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Humor-->a tropicália escrita -- 17/04/2001 - 13:18 (Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O Legado Antropofágico e a Tropicália Escrita


Será que existe um equivalente literário das propostas do “grupo baiano” composto por Caetano, Gil, Gal, Tom Zé? Creio que, em boa parte, Esse papel acabou sendo desempenhado pela poesia concreta. Os concretistas Haroldo, Augusto e Décio Pignatari encontraram no trabalho dos baianos a intenção de revisão da literatura e da crítica literária brasileira de uma perpectiva semelhante.
As tropicália não incluía, no entanto, muitos escritores “tropicalistas”. Torquato Neto é o único poeta de livro que aparece na capa do disco-manifesto de 1967, junto da “família reunida”. O contexto da época inclui a explosão dos meios audiovisuais, que foram ganhando espaço em detrimento da cultura humanística e literária, enquanto o latim e o francês perdiam espaço para a língua inglesa. As músicas dos compositores baianos se situam nesta época de transição. Alguns escritores surgiram, nos anos 60/70, identificados totalmente ou em parte com a tropicália: Torquato Neto, Waly Salomão, Zé Agrippino de Paula, Paulo Leminski.
No entanto, algumas posturas e atitudes que irão se fazer presentes entre os tropicalistas já haviam sido esboçadas anteriormente. O legado nietzschiano e a mitologia da cultura de massa estão presentes num livro que desejo comentar aqui: Deus da Chuva e da Morte, de Jorge Mautner.
O livro Deus da Chuva e da Morte (Martins Editora, São Paulo, sem data), de Jorge Mautner, antecipa muitas das ambigüidades tropicalistas. Mautner sente alegria em destruir: “estava tudo destruído e é maravilhoso a gente contemplar algo destruído. Os campos estavam queimados e os vegetais haviam morrido e a terra vermelha e brutal se mostrava com orgulho”(Mautner, p.18). Jorge Mautner faz o elogio do rock “dionisíaco”, oscilando entre Jesus e Nietzsche.
Duvido, no entanto, que esse inspire Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, como diz Caetano em Verdade Tropical. É apaixonadamente anti-racionalista, é poético, mas Mautner opunha os beatniks e o rock ao marxismo e nacionalismo. Glauber escolheu estes dois últimos. Mautner tem uma postura exaltada de negação do pai e do patriarcado: “Minha mãe desquitada de meu pai e os dois são criaturas estranhas. Ele, judeu de uma cultura refinadíssima e aristocrata, (e por isto mesmo fraco, e niilista). Minha mãe austríaca de nascimento e eslava de descendência” (Mautner, p.72). Em contraste, Glauber tinha um quê messiânico, falava como um profeta do velho Testamento, guardando algo de patriarcal. O conflito de gerações dos anos 60 se resolve em Jorge Mautner como retomada do irracionalismo, mas ainda numa perspectiva aristocrática, arrogante: eu, que sou atualizado, depois do fracasso da modernização nacional feita a partir do alto, reconheço que o absurdo é a alma brasileira e a minha alma. Ele assina essa “carta” acima com seu nome próprio, Jorge Henrique Mautner, e podemos então supor que esse texto é autobiográfico. O livro Deus da Chuva e da Morte, escrito quando o autor estava por volta dos vinte anos, toma a postura de repudiar a civilização cristã ocidental e sua vertente européia e para mesmo tempo desejar tomá-la como se fose uma cidadela. O rock é o renascimento de Dionísio na América do Norte, prega ele, e as Américas são a esperança desta nova cultura, uma contracultura (embora ele ainda não utilize o termo). O Brasil desgosta-o pela “bondade dos castrados” comunistas, pelo nacionalismo e antiimperialismo que para Mautner são atrasados, mas por outro lado, o Brasil continua parte da América, ou seja, aqui também nascerá uma nova civilização. Ora, a idéia de que a modernidade é uma nova Idade Média e a profecia de uma civilização nos trópicos estão ambas presentes no pensamento do nacionalista católico Plínio Salgado, e ressurgem tresloucadas no livro de Mautner.
Em vários momentos, sua valorização do samba-canção, das baladas e rocks, seu rompimento com o projeto nacional-popular inspirado pelo partido comunista o aproximam de idéias tropicalistas. No entanto, ele possuía uma virulência que o espírito conciliatório dos baianos nunca permitiu, e devido ao fato de que o comunismo privilegia a igualdade em detrimento da liberdade, o “jovem da motocicleta”, fã de James Dean, renega a bandeira vermelha:

