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Discursos-->Prometeu alcoolizado -- 11/10/2002 - 18:28 (Darlan Zurc) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A idade de pouco mais de vinte anos e a escassa profundidade da minha experiência com bebidas já bastariam para me tornar incapaz de estar agora a lhes falar de um tema tão espinhoso, tão significativo e tão exigente, acreditem, de um razoável nível de sobriedade. Por outro lado — até para justificar minha própria presença aqui —, vou me valer do mesmo artifício usado pelo pacifista indiano Mahatma Gandhi quando, conta-se, uma mãe com seu filho o procurou para que ele fizesse a criança parar de comer açúcar. Ele os atendeu calado e, pouco depois, pediu que ambos retornassem nos quinze dias. Transcorrido tal período, Gandhi recebe os dois novamente, olhou bem o fundo dos olhos do menino, e disse: “Pare de comer açúcar!”. Espantada com o exótico método gandhiano de tratamento, a mãe perguntou a ele se não teria sido mais fácil fazer isto quinze dias antes, no dia em que vieram. Gandhi então respondeu: “Sim, mas naquela ocasião eu também estava comendo açúcar”. Por isso, venho a fim de olhar nos seus olhos e sugerir apenas que parem com a dependência do álcool — o qual, ironicamente, deriva das mesmas fontes do açúcar.

Na realidade, estou incumbido aqui para, numa perspectiva nova, reforçar as evidentes conclusões negativas das ciências médicas a respeito do uso excessivo de bebidas. No entanto, será a partir de um posto de observação sem ser o dos especialistas nem o do lugar-comum. Faço-o mediante um ponto que qualquer um dos senhores pode galgar sem dificuldades e de onde pode tirar lições valiosas. E qual horizonte é este que um jovem como eu, capaz malmente de resolver seus problemas pessoais, agora aponta? É a estória do Prometeu acorrentado. Segundo a mitologia grega, Prometeu — titã ou semideus, irmão de Atlas e criador da humanidade — era filho dos deuses Japeto e Climene. Arredio e corajoso, ele desobedecera às ordens celestiais dando aos homens uma das coisas que havia de mais sagrado nos céus olímpicos: o fogo. Zeus (Júpiter, para os romanos), o maior de todos os deuses e, obviamente, o maior de todos os mortais, guardião supremo do Olimpo — local de morada das divindades —, castiga-o, mandando o deus Mercúrio amarrá-lo — daí se falar em acorrentado — no Monte Cáucaso, onde uma águia devorará rotineiramente seu fígado, que, por sua vez, estará sempre se reconstituindo e sendo tragado em direção ao infinito.

A posse do fogo é, certamente, um dos maiores feitos da história mundial. Escrevo “posse” porque não bastaria a nós pobres mortais a pura e simples existência do fogo, a qual por si só poderia se manifestar espontaneamente numa folhagem seca de uma tarde tropical. A condição que interessou ao homem, até por razões de sobrevivência, foi o controle e a liberdade de produzi-lo quando fosse preciso. Pois bem. Prometeu fez o que lhe pareceu conveniente, contudo, receberia um dos mais inconvenientes castigos.

É verdade de fácil comprovação que se o fogo foi e é um imperativo para todos desta sala e o restante da humanidade, o álcool como iguaria — comparativamente — chega a ser um capricho, uma luxúria, um acréscimo qualquer da nossa libido. Estabelecida esta distinção entre o necessário (o fogo) e o acessório (a bebida), conclui-se que este último é mais um apêndice na nossa vida rotineira — chegando mesmo a ser sua negação — e é bem diferente da imperiosa razão de ser do primeiro. E por tocar no assunto, confesso sinceramente aos senhores que não sei por que raios surgiu a expressão “estar de fogo”, mas desconfio de ter surgido de qualquer motivação no mundo menos o Prometeu que lhes apresento.

