com uma ferradura foi uma invenção local, do Beraldo.
Eu ficava assustado com o barulho, mas gostava de esperar a procissão dali, daquele lugar seguro ao lado do sineiro barulhento. Gostava de ver, de longe e do alto, a serpente humana coleando na minha direção, rompendo por baixo feito uma toupeira, varando as noites sem lua da minha Água Doce. Para mim, o ritmo frenético do sino, misturado ao som da ferradura, era uma força misteriosa que me ajudava a puxar o fio invisível, atado na outra ponta à cabeça da serpente encantada.
Era gostoso ser barqueiro forte. Quem arrastava a procissão de fogo era eu. O som do sino apenas indicava o caminho a seguir —a direção da igreja velha. Foram noites bíblicas em que arrastei “anacondas” de fogo, iluminando as ruas escuras da minha Vila. A “anaconda” tinha vida e cantava uma música triste: “Com minha mãe estarei, na santa glória um dia, triunfarei..."
A procissão era viva, autônoma, gemia e cantava tristemente. Algum tempo depois, já era possível ouvir e entender os primeiros versos dos hinos tristes. Pouco a pouco a serpente subia o morro cantando: "Com minha mãe estarei, na santa glória um dia..." ou "Da peste fome e guerra, São Sebastião nos livrou..." Os sons melancólicos dos hinos, somados ao agudo da ferradura, penetravam na minha alma. Eu, que tinha apenas nove anos, duvidava daquelas verdades eternas proclamadas pelos fiéis, e me perguntava: “Será que posso confiar em tudo isso?... Será que um dia triunfarei na Santa Glória?...”



A cruz que faltava


Na Vila Água Doce havia uma dupla famosa, o Armando e o Rochinha. Esses dois amigos não perdiam um velório sequer. Gostavam de comparecer aos eventos, mas apenas para filar o café e os salgadinhos que normalmente rolam nessas horas tristes. Um certo dia, o Rochinha viajou e ficou duas semanas fora, quando voltou encontrou-se com o Armando e lhe perguntou como tinha sido o movimento durante a sua ausência. O Armando levantou os braços e disse: “Rochinha, seu miserável, aonde você andou? Procurei por você e não o encontrei, você perdeu o melhor defunto do ano, cara, teve até bolo de laranja!...” Mas isto é uma outra história.
Certas pessoas têm fixação por assuntos mórbidos e desagradáveis Meu tio Benê, que Deus o tenha, era muito ligado nas coisas da morte. Sempre que eu o encontrava, ele estava retornando de um velório ou indo para outro. Seu assunto preferido era sempre o acontecidos no último enterro. Ora o café que fora servido no velório estava frio; ora a viúva que era bonita; ora as piadas não tiveram graça e vários outros assuntos mórbidos, típicos de velório.
A diversão predileta do tio Benê, entretanto, estava em sua casa, postada sobre a estante da sala. Ali ele mantinha uma foto antiga, onde apareciam seus saudosos companheiros de turma, dos velhos tempos de ginásio. Nela apareciam dezoito jovens vestidos no rigor da época. Todos, exceto o próprio tio Benê, traziam na testa uma cruz vermelha, feita à mão. Esse era o seu jeito de ir anotando, um a um, a morte dos seus dezessete colegas de turma. Durante vários anos, e com muito gosto, meu tio Benê cumpriu aquele ritual sagrado. Bastava morrer um colega de turma que lá ia ele colocar uma cruz na testa do colega!
Todavia, quando chegou a vez de o meu tio Benê morrer —e a vez de cada um de nós sempre chega—, a antiga foto ficou incompleta sobre a estante da sala. Faltava a cruz na testa do tio Benê. Alguém de coragem teria que terminar aquela missão. Era preciso completar o quadro de cruzes. Minha tia, Conceição, a viúva (quem diria!), mesmo com os olhos cheios d água, pegou uma caneta vermelha e botou uma cruz na testa do meu pobre tio falecido...



A mula-sem-cabeça


Poucos dos antigos moradores da Vila de Água Doce viram a mula-sem-cabeça. Conheci alguns que chegaram a sentir o seu cheiro de cachorro-do-mato. Eu mesmo, que tanto desejei vê-la, vivia enrolado nos cobertores ouvindo apenas o seu tropel. E lembro que foram muitas vezes que ela, a mula, passou defronte à minha casa liderando uma cachorrada brava, seguindo no rumo da lagoa do Marriel. Havia uma rotina no seu trajeto: depois que ela mergulhava na lagoa, fazia-se o silêncio. Alguns minutos depois, lá para os lados da igreja nova, tudo recomeçava e o temido tropel descia a rua novamente. Meu coração disparava e só faltava saltar pela boca.
Depois das dez horas da noite, sempre na quaresma, o "garrote" reinava na principal rua da Vila de Água Doce. Àquelas horas perdidas fazia-se um silêncio total. Nenhuma porta de casa ou bar ousava ficar aberta. A rua larga, sem asfalto e sem luz —modernidades que só chegariam anos mais tarde—, parecia um tapete cinza, esticado sob a luz da lua. Os chefes de família conversavam baixo nos seus aposentos. Os meninos como eu, estávamos na cama, fingindo dormir enrolados em cobertas. Com os olhos arregalados, eu ouvia o tropel da mula e a revolta dos cachorros. Tudo acontecia bem perto de mim, ao longo da rua e do outro lado da minha parede. Ainda hoje, homem já velho e casado, durmo com a cabeça enrolada na coberta. Velho medo remanescente da minha mula de menino.
A "coisa" começava nas proximidades da igreja nova. Um latido aqui, outro acolá, e era dado o início à marcha diabólica em direção à casa do coveiro Marriel. Quando a comitiva da mula passava defronte ao nosso bar, era possível adivinhar que havia dezenas de cachorros no seu encalço. Ninguém ousava olhar pelas frestas das portas ou das janelas. A mula não gostava de ser espreitada. Diziam que, quando alguém se atrevia a olhá-la, desviava-se subitamente e mudava de rumo, aproximando-se acintosa, com seu cortejo de cães, da janela ou porta curiosa. Era na forma de vento, invisível, que a mula se apresentava.
Certa noite, na quaresma de 1954, o Juca ficou espiando a rua enluarada, esperando. A mula já tinha feito uma "viagem". Naquela noite ele estava decidido a ver a mula, pretendia contar vantagem aos seus compadres. Ficou espiando pela fresta da janela. Havia silêncio na Vila de Água Doce.
Um pouco depois da meia-noite, primeiro se ouviu um latido ao longe, depois outro e mais outro. E logo se formou uma cachorrada barulhenta que se moveu rua abaixo, na direção da lagoa. Nosso bar, que era também a nossa casa, ficava antes da tapera do Marriel, na saída para Mantena. Quando a cachorrada se aproximou, conta o Juca, não havia nada no centro, apenas vento, um tipo de redemoinho que atraía a atenção dos cachorros. Segundo o Juca, certamente alguma coisa os cachorros viam. Ele, porém, disse que não conseguira ver nada. De repente, como se recebessem uma ordem de comando, os cachorros se desviaram da rota e investiram contra a janela onde ele estava. Encerrava-se assim a corajosa vigília do Juca! Solitário e valente, fechou depressa a janela e desmaiou. Depois, contava ele, ainda teve tempo de sentir na face o hálito do demônio. E sempre que narrava aos seus compadres a perigosa aventura, o Juca mostrava os pêlos do braço eriçados em revelador arrepio.
Acredito que o Juca, como eu, também desejasse realmente ter visto a mula. Ele dizia que “chegou a pensar em ser cachorro” só para ver mais de perto a horrível face da mula-sem-cabeça. Mas aí eu já achava que era mentira demais e duvidava!...



A camisinha do lampião

A luz elétrica na Vila de Água Doce era um sonho distante, acalentado por todos. As casas eram iluminadas com lamparinas feitas de latão e funcionavam a base de querosene. Ainda me lembro que nas laterais das lamparinas havia letras coloridas herdadas de antigas embalagens maiores, pareciam malabares bissextos cheirando a coisa antiga. As pessoas furavam a escuridão dos caminhos levando seus apêndices de fogo. Quando as mulheres passavam de um cômodo para o outro, quando rezavam o terço ou desciam ao quintal pra buscar água, levavam a própria luz, mortiça mas importantíssima.
As casas da Vila mantinham em algum canto seguro um garrafão gigante contendo um bom estoque de querosene —reserva estratégica de alimento para as insaciáveis lamparinas de latão, rainhas da noite da minha infância. Um certo dia, e de repente, algumas lamparinas da minha casa começaram a pipocar, as chamas se ficaram preguiçosas, bruxuleantes. Bolhas vermelhas parecidas com bundas de içá, mini-explosôes solares de mentirinha nasciam na ponta dos pavios e depois estouravam. Com o passar do tempo as chamas perdiam o brilho e apagavam facilmente. Em virtude disso, levantou-se a hipótese temida: algum menino arteiro pusera água no garrafão de querosene da minha mãe. Eu desejava que nesse caso específico jamais descobrissem o autor da arte, já que fora eu quem urinara gostosamente dentro do garrafão sagrado de querosene. Na tentativa de ajudar a descobrir o criminoso, falei demais e acabaram chegando até ao autor. Levei uma surra homérica, de criar bicho. Mas isto é outra história.
As casas comerciais eram diferentes e usavam lampiões e às vezes tinham dois ou três para clarear todo o ambiente. Mas o único bar da Vila que tinha um lampião diferente dos outros era o do Juca, meu pai. Era um lampião Aladim, um modelo que funcionava emitindo brilho intenso através de uma camisinha. A rede tênue feita de amianto era tomada pelas chamas, tornava-se incandescente e produzia uma luz azulada, muito clara, semelhante à luz das lâmpadas elétricas fluorescentes que surgiriam anos mais tarde. O Juca ficava todo metido só porque tinha aquele bendito lampião Aladim. A bem da verdade, a claridade era total e todos gostavam de ver os faróis de luz do Juca vazando para a escuridão da noite, redesenhando as portas do bar na poeira da rua principal. Aquela luz esverdeada indicava que o rei Juca Primeiro estava em casa, o único comerciante da Vila de Água Doce a possuir um lampião daqueles. Era um luxo só! Consciente disso, o meu pai cavalgava como se fosse um Dom Quixote na luz do seu lampião. Orgulhosíssimo, montado numa suposta inveja dos vizinhos, viajava por distâncias cicloidais. Um dia, para minha alegria, a camisinha de amianto do bendito lampião esfarelou e uma escuridão apocalíptica desceu sobre o bar. Foi uma tragédia, uma antevisão escatológica do Apocalípse. E agora? Onde comprar uma camisinha nova? Essas coisas antigas não estavam mais sendo fabricadas e só por um milagre seria encontrada outra em Vitória ou no Rio de Janeiro e assim mesmo se o portador desse muita sorte.
A cada nova encomenda que o Juca fazia eu ficava torcendo para que o portador não conseguisse trazer a peça. Eu tinha nove anos mas sonhava com a luz elétrica, mais moderna e mais bonita. Confesso que nunca me orgulhei do lampião Aladim, aliás eu achei bom quando a luz elétrica chegou na Vila e acabou com a pose dos dois, do lampião e do Juca. Bem feito!