O Partido Comunista em vigor é outra coisa que o sonho ou a teatralidade de uma revolução. (...) Eu li o livro de Arthur Koestler ‘O Zero e O Infinito’ e acho que o comunismo é a coisa mais abjeta do mundo, é a morte do indivíduo, é aquilo que Berdiaev diz no seu livro ‘Una Nueva Edad Media’. Leiam! Leiam ‘O Zero e o Infinito’. Eu me enojei, eu chorei ao ver a morte da humanidade. Querem saber a minha posição política? Sou anarquista e niilista! Não o anarquismo idealista de Kropotkin, mas sim o terrorista de Bakunin, o irracional, o pagão, o sexual de Rozanov e Lawrence, queria ser o de Berdiaev! (...). Cuspo no comunismo porque aquilo é a lógica da morte do homem! (...) Berdiaev tem razão! Eles os comunistas, são o perigo maligno, a nova força de Satã que não pode ser combatida pelas forças da história antiga – história na qual muito de nós ainda vivem – mas sim com a força da fé da Nova Idade Média, a nova força de Jesus, o crucificado! (Mautner, p.82)

Mautner entra então na esfera da New Left, é parte de uma geração que é de esquerda mas contesta a razão, as tradições e costumes, e até o comunismo como opressores. Mais adiante ele fala dos beatniks:

E os exércitos da fome e o proletariado que um dia vão chegar ao ponto dos beatniks subiu ao poder. E quando todos possuírem o pão? (...) E Keroauc vai perguntar: -Mautner, você ama a humanidade? E eu direi: -Sim, Keroauc, eu amo a humanidade, e as criancinhas mortas pela fome. (...) O futuro? É história. A esquerda? Vencerá. (Mautner, p.136)

Os beatniks só atingiram o grande público brasileiro na década de 80, e, curiosamente, para Mautner, nos anos 60, pareceu próxima a vitória da esquerda. O “rapaz da motocicleta”, o beatnik brasileiro, sente-se mal defendendo os ricos, mas sente também antipatia dos comunistas, pois vê neles uma ameaça para as liberdades do indíviduo que são o cerne da “revolução dos costumes” de origem norte-americana, à qual ele aderiu. Mautner contou que sua rebeldia começou quando jovem, pois era pobre e freqüentava colégio de ricos... Está em Mautner a aceitação da canção de consumo norte-americana pelo que ela tem de libertário em termos de costumes: mistura Nietzsche e Cristo, assumindo tudo isso como uma força trágica. Tendo puxado mais a Coca-Cola do que Marx, o cabeludo nietzschiano brada:

-A Coca-Cola é uma grande invenção. Nós os sul-americanos não devemos ter raiva dos norte-americanos. Eles nos deram o fabuloso Rock’ n’ Roll que age como um calmante em nossa psique e a Coca-Cola que é o símbolo da nossa classe. (...) Eu acho que falar de política é besteira. O negócio é dançar Rock ‘n ‘Roll, beber Coca-Cola e tudo está bem. Para quê se matar pela humanidade se é mais gostoso beber Coca-Cola e ouvir Rock? (Mautner, p.140)

Em Mautner está claramente explicitada a aposta na vitória norte-americana na Guerra Fria, com profecia da queda do Leste Europeu e do socialismo, e a proposta de sua substituição pela ideologia das multinacionais. Mautner canta o triunfo daquilo que Glauber chamou de “signos liberais de civilizações colonizadoras”. Semelhante defesa do rock fez o roqueiro Renato Russo, no interior do disco Que País é Este (1987), embora sem a eloqüência de Mautner:

Jimmy Page diz que o bom do rock é que não se aprende na escola. Outros atacam: “para ser roqueiro basta pendurar uma guitarra no pescoço e sair por aí, fazendo a música mais primária do mundo.” Ora, mas é este mesmo o espírito da coisa! O ataque continua: “O rock é isso mesmo, um bate-estaca, a coisa mais elementar que existe, mais primitiva, menos inventiva que pode acontecer. O rock não é uma novidade, é uma imposição, é uma ditadura. É um sistema estético com a intenção de embotar a cabeça do jovem. Sim, pois se você fica com aquele bate-estaca o dia inteiro na cabeça, você se esquece da realidade que o cerca, de coisas realmente importantes. Dois apartes aqui. Realmente o rock não pode ser novidade já que é uma forma musical que nasceu em 1955, não tem mais de trinta anos portanto. Bate-estaca ou não, juvenil ou não, preste atenção à letra de “Que País é Este”. Não nos parece coisa de gente que se esqueceu da realidade que a cerca.

