Há um forte cheiro das flores que chegam ao casarão. No salão de refeições do sobrado os móveis são retirados e um altar é preparado atrás de uma grande mesa, ainda vazia, mas já com os castiçais à sua volta. Velas apagadas. Só gente da casa ali trabalhando, enquanto no andar de cima um seleto grupo vestido para a ocasião abre passagem para a comitiva da igreja, o pároco, coroinhas e sacristão, todos ordenados em preto e branco, o paramento fúnebre.
O grande quarto do casal é esvaziado, e apenas filhos e a esposa permanecem. Depois de abençoados, saem todos, menos o padre. O senhor da casa vai se confessar pela última vez. Conta todos os pecados e reconhece a paternidade de um filho da escrava octogenária, que está no andar de baixo, trabalhando na cozinha, com mais de uma dezena de pessoas.
Acabada a confissão entram três testemunhas, mais um tabelião e dois funcionários do cartório. Todas as portas e janelas são abertas, como manda a lei para as cerimónias públicas. Fora da casa todos os empregados e escravos são postos em oração, comandada por irmãs-de-maria. É feito então o testamento do velho senhor, pela palavra do padre, e anuência silenciosa do morimbundo, que apenas acena quando o religioso fala em seu nome.
Segue-se então outra cerimónia, a da extrema unção, agora na presença de toda família e alguns amigos. Pouco depois o homem morre. Em seguida em outra sala do andar de baixo o testamento é lido. Parte da herança fica para a Igreja, em troca da vaga no céu, pela remissão dos pecados, ressurreição da carne e vida eterna, habilmente negociados momentos antes, amém.
O filho bastardo recebe sobrenome, torna-se herdeiro de propriedades e de vaga no jazigo de mármore da família. Herda também escravos, entre eles a sua mãe. Que não é alforriada, e assim morre esquecida meses depois, enterrada numa cova rasa. Aquém.
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