O Fogão de lenha


No canto direito de quem entrava na cozinha de dona Francisca havia um velho fogão de lenha, majestoso, reinando absoluto. Aquela fonte de calor da minha infância era um navio de sonhos, ancorado num porto imaginário, prestes a partir para lugar nenhum. O ventre vermelho, pleno de brasas, ombreava gigantescas panelas negras. O escravo indolente, petrificado, trabalhava dia e noite sem reclamar.
Da caldeira mágica, pilotada por minha mãe, fluíam líquidos ferventes, de cheiro adocicado, para alimentar os insaciáveis e chatíssimos fregueses do bar. Estática junto ao fogo, movendo apenas os braços, ela garantia a nossa sobrevivência. E sem que ninguém percebesse, aos poucos e sorrateiramente, o bandido de barro e ventre afogueado ia roubando a sua saúde —o mais importante bem de dona Francisca, minha mãe.
Para mim, menino bobo, o fogão era um ícone mágico. As brasas cor de rosa que o rachavam ao meio, ponteadas por tocos negros de madeira, me remetiam a pensamentos lascivos, fálicos e sexuais. Minha mãe, uma santinha ingênua, manuseava os tocos e as brasas com suas mãos brancas e delicadas. Com os olhos arregalados, mergulhado em pensamentos indizíveis, eu fingia pensar na batata doce que estava assando, cheirosa, quase pronta para se comer.
A cada seis meses, um pouco mais um pouco menos, devido à fumaça e aos respingos de leite queimado, o fogão pegava uma cor negra e isso ficava feio. Era hora de buscar barro branco para "barrear" o fogão.
No dia combinado, bem cedinho, formava-se uma caravana de mulheres amigas, empregadas domésticas da vizinhança, meninos e meninas desocupados que topassem a missão e saíamos alegres na direção da mina de barro. Eu gostava de ir junto. O grupo pegava a estrada da Lavra, um lugar misterioso, ao norte da Vila de Água Doce, onde havia milhares de homens procurando ouro e pedras preciosas. Nunca soube de um deles que tivesse achado qualquer coisa de grande valor. Eles passavam pela cidade e eu podia vê-los voltando para suas casas de mãos vazias. Eram todos pobres e maltrapilhos, viviam de sonhos. Se eu tivesse uma mina de ouro, daria uma pepita gigante para cada um deles. Assim, na sua volta para casa, levariam presentes para os seus meninos.
Nosso grupo era mais modesto, íamos apenas buscar barro branco para passar no fogão de lenha da minha mãe. Depois de caminhar algumas horas entre árvores frias, chegávamos na mina de barro. A existência daquele barro, branquíssimo, brotando ali, espontâneo entre as pedras negras, me intrigava e encantava. Acho que era caulim, mas o dono daquelas terras não devia saber. Se soubesse, não dava o barro, vendia bem caro.
Enquanto as mulheres enchiam baldes com o precioso barro, eu olhava para cima e para o alto e me fixava nas gigantescas pedras circunvizinhas, admirando o musgo verde grudado nelas e as bromélias teimosas que cresciam nas paredes altas e frias. Falavam que aquelas plantas eram "ananás". Pouquíssimo sol passava entre as folhas. A intervalos certos, uma gota gigante e translúcida, que me parecia vir do céu, caía em câmara lenta e tocava nas folhas mais altas, partia-se em mil gotículas, e retomava a queda em forma de sereno.
As mulheres que tagarelavam em meio ao barro, nunca olhavam para cima, simplesmente ignoravam a parede de pedra. Creio que nunca viram o musgo verde, nem as bromélias ou a gota de água, cheia de luz, que só eu via cair do céu. Elas pensavam era apenas no seu fogão de lenha que estava sujo, que precisava ficar bonito. Como eram felizes e sábias aquelas mulheres!


O Balão


As festas em homenagem aos chamados "santos caipiras" tomavam conta das almas e dos corações da Vila de Água Doce. Era Junho de 1954. Amanhecera o dia treze e a noite fria tinha sido especialmente terrível para as imagens de Santo Antônio, o casamenteiro. Minhas primas, umas solteironas contumazes, viviam a judiar do pobre santo. Uma delas, que mantinha o santo amarrado na perna da cama por vários dias, arrumou um namorado e o libertou pela manhã. Por sua vez, outra infeliz mantinha o santo cativo no quintal, enrolado numa folha de bananeira, submetido aos rigores da madrugada. O pobre santo só seria libertado quando elas tivessem conseguido arrumar um namorado. Uma dureza!
À noite, balões coloridos com ventre de fogo, cruzavam os céus da minha Vila. Os homens e os meninos do meu tempo eram todos iguais. Ninguém pensava nos incêndios das matas, queriam apenas enfeitar o céu. Deus que cuidasse de dirigir para bem longe os balões de luz. Com eles, o céu ficava mais bonito, e era isso que importava. As estrelas ganhavam namorados que se moviam. Comentava-se que no campo do Vasquinho um balão gigante subiria para o céu. Decidi que não podia faltar, e certamente estaria lá para ver tudo.
Passava das dez quando cheguei. Tudo era verdade. A noite estava fria, mas o clima no campo de futebol era de tourada. As pessoas se tocavam e distribuíam calor. Eu podia sentir o cheiro de canela que vinha do hálito das meninas, viciadas em quentão. O balão ainda estava vazio. Achatado sobre a grama, parecia uma enorme lona de circo. Por um momento duvidei que subisse e brilhasse. Todavia, subiu e brilhou.
Mãos anônimas, em obediência a ensinamentos ancestrais se juntaram. Uma bola de cera enorme foi acesa, gases foram injetados para o interior do monstro, varas quilométricas foram manipuladas e o balão ganhou forma e começou a subir. De início, pesadamente. Temi por ele, imaginei que os fogos de artifício que explodiam por perto pudessem atingi-lo, mas logo o monstro ganhou vida própria. Majestoso, feérico, foi competir com as estrelas. Ao final da festa o pescoço me doía, mas tudo valera a pena. Eu estava encantado, o gigante de fogo tão bonito não podia ter outro destino. Estava partindo para longe, ia exibir-se em algum lugar distante perto de Júpiter, certamente.




Meus gatinhos



O ribeirão Bom Jesus foi o grande rio da minha infância. No passado distante foi um rio grande, de botar respeito. Hoje é uma veredinha de nada, esgoto puro, mas eu lembro sempre dele. Uma vez por ano, no mês de Março, suas águas engrossavam e ficavam barrentas. O pequeno riacho assumia ares de "gente grande" e se alargava, assustando os moradores das margens. Inundava o campo do Vasquinho, levava de roldão as panelas e as roupas das mulheres ribeirinhas. As donas de casa desprevenidas ficavam bravas e xingavam o rio delinqüente.
Certa vez, o ribeirão ficou bravo e arrastou entre outras coisas, uma moita de bambu do Juca, meu pai. O Juca plantara aquela moita exatamente para deter o rio. Mas o rio não se deteve, nem ligou para a sua engenharia, foi crescendo e levando os bambus como se fossem pés de cebola. O Juca ficou uma fera. Mas isto é outra história.
Num desses dias molhados de 1954, de muita lama nas ruas e muitas enxurradas barulhentas fiz uma terrível malvadeza. Mas fui malvado sem querer. Explico. Uma das minhas gatas, a Estrela, "ganhou" três gatinhos dentro do baú de roupas de dona Francisca, minha mãe, e acabou sujando de sangue algumas calças e outras tantas camisas que ali estavam limpinhas e passadinhas. Minha mãe ficou brava, mas acabou perdoando a sujeira da gata. Afinal, dona Francisca também era mãe e compreendia. Mas o Juca, meu pai, tomou uma decisão firme. Os novos gatinhos, que tiveram a má sorte de nascer num local e horário impróprios, deveriam morrer. Condenados à morte pelo Juca, deveriam ser lançados por mim, que era o dono deles, amarrados dentro de um saco, ao leito do rio! Chorei e tremi por eles.
O Juca providenciou tudo. Enfiou os três pobres gatinhos dentro do saco e ordenou que eu os lançasse, assim mesmo como estavam, fechados, na correnteza de águas sujas. De longe o Juca ficou olhando, vigiando-me como se fosse um Cérbero! Atravessei o longo quintal, bem mais que devagar, caminhando no rumo da enchente. Caminhava lento, esperando que o Juca voltasse atrás na sua decisão. Mas, que nada! Sua decisão malvada seguiu até o fim.
Eu sentia no meu corpo o calor que brotava dos três irmãozinhos. Os pobres gatinhos iam morrer e nem sabiam de nada. Olhei para traz e lá estava o Juca, conferindo a minha atitude. Ele dizia que eu precisava aprender a ser homem. Ah, inesquecível pesadelo, minhas pernas pesavam toneladas, eu caminhava por alagados!
O rio estava na minha frente, amarelo, barrento, passando depressa. Minhas lágrimas abundantes o tornavam mais caudaloso. Relutante, lancei o saco sobre as águas. Fiz força, joguei para bem longe, o mais longe que podia, pensando que talvez pudesse alcançar a outra margem. Doce e ledo engano! Minha força era pouca e foi tudo em vão, o rio se abriu, girou a bateia e engoliu o saco marrom. Da outra margem, impotente e confusa, Estrela, a mãe gata dos meus três gatinhos mirava o ponto exato e fugidio das águas onde seus filhos imprudentes tinham mergulhado. E lá se foram meus amiguinhos —mais valiosos que todas as pepitas de ouro que porventura houvesse no Ribeirão Bom Jesus.
Eles estavam vivos lá dentro, eu sabia, e fui junto com eles. Isso eu podia fazer. O Juca, meu pai, não podia me impedir. Vi tudo acontecer, sofri a agonia da morte junto com eles. A estopa amarela virou um radiador furado. Ah, desespero infinito!... A água barrenta foi entrando por mil janelinhas, senti a falta de ar, a asfixia. Só depois, muito depois, é que morremos e ganhamos a liberdade final, e viajamos dormindo para a terra dos gatinhos mansos e macios... Adeus, mamães!