Porém, observando Que País é Este, notamos que nela há o verso “Nas favelas/no Senado/ sujeira para todo lado”, em que a corrupção dos poderosos é confundida com a miséria dos pobres, culminando na exclamação: “que país é este!” dita originalmente por Francelino Pereira, então deputado, como uma oposição consentida no auge do ufanismo da era Médici. A canção trata da denúncia da realidade brasileira, mas de um ponto de vista que não pode ser o dos pobres. Ocorre uma transformação, e, do ufanismo que encobre os problemas reais, passamos nos anos 80 à autodepreciação sem fundamento. Suponho que isso se deve ao fato de que o regime militar era uma tecnocracia em composição com os militares nacionalistas, e a democracia capitalista a partir de 85 consolidou uma tecnocracia transnacionalizada. Posteriormente, a partir de 1989, Renato Russo assumiu-se gay e adotou posições anarquistas que o aproximavam das lutas de minorias nos moldes yankees. Essa esquerda inofensiva representaria simplesmente a burguesia em processo de evolução. Essa evolução consiste, a partir dos anos 60, da adoção da cultura de massa e das formas culturais de origem norte-americana. Em termos de pensamento, é a volta de Heidegger e de Nietzsche, que o próprio Mautner anuncia.
Em Deus da Chuva e da Morte, essa posição está clara, Mautner se coloca como simpático da esquerda americana, mas anticomunista. Ele encarna um profeta maluco no final do livro:

E foi assim que aconteceu tudo: houve a revolução comunista e eles apesar da intenção da bondade e da paz e da felicidade para os pobres fizeram um mau e burocrático e estúpido governo. E foi aí que veio a reação comandada por um aventureiro chamado Napoleão. Este Napoleão ajudado pelo dinheiro dos capitalistas e pelo entusiasmo dos egoístas e pequenos-burgueses venceu, combateu os comunas e derrotou-os. (...) Depois que Napoleão venceu ele foi assassinado, foi morto e reinou então a anarquia e o caos que reinam até agora e é deste caos e anarquia que os artistas como eu gostam! Viva! E tudo está uma bagunça e um furacão! Os ricos que se haviam exilado e fugido para os USA voltaram contentes e orgulhosos (...). Voltaram com o orgulho daqueles que sempre vencem, voltaram petulantes, intragáveis, a sociedade dourada! Mas com eles estava preservada a minha liberdade individual caótica! E isto é o mais precioso! Os beatniks aumentaram de número e viviam como queriam sem se incomodar com a sociedade dourada que voltou a imperar, a governar. E a sociedade dourada vivia sem se incomodar com os beatniks. (...) Democracia! Minha querida democracia capitalista! Minha deusa preservadora da minha liberdade, do meu egoísmo artístico, da minha vitalidade! Viva! O resto é conversa fiada e bondade de castrados. (MAUTNER, p. 426)

Ao mesmo tempo em que Mautner aceita a cultura de massa que triunfa através do desabrochar dos meios de comunicação, adota uma posição individualista, de forma a se transformar, pelo desejo de se distinguir da massa de seus compatriotas brasileiros, num esnobismo. Mautner, como depois os tropicalistas, proclama estar ligado ao circuito do grande capital, tendo acesso à moda e à vanguarda internacionais, e adere aos processos triunfantes de seu tempo com a fúria de quem faz uma revolução. No lugar do materialismo dialético, propõe um misticismo que caucione a vida social, e se posta à espera de uma nova revelação, aguardando a manifestação do sagrado no cotidiano:

E veio repentinamente uma luz estranha. Era uma luz que vinha do céu e esta luz se movia e era um disco-voador! Sim, Jorge viu um disco-voador e o disco-voador também já é uma das partes deste NOVO MISTÉRIO QUE VIRÁ, que surgirá para salvar a civilização Ocidental e que será uma NOVA RELIGIAO MÍSTICA SEXUAL PAGÃ CRISTÃ LOUCA E NOVA, NOVA! (...) Jorge vira o disco e o disco era um sinal, o sinal concreto de que o misticismo e o mistério já estavam existindo. (MAUTNER, p.429)

O narrador se deleita com o devir do caos: “Caos! Caos! Agora és tu quem manda em tudo. (...) Mas eu e meus amigos conseguimos fazer desta revolução uma revolução diferente. Ela transformou-se numa revolução do caos!” (Mautner, p.19). Ele apresenta seguidamente imagens de destruição e morte, das quais destaco uma: “É que nem a morte de um peixe: fria, sem gritos, ancestral” (Mautner, p.18). Como se vê no início dos anos 60, Mautner já era um hippie, ainda que prefira o termo beatnik. É um exemplo do que há de mais próximo, no campo literário, de uma “tropicália escrita”, e que possibilita o mapeamento de suas posições estéticas e políticas.
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