O contato dos nossos ancestrais até os homens de hoje com o álcool pode ter partido de uma curiosidade e audácia latentes, que afligem a nós e a tantos Prometeus que existam, entretanto, são este desejo e a sua continuação fruto de um direito (prazeroso) do que de um dever (estafante por natureza). Uma vez satisfeita tal curiosidade, o homem que a alimenta continuamente (ou seja, aquele que transforma o desejado em vício) — e aqui varia bastante para cada um a natureza de tal recorrência — inverte, inconscientemente na maioria das vezes, uma das lógicas mais elementares que nem é desconhecida por uma criança de dez anos: o sentido de proporção das coisas (a prova indiscutível de que a inteligência existe, segundo Aristóteles).

Até onde eu conheço, muito raramente (mas muito mesmo) alguém se vicia com fogo. No outro caso, o álcool cria mecanismos profundos de ligação com o iniciante, fazendo-o inverter a obviedade entre o que é capricho e o que é contingência, transformando a si próprio em dependente e em sacerdote catedrático de Baco, o deus do vinho. Sim, senhores, a simbologia da bebida é e era tão marcante que na Grécia Antiga onde brotaram os estóicos brotou igualmente o endeusamento do vinho. Baco (Dioniso, para os gregos) surgiu como seu guardião, o mestre de honra. Se me permitem dizer, os alcoólatras seriam os seus discípulos mais cegos, fundamentalistas e intransigentes.

A transformação do prazer pela bebida em fardo aparece em razão de motivações psicológicas que escapam do meu conhecimento e, para minha própria sorte, não foi para isso que vim. A princípio, tudo leva a crer que a exacerbação do desejo transporta a bebida à categoria de criatura íntima ou parte integrante e afetuosa da nossa existência. Assim, sua presença — que teoricamente nada tem com o sentimento de companhia que nós sentimos, por exemplo, pela amada — passa à condição de hábito. Ao final de tudo, o vício se constituirá numa mistura confusa entre carência e consumação, acompanhada às vezes de um sentimento esporádico de repulsa.

Para o início do estágio de dependência química, inicia-se também — igualzinho na metáfora do Prometeu — o acorrentamento do sujeito na montanha da sua e da nossa trajetória pessoal. E, como numa insistência alucinante, aproveitamos a bela e transitória paisagem lá de cima do monte: vemos o Sol numa intensidade não muito comum, parecemos encontrar maior elegância nas folhas das árvores, nos ventos uivantes e nas assimetrias das pedras, temos a sensação de estar nos aproximando das nuvens como o Saint-Exupéry de O vôo noturno, ficamos leves, livres, enfim, soltos, desinibidos e corajosos. Ou o inverso disso tudo, dependendo do caso. Ilusão, tolice. Em seguida — de repente e pouco mais que de repente —, surge uma mancha no céu. Aproxima-se mais e mais. A luz denuncia seus contornos. É uma águia. E logo depois descobrimos, pela inusitada pedagogia da dor, o que ela pretende... E o que ela quer afinal? O nosso fígado. Todos sabem que em matéria de fígado o alcoólatra se reduz a pó.

Muitos podem se opor a esta minha idéia sugerindo que as bebidas, de um modo geral, e certas drogas possuem um valor alucinógeno capaz de abrir outras percepções do real além daquelas próprias de um homem comum e abstêmio. Só que a alucinação é filha do desequilíbrio mental, do devaneio. Como pode a um alucinado (na prática um alienado, um sujeito alheio ao mundo) obter o entendimento de instâncias mais sutis e profundas da realidade? Naturalmente, não pode. Dessa forma, nem de longe me ocorre aceitar — e vejo inclusive como insanidade — o que escreveu um dia, segundo o grande filósofo espanhol José Ortega y Gasset, o historiador e crítico literário francês Hippolyte Adolphe Taine: “a percepção normal não é senão uma alucinação continuada e coletiva” (*).