As alvoradas

O dia Sete de Setembro daquele ano da graça de 1954 foi particularmente sombrio para mim. Aconteceram muitas coisas tristes, de marcar menino para sempre. Os fatos sonolentos foram vividos por mim nas madrugadas frias e sem cor da Vila de Água Doce. A estrela D alva, de olhar gelado, me vigiava do céu. Os fogos coloridos congelaram na minha memória e viraram sonhos. Os sons das bandas marciais varando as ruas de terra da Vila ficaram gravados em mim. Tudo era uma grande premonição.
Os dias andavam mais que difíceis, mas ainda assim dona Francisca fez um sacrifício e comprou um corte de tecido branco, de nome "tussor", e costurou um uniforme de marinheiro para mim. A roupa especial seria para eu usar somente no desfile de Sete de Setembro, mas insisti e a dona Francisca acabou permitindo que eu a vestisse antes, numa “alvorada” de treinamento.
Foi um desastre. Nunca entendi o gesto daquele menino, não sei se foi por inveja ou por ciúme, mas o fato é que o filho do Tatão, um homem rico, veio e torrou-me a roupa nova com um foguete "estrelinha". Voltei chorando e a minha casa virou uma tristeza só. Lembro que uma amiga de minha mãe, a Conceição, assumiu nossas dores e foi na casa do seu Tatão para "resolver a questão". Ela queria apenas recuperar o valor do uniforme, comprar outro pano, mas foi tudo inútil. A Conceição tentou conseguir outro corte de tecido, foi lá por várias vezes, mas voltava sempre sem nada. O homem não era rico por acaso. Fiquei definitivamente sem a minha roupa bonita de “tussor”.
Destas manhãs tristes, todavia, eu me lembro que a mais triste de todas foi quando se deu a morte do Presidente Getúlio Vargas. O sargento Almir, nosso instrutor, o amava e sofreu muito por conta disso. O sargento era nosso instrutor, ensinava como marchar direito, como tocar os instrumentos da banda, como cantar os hinos. Era o nosso herói. Naquele dia, porém, ele estava calado e triste. O Presidente Getúlio Vargas, o seu amigo e protetor, quase um pai, tinha morrido com um tiro no peito.
Lembro que o sol estava quente. Estávamos perfilados diante da bandeira, prontos para marchar, quando vi as lágrimas escorrerem pela face do sargento Almir. As lágrimas do homem brilhavam ao sol. Eu tinha apenas nove anos e nem sei se precisava, mas ao ver tanta gente chorando, acabei chorando junto.



Santa Luzia



A notícia surgiu e veio da Zona, do baixo meretrício que também era chamada de "Coréia". Correu feito um rastilho de pólvora pelas ruas e casas da Vila de Água Doce. Ali, uma velha prostituta desesperada, despejara um litro de querosene no próprio corpo e ateara fogo. Fui ver seu resto quando a pobre chegou para ser sepultada. Era um monte de pele tostada. Foi uma cena triste de se ver, as mulheres honestas da Vila choravam, franziam a testa, tampavam a boca e se retiravam nauseadas.
Quase ninguém conhecia a mulher. Aliás, ninguém na Vila de Água Doce sabia o seu verdadeiro nome. Disseram que a velha prostituta andava triste porque não tinha mais "freguesia". Dizem que o exercício da profissão das "mulheres de vida fácil" também tem seus percalços, seus momentos de crise. O pior é que quando chegam esses momentos a mulher já está no fim da vida, sem reação, sem beleza, sem alma, doente, sem amigos. Ninguém mais a deseja para nada.
Nesse tempo havia na Vila de Água Doce um menino misterioso que, todos os anos, levando um pires coberto por um lenço branco, no dia de Santa Luzia, percorria as ruas pedindo esmolas para a santa. Diziam que o menino cumpria uma promessa feita pela sua mãe. Tinha, de fato, um sinal nos olhos —uma mancha escura que saía do olho esquerdo e se prolongava pela face—, o que, segundo o povo, seria a marca da cura, a prova do milagre de Santa Luzia.
No velório da prostituta, uma cena chamava a atenção de todos. Diante do que restara do corpo, o menino misterioso segurava o pires branco e chorava baixinho. Aquela prostituta queimada e morta era a sua mãe querida e só então descobriram que o nome dela era Luzia —a Santa Luzia das esmolas.


Nelsinho "Neném"


Havia um estranho hábito na Vila de Água Doce: os mortos eram fotografados no caixão, antes de serem enterrados. O costume macabro tornara-se solene e importantíssimo. Os corpos chegavam das roças e ficavam na capela, aguardando pelo fotógrafo Juca Paixão. Sem aquela derradeira fotografia não se enterrava ninguém. Quando o profissional chegava, removia-se o falecido para fora da capela, para onde havia claridade, e suas últimas particularidades eram registradas. Seus momentos finais sobre a terra ficavam eternizados numa foto grande e marrom.
Lembro de um dia, quando foi assassinado a facadas o fazendeiro Sebastião, um homem bom da região e da sua foto solene que também foi "tirada". Seu terno ficara manchado pelo sangue ralo, vazado das lesões profundas, e as manchas foram capturadas pela câmara do fotógrafo. Durante anos aquela foto foi exibida pela viúva chorosa, para execração do criminoso —o próprio enteado. Sempre que havia missa na Vila de Água Doce, por vários anos seguidos, a viúva surgia da roça e exibia aquela lembrança triste. Até eu chorei, mas uma vez só, depois não chorei mais.
De outra feita, quando morreu o jovem Nelsinho, aquele que era chamado de "Neném" por sua mãe, foi tudo muito triste. Houve tumulto na porta da igreja. Enquanto se aguardava a chegada do fotógrafo, uma pequena multidão admirava o jovem, que tinha falecido na flor da idade. O jovem morto parecia estar sorrindo. O caixão tinha sido colocado na posição ideal. A mãe, inconsolável, assustava a todos com suas palavras duras. Chorava e xingava, tornara-se inimiga declarada de Deus. Blasfemava: “Deus não vale nada, Deus é uma merda!...”
Nesse tempo eu tinha apenas nove anos e me perguntava, intrigado: "Será mesmo?”
De qualquer forma, decidi que eu deveria julgar e condenar aquela mulher por suas blasfêmias. Ela não podia, apesar de ter perdido o filho moço, desafiar a Deus daquele jeito, precisava aprender uma lição. Depois que o jovem foi sepultado, fui para casa e pronunciei minha sentença: O "Neném" podia ir para o Céu, mas a mãe precisava ir para o Inferno! Eu não vi, mas é importante dizer que, quando revelaram a foto, dizem que o Neném parecia estar sorrindo...




O abacaxi

O Juca não gostava de dividir nada com os filhos. A comida era pouca e os filhos muitos. Às vezes ele chegava da rua e trazia alguma coisa gostosa escondida sob a camisa. A gente tinha quase certeza de que era coisa de chupar ou de comer. Disfarçado, ele descia para o quintal, escondia-se atrás da moita de bambu e saboreava seus quitutes misteriosos. Ficávamos olhando de longe, salivando, imaginando o que seria daquela vez.
A julgar pelos restos que ficavam no chão do quintal, a gente descobria o que ele tinha comido. Às vezes era doce, às vezes era salgado. Lembro de ter achado certa vez vários rótulos de "paçoquinha" e outros tantos vestígios de "maria-mole", uns doces deliciosos que eram fabricados pela "Neuza", uma fábrica de Vitória, que tinha caminhões-baú enormes, de cor verde ou marrom, que volta e meia chegavam em Água Doce para atiçar nossos paladares de menino.
Um certo dia, o Juca chegou com um volume enorme, diferente dos anteriores e, como sempre, disfarçado sob a camisa. Apossou-se de uma faca e desceu para o quintal. Eu já sabia que ele escondia alguma coisa gostosa. Segui-o.
Na mesma moita de sempre ele agachou e desembrulhou o pacote. Que decepção! O misterioso pacote não passava de um simples abacaxi! Era cheiroso e cor de rosa, mas um simples abacaxi!
Não entendi o porquê de tanto mistério. De longe, escondido, eu acompanhava todos os movimentos do Juca. Vi quando ele descascou o abacaxi e saboreou cada fatia molhada, brilhante. Ao final ficou em suas mãos apenas a coroa verde e o pavio central, amarelo. O bigode e o queixo do meu pai guloso brilhavam de tanto melado. Que delícia!
Das outras vezes eu desejava, só de maldade, que os doces do Juca caíssem no chão e se sujassem de terra. Desta vez, porém, achei que ele fizera bem em comer sozinho o pequeno abacaxi. Afinal, se ele o tivesse compartilhado conosco, os oito filhos comilões, ninguém teria ficado satisfeito. Naquele dia, lembro que passei vontade de chupar abacaxi, mas também fiquei com muita pena do Juca, o meu pobre pai.




Doce de banana



Eu tinha amanhecido inspirado naquele dia e os meus dotes de menino culinarista se manifestaram de maneira especial. Num ponto do quintal, próximo ao chiqueiro, acendi uns gravetos e botei para ferver uma velha panela preta. Dentro, joguei umas oito ou dez bananas nanicas maduras, acrescentei rapadura e mexi. Ao final, despejei a pasta marrom resultante numa tábua previamente lavada, que encontrara ali por perto, e deixei secar.
Em virtude de um desses milagres que só Deus pode explicar, o doce ficou com uma aparência ótima. Tocado por uma corrente de ar, ao ser transferido da panela para a tábua, cristalizou-se e tomou um aspecto róseo-brilhante. Cortei-o em pequenos cubos e ofereci, orgulhoso, para toda a família. Comeram e gostaram. Minhas bactérias açucaradas estavam deliciosas.
Horas mais tarde, havia fila na porta do banheiro. O mais furioso era o Juca, meu pai, que me olhava com um ódio mortal. Eu compreendia a sua fúria, afinal ele vivia tentando fazer um doce de banana cristalizado, bonito e gostoso como o meu, mas nunca conseguia... Pobre Juca!


Biscoitos de polvilho


Do outro lado do rio, depois que passava a ponte onde mataram o fiscal Chico Lobo, havia a padaria do João Pedro. Para aqueles lados ficava também a casa do dentista Antônio Otti ao lado do primeiro centro de umbanda da Vila de Água Doce. Todos os dias, eu e o meu irmão, íamos lá buscar biscoitos de polvilho para o meu pai revender no bar. Dona Francisca, muito católica, nos recomendava na saída: “Cuidado com o povo do “pemba”... Passem direto, nem olhem para o lado de lá!”
O João Pedro era um padeiro de arte geral, mas parece que só gostava mesmo era de fabricar biscoitos de polvilho, gigantes e retorcidos, levíssimos e cheirosos. Alguns biscoitos, porém, saíam do forno marcados por pequenas ilhas de carvão e levemente queimados. Eram precisamente aqueles biscoitos que faziam a nossa ingênua alegria.
Quando o velho padeiro os contava, lançando-os dentro da enorme cesta, sempre conseguíamos localizar um ou dois desses biscoitos "especiais". E fazíamos aquilo de propósito, apontando-os para o João Pedro. Advertido por nós, diante do possível prejuízo de ter que substituir alguns biscoitos queimados, o João Pedro os pegava com suas mãos delicadas, aproximava-os do rosto, arregalava os olhos e dizia: "Isso não é nada... É só um carvãozinho..." E raspava com sua unha grossa o biscoito quente, super torrado, produzindo um ruído delicioso.
Eu, e o meu irmão, João, nos entreolhávamos. Nossa alegria era ver o padeiro fazer aquilo, produzir o som específico, exclusivo, único em todo o universo. Depois de tê-lo feito raspar vários biscoitos, voltávamos alegres para casa, carregando a enorme cesta, cumprindo a nossa obrigação, felizes por ter assustado o velho padeiro de unhas grossas com cor de paquistanês. Aquele homem velho era obediente e fabricava sons exclusivos, os únicos na galáxia, só para nós. Amávamos aquele padeiro João Pedro. Creio que gostávamos dele porque ele obedecia às nossas ordens, e talvez porque fosse o único homem no mundo que sabia fazer "cafuné" em biscoitos de polvilho...




A meia banda

O forasteiro negro que chegara de desconhecidos lugares vinha com idéias grandiosas para a próspera Vila de Água Doce. Tratava-se de um sonhador e simpático professor de música, que atendia pelo nome de Cristiano. Um certo dia, ele entrou no nosso bar e anunciou que pretendia dar aulas à noite no grupo escolar da Vila. Isso, se a arrogante Diretora permitisse!
Nesse tempo sem ginásio o prédio do grupo escolar ficava fechado à noite e ele queria ocupar esse espaço. Pretendia formar uma grande banda de música em Água Doce. Mas o Eli, filho do Juiz de Paz, João Furtado, duvidou e fez pouco. Escondendo a boca com a mão debochou, sorriu e comentou: "O cara não forma nem meia banda!”
Depois desse dia, todas as noites no grupo escolar, o negro Cristiano, solitário, produzia sons suaves de flauta doce e clarinete. A novidade era comentada na cidade, mas o professor passou um longo mês com apenas dois alunos. Era o sinal de que a banda de música não progredia. Certa manhã, aparentando desânimo, o professor Cristiano entrou no bar e me convidou para estudar música. Desconfiei que o convite fosse mais para engrossar o número de alunos do que por outra razão. Disse que eu tinha jeito para a coisa, e que seria muito fácil aprender clarinete. Depois de uma longa conversa ele convenceu ao Juca, meu pai, das minhas insuspeitadas habilidades musicais. Acabei indo estudar.
Mas, se existe uma coisa difícil de aprender na vida, esta coisa é aprender música. Foi uma agonia sem fim, nunca sofri tanto. Dois longos meses depois eu apenas conseguia desenhar bolinhas pretas em cima ou abaixo da linha. Desenhava muito mal as claves de sol. Nesse rítmo, se dependesse apenas de mim, a banda de música da Vila de Água Doce ficava cada vez mais distante.
Não sei se foi pelo fato de o professor ser negro, ou porque ele não pagava aluguel pelo espaço que usava, o fato é que levantaram um falso testemunho contra ele e seus pouquíssimos alunos. Palavrões, que ninguém jamais viu, foram escritos com giz sob as carteiras. Tais palavrões supostamente atingiriam a honra de algumas meninas que estudavam no primário. Pediram a sala de volta.
Assim, silenciosamente, do mesmo jeito que começara, extinguia-se o embrião da primeira banda de música da Vila de Água Doce. No dia seguinte, o professor Cristiano, triste e cabisbaixo, foi no bar despedir-se de nós. Disse que eu não precisava lhe pagar nada pelas aulas, que ele só tinha ido mesmo era me agradecer pelo apoio dado, pelo esforço que eu tinha feito em aprender. Foi muito gentil o professor Cristiano.
Durante muito tempo o professor solteirão fez o seu desjejum no nosso bar. Naquele dia, entretanto, não sei se ele estava triste devido ao fim do seu sonho, ou porque estivesse sem dinheiro, o certo é que ele se foi sem tomar café. Depois desse dia, nunca mais o vi.
Aquele professor negro não me ensinou nada, mas assim mesmo eu gostava dele. Hoje ainda me lembro que o seu nome era Cristiano, quase igual ao nome de Jesus. O meu amigo Eli estava certo em sua profecia: Nem meia banda...


Vanadiol

Ao lado da minha casa ficava a farmácia do Sebastião Barros, o comunista. Apesar de falarem muitas coisas ruins dele, para mim ele sempre foi um homem bom. Um dia ele foi levado preso e nunca mais o vi. Falaram que sofreu torturas na cadeia, que chutaram suas partes íntimas. Essa cena triste, imaginária e dolorida, acompanhou-me por toda a vida.
A sua farmácia era modesta, mas tinha um cheiro marcante, característico. Quem passava na calçada em frente, sentia cheiro de éter, de clorofórmio. Eu passava horas lá dentro, conversando com o Sebastião, admirando as suas prateleiras não muito cheias de vidros coloridos. Havia alguns envoltos em papel celofane. Ele não tinha crédito, diziam que ele era comunista e podia ser preso a qualquer hora. Depois, quem pagaria as suas duplicatas?
Entre tantos outros medicamentos da sua farmácia, havia um, o Vanadiol, que eu admirava em especial. O rótulo informava que Vanadiol era um poderoso fortificante, destinado a restaurar os músculos e os nervos. O frasco do misterioso tônico era de um verde intenso, caindo para o roxo. Nas laterais da embalagem viam-se muitas medalhas de prata e ouro, obtidas em suspeitíssimas exposições internacionais. Em destaque na face central, havia a silhueta dourada de um homem musculoso, vergando uma grossa barra de ferro. Aquilo me encantava. Era tudo o que eu gostaria de ser: forte, musculoso, valente. Se o Sebastião, o comunista, me vendesse fiado, eu seria capaz de tomar litros e litros daquele medicamento fantástico. Mas isto era um sonho irrealizável.
O Sebastião era o único socorro paramédico em quilômetros. Na sua farmácia aportavam as pessoas humildes da região, desesperadas, homens baleados ou acidentados. Um dia apareceu na sua farmácia um homem cortado à navalha. Cheguei mais perto para ver. O rosto do homem era uma massa disforme. O sangue, coagulado, se fundira com os pêlos da barba, descera pelo pescoço, peito e barriga. O comunista se transformara no único salvador daquele homem. Um dos cortes, ao longo da face, passava pela boca do infeliz, redesenhando-a. Vi quando o Sebastião pegou uma pinça e afastou alguns retalhos de lábios frouxos. Em seguida, recuou assustado. O homem não tinha mais a língua. O importante órgão tinha sido deixado lá na roça, no local da feia briga. Imaginei a língua do homem no chão, solitária, cheia de terra, envolta num só bolo de formigas.
Dias depois chegou outro homem, desta vez baleado. A bala transfixara o pescoço, deixando atrás de si um pequeno túnel. Observei que quando o infeliz bebia água, metade do líquido vazava em pequenos jatos sobre o ombro esquerdo, que ele mesmo, corajoso, ia aparando com uma saboneteira cor de rosa. Se fosse eu, desmaiaria gostosamente e ficava dormindo no colo de Deus.
Aconteceram muitas cenas marcantes na farmácia do Sebastião, mas a que eu mais gostava de ver, na verdade, era a coleção de vidros verdes de Vanadiol, envoltos em papel celofane. Os frascos do miraculoso tônico continham potenciais músculos de super herói e eu os cobiçava porque sonhava com um futuro tranqüilo, musculoso, sem inimigos que me enfrentassem...