Decerto, não sou eu o solucionador de seus males e mágoas. Venho aqui somente para reelaborar uma alegoria referente ao desassossego que lhes atormenta. Nada mais faço que tornar evidente o que para os senhores pode ser inteligível. Estou a me comportar — talvez sem sucesso — como mais um daqueles estrategistas militares que lhes apontam os inimigos sem poder entrar diretamente no campo de batalha. A bebida permite, para mim e para os presentes, algum aconchego e prazer, todavia, é ela também a antecipação avassaladora do infortúnio e da penúria. É tanto assim que o álcool causa um preocupante desgaste físico e emocional, destrói núcleos familiares consolidados — ou acelera o que já estava desgastado —, em sua maioria corrompe amizades frutíferas e degenera outros tipos de laço afetivo. Há aqui uma contradição evidente e inescapável: a bebida que nos beija é a mesma que nos escarra. Ainda que destaquemos os chamados bebedores sociais (nos quais me incluo), não é esta ponta menor do iceberg que nos interessa neste momento. O problema é realmente do iceberg inteiro.

O viciado em bebidas alcoólicas é todo aquele que criou para si (a contragosto, suponho eu) uma complexa rede de dependência química e psicológica. Ele não sabe ao certo por que começou e nem se é possível pôr fim em tal dependência. Foi brincar com fogo... Zeus não perdoa. O alcoólatra tem uma vaga imagem da relação causa-efeito do seu consumo desenfreado, e, o que é curiosíssimo, luta — quando realmente luta, a exemplo dos senhores — contra um inimigo poderoso e que não permite ser destruído e sim aturado. Inclusive, a influência psíquica causada pelo vício não se extingue completamente, reservando para o sujeito a escolha do tipo de convívio que terá com isso. E qual é esse inimigo, onde o vício se hospeda? Pode parecer heresia de um rapaz atrevido, porém, o maior inimigo de um alcoólatra é, sem sombra de dúvida, ele mesmo. Até por que, a dependência não é sequer um vírus ou um ser unicelular, é um estado de espírito doentio, e ele, o viciado, costuma combater dentro de si o que também deseja. Portanto ele acaba guerreando consigo, dele para ele.

Após o nosso acorrentamento no monte, através da bebida, vem o tormento imediato da águia, sem, contudo, vir o salvador e forte Hércules. No mito de Prometeu, o deus Hércules acaba salvando-o. Tudo bem, o final é feliz, etc., mas não é em toda esquina da vida que a realidade imita a ficção. Parece chato dizer, no entanto, os fatos são, de hábito, mais duros e amargos: não há Deus ou um Hércules, se existisse, que possa sair do Olimpo e lhes ajudar isoladamente. O único e maior Hércules que existe mora em suas consciências. E, sobre isso, vai aqui um adendo à frase do filósofo francês Jean-Paul Sartre: o inferno não são os outros, somos nós.

______________________________
(*) ORTEGA Y GASSET, J. Ensaios sôbre o amor. Trad. Luís W. Vita. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1960, p. 81.



Minipalestra apresentada dia 19 de maio de 2002 para os Alcoólicos Anônimos Nova Vida, da cidade de Irará (BA).


Nota de D.Z. (27-12-2003): Revendo meus textos, antigos ou recentes, volta e meia encontro algum erro. Parece carma. O meu consolo é que, de modo geral, qualquer autor não costuma fazer a melhor revisão dos seus próprios textos. Apesar disso, não posso fugir da necessidade de apresentar idéias acompanhadas de uma retidão gramatical, o chamado padrão culto da língua. Nesta palestra cometi o deslize de misturar pronome de tratamento (senhor) com pronome reto e oblíquo da 2a. pessoa do plural (vós e vos). E em tempo já fiz os reparos devidos, sendo esta acima a versão corrigida. Embora eu estivesse me dirigindo aos ouvintes, e a segunda pessoa (singular ou plural) é aquela com quem se fala, o português manda adequar o discurso, obrigando-nos a usar pronome de tratamento — seja ele qual for — com terceira pessoa (também singular ou plural). Não é muito lógico, mas é assim que deve ser.





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