A igreja nova


Depois de muitas promessas e adiamentos, começaram a construir a nova igreja de da Vila de Água Doce. O Juca Paixão e outros homens de fé, a pedido do Padre Fernandes, fizeram quermesses, leilões, festas com procissões de fogo e levantaram o dinheiro suficiente para construir uma igreja de alvenaria, com torre. A igreja seria construída noutro outeiro, não muito distante do local onde estava a antiga capela de madeira. Montanhas de tijolos vermelhos começaram a ser vistos no local. Nos fins de semana, quando os pedreiros desapareciam, vinham os meninos-vândalos, eu inclusive, para brincar de dominó com os tijolos caros e quebradiços. Fazíamos filas quilométricas com as peças de cerâmica, colocando-as de pé, uma ao lado da outra. Depois, derrubávamos o primeiro tijolo sobre o segundo e eles ganhavam vida própria, seguiam sozinhos, serpenteando, derrubando-se, fazendo a alegria dos iconoclastas mirins da Vila de Água Doce, adiando mais um pouco a já tão demorada construção da igreja.
O povo da Vila estranhou muito o fato de que a igreja fosse ter uma só torre. Comentavam, irônicos, que a igreja iria ficar "pensa" para um lado. O comum, na época, era erguer igrejas com duas torres, mas de qualquer maneira, mesmo recebendo críticas à sua torre solitária e perdendo tijolos regularmente para os meninos, a igreja crescia em direção ao céu. Lentamente, mas crescia. Em 1959, quando eu estava saindo para sempre de Água Doce, olhei para trás e chorei. Os tijolos vermelhos, teimosos sobreviventes de mim, já se agrupavam sobre o morro e ganhavam jeito de uma igreja. Se eu pudesse, ficaria esperando só para ver o resultado da nossa obra...



O anjinho


Contam os antigos habitantes que ali, na Vila de Água Doce, num passado distante, houve um anjinho que morreu duas vezes. A primeira vez foi de crupe, sem nenhum recurso, na roça e na sua casa pobre. A segunda teria sido na estrada, num lugar próximo da Vila, conhecido como Volta do Jaó.
As crianças que morriam na primeira infância recebiam o nome de "anjinhos". Esses “anjinhos” chegavam e partiam quase todos os dias, em direção ao cemitério de arame da Vila de Água Doce. Ali os anjinhos eram a grande maioria. O morro vivia coberto de pequeníssimos outeiros floridos, o lugar era a tristeza das mamães.
Naquele dia, os meninos uniformizados como era de hábito, tinham deixado a aula ao meio para buscar mais um anjinho que morrera na roça. Por alguma razão certamente justa eu não fora junto com eles. A caravana de meninos era modesta, incluindo nela o anjinho, o grupo não somava vinte crianças. Lembro que aqueles cortejos tinham vida própria e se comportavam como um cardume de peixes. Tal como um rebanho de carneirinhos, para onde um fosse, todos acompanhavam.
O senhor Orlando, dono da máquina de pilar café, era quem contava a história. Ele afirmava que o inesperado se dera próximo à Vila. Dizia: ele: “Um caminhão desgovernado surgiu de repente, vindo da Volta do Jaó, e tomou a direção do grupo de crianças. Apavoradas, as crianças fugiram e abandonaram o caixão do anjinho dorminhoco na poeira da estrada. Antes, porém, de acontecer uma desgraça, estranha força atuou sobre o caminhão, empurrando-o no rumo da lagoa, fazendo-o mergulhar nas águas escuras —horta nativa de palmeiras e taboas—, onde moravam grandes e lustrosas sanguessugas”
A menina Amelinha, quando ouvia o seu avô contar esta história, exclamava do alto dos seus cinco anos: “Ainda bem que o anjinho só levou um susto, não é mesmo, vovô?”



O Poço


Da janela do bar onde eu estava, vi um círculo de cabecinhas curiosas circundando a boca do poço. Desci para o quintal e fui conferir. Eram todos eles meninos curiosos, meus vizinhos e coleguinhas de escola que, ao contrário de mim, aproveitavam a vida brincando e nunca trabalhavam. Olhei para o fundo do poço, através do funil de terra marrom, e vi o espelho de água se agitando lá em baixo. Um bafo úmido subia do centro do planeta. Lá em baixo alguma coisa viva se movia. Descobri que torciam por um galo teimoso que nadava feito um atleta desde a noite anterior. Normalmente os galos não sabem nadar e morrem afogados, mas aquele galo era um obstinado pela vida.
De repente, abrindo a roda e dando ordens incisivas, surgiu o Juca, meu pai. Ele trazia uma longa escada de bambu e ordenava: "Saiam todos... caiam fora... arredem todos!..." Ato contínuo introduziu a escada no ventre da terra e lépido como um acrobata desapareceu para dentro do poço. O Juca era o nosso novo herói. Sua nobre missão era salvar o galo náufrago e impressionar as crianças ali presentes. Minutos depois, porém, ouviram-se gritos desesperados vindos de dentro do poço: "Socorro!... Socorro!...”
Era o Juca, meu pai, em sérios apuros. A lâmina d água era bem mais funda do que ele calculara e praticamente cobria toda a escada. Esse imprevisto o levou a disputar com o galo nas profundezas o único degrau que ficara fora d água. Um cristão ali presente jogou a corda providencial e salvadora. O Juca, apavorado, alcançou a corda e se livrou da nunca suspeitada armadilha do poço. Na verdade a sorte do Juca não nos importava muito, estávamos preocupados era com o pobre galo, nosso herói. Minutos mais tarde, refazendo-se na amurada do poço e trazendo o galo ensopado preso à cintura, ouvimos quando o meu pai pronunciou as duríssimas palavras: "Vamos ver se esse galo também sabe nadar numa panela!..."
Nenhuma criança gostou de ouvir aquilo, afinal o galo era o nosso novo herói. E o Juca? O Juca virou um tipo de anti-herói.



A Lagoa das montanhas flutuantes



Todos os meus temores de menino moravam no fundo da lagoa que abraçava a Vila onde vivi. Os jacarés roliços e famintos, a mula-sem-cabeça, as sanguessugas lustrosas e oportunistas, o coveiro Marriel, a dona Josefa (uma velha benzedeira que benzia de tudo, inclusive espinhela caída e alguns tipos de dor de dente), a floresta baixa e flexível de taboas, com chouriços marrons na ponta, a floresta alta, negra e verde de brejaúvas. Esses seres vivos ou não moravam na lagoa e dependiam dela de alguma maneira. Para lá, nas noites escuras, convergiam os duendes, os fantasmas e cães danados das mentes dos meninos medrosos da Vila de Água Doce.
A lagoa de águas negras era o mar que eu menino não conhecia. Para quem chegasse na Vila de Água Doce, a lagoa começava antes da Volta do Jaó e se alargava pela vargem imensa até alcançar, do outro lado, a saia de granito negro da Pedra de Santa Maria, depois seguia margeando a estrada de terra para chegar na casa onde eu morava. As águas da lagoa eram negras, cobertas por uma nata verde que eu pensava que fosse cocô de filhotes de jacaré. Contudo, eu bebia daquela água. Sentia medo dos jacarés, mas quando tinha sede, separava a nata verde e mergulhava as mãos na lagoa e o milagre se dava: a água saltava límpida para dentro da concha dos meus dedos e vinha gelada —mais fria do que a água do pote de barro que ficava num canto escuro da cozinha da dona Francisca, minha mãe.
Nesse tempo minha mãe vivia doente, ou convalescendo dos muitos partos, alguns inúteis, que teve. Obedecendo às ordens do Juca, meu pai, eu tinha que atravessar a lagoa para buscar uma empregada que sempre vinha ajudar a minha mãe nessas horas difíceis. As moças negras que se prestavam a ajudar na minha casa eram filhas de uma gente mais pobre do que nós, que morava do outro lado e trabalhavam a troco de quase nada, bastava dar-lhes o que comer.
Tremendo de medo, eu caminhava por pinguelas úmidas, feitas de árvores podres e centenárias tombadas sobre as águas. Os jacarés piscavam grandes olhos vermelhos a poucos metros das minhas pernas finas. Se um deles me pegasse, eu pensava que o Juca, meu pai, até ia gostar. Seria menos um filho para ele criar.
Anos depois, com o surgimento das máquinas de pilar café, com suas bicas de madeira quadradas e quilométricas que jogavam a palha sobre a água, a lagoa foi morrendo. Com o tempo, montanhas marrons se formaram. Eram cones e mais cones de casca de café que se acomodavam no fundo da lagoa e depois se projetavam para o alto, feito um vulcão extinto. A palha era leve e dava a impressão de que o enorme cone marrom balançava sobre a água. Menino sofrido, sem carinho de mãe e de pai, eu sentia inveja dos bichos ali deitados ao sol e pensava compartilhar com eles o conforto do colchão macio que nunca tive. Eu sonhava em deitar um dia no berço de palha dos jacarés e ser balançado pela onda suave da lagoa. Não tive berço, meus irmãos também não tiveram berço. Os meninos lá de casa compartilhavam a cama larga e coletiva dos pais. O berço macio, com rede e rendas, é um conforto que nunca tive nem nunca terei. Na base daquelas montanhas macias e quentes os jacarés vinham pegar sol. De longe eu até que gostava deles e não tinha medo. Um maior número de jacarés preferia a palha da bica do compadre Orlando. Os jacarés sabiam que os donos da bica eram gente boa, de coração bom, e nunca lhes dariam tiros como os outros faziam.
A lagoa negra que abraçava a Vila de Água Doce já não existe mais, sumiram as taboas e seus chouriços marrons, as brejaúvas, os duendes e os temidos jacarés. Tudo desapareceu sob as montanhas marrons de palha de café, mas o seu abraço foi permanente e abraçou a minha infância, grudou em mim e sobrevive na minha lembrança. O Marriel também morreu, graças a Deus. Mas, às vezes em sonho, volto lá e bebo da antiga água límpida e fresca. A nata verde ainda continua lá, mas não sinto nojo. Afasto-a com jeito, encho a concha da mão com água gelada e mato toda minha saudade.



O sagrado coração de Jesus


A cozinha da Dona Francisca, minha mãe, vivia permanentemente protegida contra os eventuais males materiais ou espirituais que porventura nos afligissem. Religiosa, ela mantinha um pequeno quadro do Sagrado Coração de Jesus pendurado o tempo todo no alto de uma das paredes escuras. O quadro colorido estava lá, cheio de picumã, desde tempos imemoriais a nos garantir uma pobreza digna, assegurando a pouca mas razoável saúde.
Numa noite de muito vento, e quase nenhuma chuva, o quadro veio abaixo fazendo um barulho enorme. Dona Francisca estava dormindo, mas foi a primeira a ouvir. Levantou-se e foi até à cozinha para tomar ciência do ocorrido. Felizmente, o vidro era grosso e não se partira. O Sagrado Coração de Jesus, intacto, retornou ao seu antigo local.
Pronto! Deste dia em diante qualquer ruído que houvesse —um vento mais forte, uma porta que se fechasse, um trovão longínquo—, e dona Francisca já sofria palpitações pensando que fosse o seu Sagrado Coração que tinha caído de novo da parede. Era um Deus nos acuda. Eu, menino de nove anos, não botava fé naquele quadro cafona e excessivamente colorido. Duvidava de que aquela entidade tão frágil, que caía da parede com tanta facilidade, pudesse nos proteger de alguma coisa. Mas, de alguma forma, acabou protegendo.
Quando a dona Francisca morreu, jovem ainda, sempre que eu ficava com saudade dela, olhava para o quadro humilde do Sagrado Coração de Jesus, e ela estava lá. A sua benção, mamãe!



O Jogo de porcelana


Para a dona Francisca, minha mãe, uma coisa era ponto de honra: o chocolate que ela servia no bar tinha que ser de primeira: tinha que ser Toddy! Ao longo de todos os anos da década de cinqüenta, lembro de vê-la, cuidadosa, abrindo grandes latas de dois quilos e meio de Toddy, retirando lá de dentro um cupom colorido, o qual lhe daria direito a um jogo de jantar de porcelana. Uma vez por semana, ela abria uma lata de Toddy, vasculhava o pó marrom e cheiroso com uma longa colher e retirava de dentro o cupom precioso. No cupom havia o desenho de um bebê bochechudo e corado, como eu, que usava um boné e dava o seu importante aval ao concurso.
Para ganhar o jogo de jantar de porcelana, dona Francisca teria que juntar duzentos e cinqüenta daqueles cupons. Se não me engano, seriam mais de seis anos de expectativa e ansiedade. Havia prêmios menores, como canetas "parker-21", mas minha mãe queria mesmo era o jogo de jantar, de porcelana chinesa.
Em 1954, já no final do ano, minha mãe e a sua comadre Poisé, fizeram uma festa na cozinha. Com a lata de Toddy aberta sobre a mesa, o último cupom colorido na mão, ela comemorava o fato de ter alcançado o seu objetivo tão sonhado. Agora era só botar no correio e esperar! Mas minha pobre mãe não imaginava que outros longos anos estavam apenas começando no seu sonho de ter um jogo de jantar de porcelana!
Em Água Doce não havia correios e a carta, com os duzentos e tantos cupons, foi postada em Vitória por um caminhoneiro amigo, de nome Eusébio. Os cupons seguiram para a rua dos Inválidos, no Rio de Janeiro, um lugar que nos parecia tão distante e insólito como a lua. O pessoal da Toddy foi muito atencioso e respondeu, depois de um mês, que o jogo de porcelana de dona Francisca estava a caminho. Passaram-se, porém, mais três longos meses e o "jogo" não chegou. Inquieta, sonhando com o seu prêmio, dona Francisca enviou outra carta. Responderam confirmando que o prêmio já tinha sido enviado.
Naquele tempo as estradas eram todas de terra, as encomendas demoravam bastante, todavia, a demora ultrapassou os limites e o jogo de porcelana nunca chegou. As transportadoras não eram comandadas por profissionais como os de hoje, nem controladas por computadores, e o jogo de porcelana acabou sumindo em algum ponto entre o Rio de Janeiro e Água Doce.
Em resumo, depois de dois anos e muitas outras cartas trocadas com a Toddy, minha mãe que já andava doente, deu por perdido o seu sonhado prêmio, e morreu sem nunca ter recebido o jogo de jantar. Não tem importância dona Francisca, lá no céu os jogos de jantar são todos feitos em porcelana, e a senhora terá o seu.




Aves e Ovos


O Juca, meu pai, era um contador de vantagens. Sempre que se reuniam mais de três pessoas no nosso bar, ele dava início às suas histórias mentirosas. Porém, uma coisa ele dizia e era verdade: nunca bebeu ou fumou em toda vida. Uma de suas histórias preferidas era a da pequena venda de “aves e ovos” que instalara na entrada da Vila de Água Doce, lá pelos idos de 1950.
A tal venda fora sua única saída para enfrentar uma crise econômica brava. Aquela crise de dinheiro foi longa e duradoura, pois sempre vivemos na maior pobreza. Mas isto é outra história.
Nesse tempo, contava o Juca, havia no lugar um tal de João Guaraná, um bandido perigoso e temido. Por qualquer motivo o homem puxava o gatilho e despachava um para o inferno.
Certo dia, dizia meu pai, o João Guaraná chegou na venda e tomou umas cachaças. Além das aves e dos ovos, o Juca também vendia cachaça. Conversa vem, cachaça vai, o bandido Guaraná ficou invocado ao saber que o dono do bar não fumava nem bebia e ordenou que o Juca botasse uma dose de pinga no copo, dissolvesse ali um pedaço de fumo de rolo e bebesse tudo. Pronto! Estava armada a encrenca...
Sempre que chegava nesse ponto, porém, para nosso desespero, o Juca inventava uma desculpa qualquer e não continuava a história. Dizia que era tarde, que estava indisposto e desconversava. O certo é que jamais revelava como se safara daquela situação difícil. O pessoal que freqüentava o bar ficava injuriado. Alguns passaram a ter sérias dúvidas sobre a coragem do Juca, meu pai. Certo dia, o Eli, filho do João Furtado, que também era um menino curioso como eu, ao ver que a história mais uma vez não terminaria, não se conteve e perguntou ao Juca: “Seu Juca, conta pra nós, pinga com fumo é gostoso?”.





Sonhos do tio Benê



Meu tio Benê só teve um vício em toda a vida: fumava feito um doido, era uma verdadeira chaminé. Nos últimos anos, todavia, depois que se aposentou, desenvolveu o hábito de jogar no bicho. Como não tinha nada para fazer, todo dia fazia a sua “fezinha”.
“Mania de velho”, dizia a minha tia Conceição. A tia não se importava muito por que o dinheiro que ele gastava era pouco, e só jogava “no grupo”. O tio Benê, porém, não desperdiçava seu dinheiro, isso jamais. Só fazia o jogo depois que analisava os sonhos que tivera na noite anterior. Seus sonhos se tornaram oráculos confiáveis, quase infalíveis. Certo dia sonhou que caíra do telhado e jogou no gato. Deu burro.
É verdade que não ganhava sempre, mas se não confiasse nos seus próprios sonhos, em quem confiaria? O certo é que meu tio Benê perdia muito mais dinheiro do que ganhava. Algumas noites, o que é normal, seu sono era pesado e ele não sonhava com nada e no dia seguinte, sem um palpite certo, ficava meio desorientado. Porque não tivesse um bicho confiável no qual apostar, muitas vezes o tio Benê me abordava pela manhã, bem cedo, e me indagava com a cara triste de um pedinte: “Sobrinho querido, conte aqui para o seu tio: você não sonhou com algum “bicho bom”, hoje?


Leite materno

Filho de Minas, das lendas e crendices gerais, aos oito anos eu já vivia e ouvia histórias de benzimentos, de espinhelas caídas e muitas coisas mais. Depois que o tropeiro Damião morreu de mijacão, sozinho e sentindo muitas dores, num barracão velho do outro lado do Ribeirão Bom Jesus, sua mulher, a dona Antônia, nunca mais foi a mesma. Lembro que eles moravam numa casa alta, de pernas de madeira quadrada, a meio caminho entre a minha casa e a igreja da Vila de Água Doce. Da minha casa dava para ver a casa deles.
Nesse tempo eu tinha aproximadamente nove anos e observei um que um estranho movimento acontecia por lá. Gente velha e nova entrava e saía da casa a toda hora. Comentavam que a dona Antônia, a viúva, estava muito doente. A pobre mulher agonizava havia dias, sem que se decidisse a morrer. Diziam que ela relutava em deixar os seis filhos pequenos sozinhos nesse mundo de Deus. Nesse tempo, a dona Francisca, estava amamentando um de meus irmãos mais novos, não me lembro qual. Aliás, minha mãe vivia amamentando alguém. Quando a minha pobre mãe não estava barriguda, estava amamentando.
Já era quase noite quando entrou no nosso bar, que sempre foi a minha casa de morar, o mudinho Neném trazendo uma xícara verde e bojudinha, de ágate. Ele explicou lá do seu jeito, para o Juca, meu pai, que precisava de um pouco de leite materno. O leite forte da minha mãe seria dado à dona Antonia para que ela se decidisse a morrer. Era para que a pobre mulher, afinal, tomasse uma decisão. Os parentes, os filhos, os amigos, ninguém agüentava mais ver o sofrimento da dona Antônia. Providenciava-se uma eutanásia caseira, muito usual na região. É doce ver a morte dos outros.
O mudinho saiu da minha casa levando a xícara cheia de leite e subiu o morro na direção da casa da moribunda teimosa. Momentos depois, e não demorou muito, uma multidão começou a chegar por lá. A dona Antônia tinha morrido. O leite da minha mãe era dotado de poderes letais que eu jamais imaginara e agira no caso tão poderosamente como se fosse uma dose mortal de cianeto.
Depois disso, quando via o meu irmão caçula mamando vorazmente no peito da minha mãe —o leite branco e gordo escorrendo-lhe pelo canto da boca—, eu ficava preocupado e pensava com os meus botões: “Se eu fosse ele não arriscava!...”




A baratinha

Até os cinco anos morei na roça, num sítio próximo de Eugenópolis, MG. Só depois é que mudamos para a Vila de Água Doce —a doce vila das minhas lembranças, situada no Contestado, um lugar perdido entre as montanhas fronteiriças de Minas Gerais e Espírito Santo.
A casa onde nasci não existe mais, as suas velhas paredes e o seu telhado negro foram engolidos pela engrenagem do tempo. Mas eu ainda me lembro que havia um grande terreiro separando as nossas brincadeiras —eternas correrias de menino—, da estrada de terra que passava em frente.
Volta e meia, uma nuvem de poeira se erguia na curva do bambuzal. Depois explodia e flutuava no vermelho da terra para desaparecer na direção da fazenda do Vô Sebastião. Cada nuvem que passava levava no colo um carro antigo. Engraçado lembrar como antigamente todos os carros eram antigos. O turbilhão de pó vermelho surgia de um lado e desaparecia rapidamente do outro. Nesses momentos, nossas importantes brincadeiras eram interrompidas e nos quedávamos, encantados, olhando a cena que se movia. Era gente rica passando a caminho de Eugenópolis, ou chegando para passar o final de semana no campo. Nós sabíamos que a qualquer momento, dirigindo uma baratinha cor de vinho, o carro mais lindo de todos, passaria o “seu” Tatão.
O “seu” Tatão era um homem bom, sorridente, de gestos amplos. Sempre que ele passava, invariavelmente, diminuía a marcha e nos jogava um punhado de moedas amarelas. Creio que ele gostava de ver a alegria daqueles meninos magrinhos, a algazarra deles, a felicidade estampada nos olhos. As moedas caíam e rolavam entre as moitas de erva-cidreira, uns tufos de capim verde que emolduravam o quadrilátero de terra batida do nosso terreiro. Em seguida, eu e os meus cinco irmãos passávamos o resto do dia procurando pelas moedas, garimpando a riqueza que viera pelos ares. Não fazíamos a menor idéia do valor das moedas, mas a minha mãe fazia —e parecia que gostava bastante de tudo aquilo.
Como era bom e generoso aquele homem! Como era gostoso esperar por ele todos os fins de semana! Nós ficávamos aguardando, ansiosos, pela poeira que vinha junto com o seu carro, pelo ruído do seu motor, pelo cheiro bom e diferente da sua baratinha, pelas moedas que ele nos lançava em punhados, em mãos cheias. Os discos de ouro brotavam da sua mão e, antes de rolarem pelo terreiro e se esconderem, caprichosos, nas moitas de erva-cidreira, flutuavam no ar, abriam-se em leque e brilhavam ao sol. Era uma chuva de ouro caindo do céu.
Até hoje me lembro com muito carinho do “seu” Tatão, mas nunca consegui descobrir por que razão ele nos jogava moedas. O que será que o “seu” Tatão pensava de nós? Nossa casa era feia, feita de madeira roliça, nosso fogão era de lenha, tomávamos banho frio numa bica que vinha da serra (de onde eventualmente rolava um caranguejo marrom de um braço só, que apavorava a minha irmã caçula), brincávamos descalços e sem camisa, mas era apenas obedecendo a uma ordem da minha mãe que gostava de economizar na roupa. Mas o meu pai era um homem rico, ele tinha um sítio de “a meia” com um compadre seu, tinha a nós, seus seis filhos, duas vacas leiteiras e um carro de bois. Quando Juca saía para vender o leite na cidade, levava as moedas caídas do céu. Na volta, ele passava na venda e trazia uma montanha de balas de goma, suspiro e maria-mole para nós. Era só festa.
Acho que o “seu” Tatão pensava que nós éramos pobres, e vai ver que era por isso que ele nos lançava as moedas de ouro...


A comadre do tio Benê


Meu tio Benê sempre foi um cara legal e muito saudável. Trabalhava à sua maneira, bem devagar, no cartório da Vila de Água Doce. Nos fins de semana quentes e desertos do interior, o tio Benê nos levava para tomar banho de rio. Meu pai não gostava muito daqueles banhos, achava que um banho por semana, tomado na quarta feira, já era o suficiente. Mas a boa lábia do tio Benê convencia ao Juca, meu pai, e lá íamos, em bando, na direção do Rio Preto, para tomar banho pelado. Era uma festa a vigência daqueles banhos. A fundura e a largura do rio eram ideais e seguras, de sorte que não corríamos nenhum perigo naquelas águas sem correnteza, ainda mais que estávamos sob a proteção segura do tio. À sombra ondulante dos ingazeiros, ora flutuávamos ora mergulhávamos na água fria, fugitiva e deliciosa. Mas isto é uma outra história que contarei depois.
Certa manhã, minha tia Conceição chegou lá em casa apavorada. Contou com os olhos esbugalhados que o tio Benê só estava falando coisas sem nexo. Segundo a descrição dela, o homem parecia estar “tomado”, gesticulava sem nexo e emitia um som parecido com “gró, gró, gró, gró”. Resumindo, tio Benê tinha sofrido um acidente vascular cerebral e foi levado ao hospital de Mantena, onde passou vários dias. Depois foi devolvido semiparalítico à sua velha casa da Vila de Água Doce. Adeus banho de rio.
A casa do tio era estreita e comprida e acharam que era melhor para ele ficar no quarto dos fundos por ser mais silencioso. E lá ele ficou esquecido de tudo e de todos. De vez em quando dava um grito solicitando algum tipo de ajuda, algum medicamento, água ou uma outra coisa qualquer.
A sua comadre preta, dona Poisé, só ficou sabendo da doença dele vários meses depois. E veio de surpresa para uma visita. Chegou e foi entrando para alegria de todos. Até então ninguém sabia que o tio Benê gostava tanto da comadre Poisé. Foi ela botar os pés dentro da sala e ele começou a berrar lá no seu quarto, no fundo da casa: “Comadre! Comadre! Tragam a comadre!” O pessoal se apressou em levar a comadre Poisé até o quarto onde o impaciente tio Benê berrava sem parar: “Comadre!... Comadre!... Tragam a comadre!”
A comadre entrou, mas logo precisou recolher o sorriso. O tio Benê estava nervoso e o que ele queria mesmo era outra coisa: “Não é esta porcaria de comadre que eu quero... Eu quero é a comadre de mijar!..”.





Lavadeiras de Água Doce

O Ribeirão Bom Jesus era um riacho de águas límpidas que cruzava a Vila de Água Doce e passava bem nos fundos da minha casa. Naquele tempo, as suas águas eram puras, de se poder beber, de ver o fundo pedregoso. A areia branca se movia sobrepondo-se, arrumando-se devagar. Um grão brilhante rolava sobre o outro formando um tapete branco lá no fundo —eram milhões aparentemente parados, mas seguindo o mesmo caminho na direção do mar. Foi naquele rio que eu vi uma camisinha pela primeira vez. Estava inflada e presa num ramo submerso, agitando-se na força da corrente. Pensei que fosse uma bola de bexiga ou uma mini-biruta a sinalizar o pouso de aviões imaginários. Mas isto é uma outra história...
Na direção do nosso quintal, o rio fazia uma curva e formava uma extensa praia de areia. Minha mãe e outras mulheres iam ali para lavar roupas. Elas levavam grandes cestos cheios de lençóis, toalhas de mesa, calças e camisas dos filhos pequenos, enormes e feias cuecas dos maridos mandões. Esses preguiçosos ficavam em casa fumando e conversando abobrinhas, sem coragem para fazer um tiquinho de nada. Ao longo da praia fluvial era possível ver bacias de latão cheias de roupa já lavada e torcida, ladeadas por enormes troncos rachados ao meio que serviam de batedouro para alvejar a roupa. As mulheres pareciam ter sido feitas de mola, pois flexionavam o corpo e erguiam a roupa molhada bem acima da cabeça e depois, com força de gigante, malhavam o “biscoito ensaboado” sobre os troncos de madeira, espirrando espuma e água para todos os lados. De longe era possível ouvir o barulho gostoso —igual ao que produz um lenhador trabalhando no alto da serra. Elas diziam que batiam para alvejar a roupa, para que ficasse bem branquinha. Mas eu achava que tinham mesmo era raiva dos seus maridos, uns folgados, e se vingavam deles ali, batendo forte na roupa deles. Bem feito!
Nós brincávamos despreocupados na água limpa e rasa, não havia possibilidade de um afogamento. A preocupação maior das nossas mães estava voltada para os temidos cabritos, comedores de botões, e para os porcos famintos que freqüentavam o local. Os cabritos passeavam sobre as roupas postas a quarar e deixavam rastros bipartidos, amarelos, sujando as peças recém-lavadas e comiam os botões das camisas. Os porcos, por sua vez, apreciavam comer as aparentemente deliciosas barras de sabão. Não raro, um gordo suíno saía correndo, enxotado pelas valentes mulheres. O delinqüente suíno, sem nenhuma preferência culinária fugia medroso, ostentando no queixo uma enorme barba de espuma, resultante da barra de sabão que comera impropriamente pensando que fosse queijo. O terror maior das lavadeiras, porém, era a mamangaba, ou mangava (um tipo de abelhão peludo de barriga listrada de amarelo e preto, cuja picada é assaz dolorida). A mamangaba sempre gostou de morar nos troncos podres, exatamente naqueles batedouros de roupa, que eram tão necessários à profissão das lavadeiras. As vigorosas pancadas que elas davam na parte externa dos troncos irritavam os insetos lá dentro e eles saíam furiosos para se vingarem. Heróica e úmida comicidade —jamais me esquecerei dessas cenas cômicas. As mamangabas são uns insetos extravagantemente grandes que acrescentaram valentia ao trabalho da minha mãe e aumentaram o meu amor por ela. A dona Francisca lavava roupa e ainda enfrentava cabritos comedores de botões e porcos comedores de sabão. Ela tirava de letra as picadas dos abelhões gigantes, enquanto o Juca, meu pai, ficava em casa fumando, dormindo ou pescando no Rio Preto com algum amigo seu, igualmente preguiçoso e vagabundo. Cada vez que me lembro dessas coisas, fico gostando um pouquinho mais da minha mãe.
Batatinhas

Os mineiros gostamos muito de comer batata doce. Pode ser frita, assada ou cozida, e pode ser preparada também em forma de doce. A batata inglesa não é muito comum de ser encontrada no interior de Minas, é conhecida por lá como “batatinha”. O meu irmão mais velho, Vavá, sempre foi muito doente e gostava de comer “batatinha”. Batata doce ele não apreciava nem um pouco. Volta e meia a minha mãe fritava umas “batatinhas” só para ele, salgadinhas e exclusivas. Nós, os outros sete irmãos, sentíamos o cheiro gostoso e ficávamos rodeando e salivando por perto do fogão. Mas era inútil o nosso apelo: as “batatinhas” eram poucas e todas do Vavá.
Quando a minha mãe adoeceu para morrer, ainda jovem com apenas 39 anos, foi internada na santa casa de Mantena, uma cidade distante, a quarenta quilômetros da Vila de Água Doce. Aconteceu que eu já tinha treze anos e estava de malas prontas para vir embora para Barra do Piraí, onde o meu outro irmão tinha arrumado um emprego de garçom para mim. Eu só aguardava uma carona de caminhão para partir. E foi exatamente nesses dias tristes que surgiu uma carga de café para o Euzébio levar ao Rio e eu fui com ele. Antes passei por Mantena e fui ao hospital despedir-me da minha mãe. Foi tudo muito triste e eu nunca esqueço daquele dia. Minha mãe estava sozinha, branca e magra como sempre, perdida numa enfermaria imensa. Acho que ela adivinhou que eu estava indo embora e pressentiu que nunca mais me veria. Chorou quando me viu —e aquela realmente foi a última vez que nos vimos. Nunca mais vi a dona Francisca com vida.
A visita não podia demorar. Fiquei com ela por aproximadamente meia hora. Conversamos coisas bobas, triviais. Falei para ela que o Juca andava nervoso e não tinha paciência para cuidar de nós, os filhos. Ela já sabia, conhecia bem a “peça rara” e esboçou um leve sorriso. Na hora de despedir dela, a garganta me doeu, tive vontade de chorar. O motorista Euzébio estava esperando, impaciente, para iniciarmos a longa viagem até o Rio de Janeiro. Apoiei-me na cama macia, dei um abraço bobo nela e fui saindo devagar, amarrado, atravessando a longa enfermaria em direção à porta. Embora ela estivesse muito doente, quase morrendo, minha mãe só pensava nos filhos. Na saída ela me disse, para disfarçar a tristeza: “Se você se lembrar, mande um quilo de ”batatinha” para o Vavá, ele gosta muito...”
Não olhei para trás, não tive coragem. Ouvi seus soluços abafados, contidos e tristes, ao longo do interminável corredor. Peguei a minha mala (uma vergonhosa mala de fibra com cantoneiras de metal amarelo), e parti. Fui embora para encarar a nova e incerta vida. Sei que eu devia ter olhado mais uma vez pra ela, acenado com a mão, mas não olhei nem acenei. Até hoje me arrependo disso. A verdade é que nunca mais vi minha mãe com vida. O choro triste e doído da dona Francisca, a “batatinha” do Vavá que nunca lembrei de comprar, jamais me saíram da memória. Ainda hoje, quando sinto cheiro de batatinha frita, lembro daquele dia e choro. Até um dia, mamãe!


Meu Papai Noel

A rua da minha casa era apenas uma viela vermelha de terra batida, onde a criançada brincava pra valer. Corríamos, gritávamos produzindo uma algazarra sem fim —a felicidade era vizível, um adesivo vermelho colado nos rostinhos de cada um. As famílias eram todas numerosas, na maioria das casas havia cinco ou mais filhos. Ainda não havia TV e a festa da meninada se prolongava pela noite, até perto das dez, quando tínhamos que entrar para lavar os pés antes de dormir. Quando ia se aproximando o fim do mês, a meninada ficava ansiosa, esperando pelo “homem misterioso” que vinha sempre numa bicicleta “Peugeot”, de cor preta. A qualquer momento ele poderia passar. Seu Ismael era o seu nome, um homem que nos parecia rico e tinha nome de anjo.
De repente, pontual como um cometa, surgia ele na sua “Peugeot”. Quando chegava, a alegria brotava. Havia uma razão especial para nossa alegria: ele jogava dinheiro para o alto e fazia uma aleluia milionária com notas azuis de um cruzeiro. As cédulas formavam uma nuvem sobre nós, borboleteavam ao vento e pousavam na terra. Nossas mãos pequenas, ansiosas e febris, surgiam de todos os lados e recolhiam a fortuna vinda do céu. O Seu Ismael era o nosso herói, o anjo do fim do mês que representava a bala e o picolé que nós, particularmente nós, jamais ganhávamos do Juca, nosso pobre pai. Seu Ismael era um tipo de Zorro bondoso, mais do que um santo, muito mais!
No Natal daquele ano de 1954 —ô tristeza de vida!—, não tínhamos ganhado nenhum presente do Juca, mas o seu Ismael parece que adivinhava e chegou de surpresa, jogando mais notas para o céu do que seria razoável. O Juca, um homem pobre mas justo apesar de tudo, pai de nove filhos, achou que não estava certo aquilo e interveio. Antecipou-se a nós, recolheu todas as notas e convidou o seu Ismael para entrar e tomar um café. Esperava que, com o café forte, o seu Ismael tomasse ciência da besteira que estava fazendo e aceitasse receber de volta o seu dinheiro (um montão de notas azuis amassadas que recolhera de nós, crianças emburradas).
Bem feito!... Doce e ledo engano do Juca. Era noite de Natal e o coração do seu Ismael estava ainda mais macio do que nunca. Ele viera no lugar do nosso Papai Noel e confirmaria que todo aquele dinheiro era nosso. Nós, que aguardávamos pela decisão favorável, explodimos de alegria. O seu Ismael estava apressado e dizia para a minha mãe: “Como é, Dona Francisca, esse café sai ou não sai?...” Minha mãe não conseguia entender a pressa dele, uma estranha pressa em tomar café e retornar para o tumulto da rua onde rolava a festa dos meninos. Mas tudo ficaria muito claro quando ele disse: “Tenho pressa, Dona Francisca... É Natal e eu ainda preciso distribuir mais dinheiro para a meninada...”
Dava para perceber que o Seu Ismael estava de “pilequinho”, mas continuava generoso como antes. Dizia e ameaçava: “Preciso ir, seu Ferreira, não tente me impedir. As crianças estão me esperando e eu ainda vou jogar mais dinheiro para elas...” E insistia em voz alta: “Como é, Dona Francisca, esse café sai ou não sai?...”
Era um anjo muito teimoso aquele seu Ismael, gostava de verdade das crianças. Quando deixou a casa e voltou pra rua, não só nos devolveu as antigas notas amassadas, como jogou para o alto mais um montão de outras notas azuis, novinhas... Ah, eu e os meus irmãos agora estávamos ricos! Não conseguimos dormir direito naquela noite —a adrenalina era tanta que nos tirava o sono, mas o nosso Natal daquele ano estava garantido! No dia seguinte, depois que a longa noite de emoções acabou, percorremos as vendas da Vila e torramos tudo em picolé, maria-mole, bala de goma, pipoca e guaraná de canudinho.
Até hoje não me esqueço daquele santo que jogou dinheiro para nós e voltou de bicicleta para o Céu. Choramos ao vê-lo indo embora pedalando, flutuando numa carruagem de apenas duas rodas. O Juca, meu pai, sentindo-se talvez o mais pobre e incompetente Papai Noel do planeta, aprovava a nossa alegria mas tinha lágrimas pesadas dançando nos olhos. O coitado do Juca não ganhou nada, tive pena dele, de verdade!
FIM




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