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Contos-->A NAVALHA DO AFOGADO -- 31/07/2006 - 07:49 (José J Serpa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
CONTOS DO LAJEDO - A NAVALHA DO AFOGADO


Era a primeira vez que Américo ia à Vila — o maior acontecimento da sua vida de criança. Ir à Vila para um menino do Lajedo era uma espécie de ritual de iniciação. Atravessar os matos do sul da Ilha, passar o Rochão das Feiticeiras, ver a Cruz de Pedra, o Rochão Bichinho, descer à Ribeira do Incharro, abrir e fechar a Cancela da Vila pela primeira vez... Meu Deus, com que imensa atenção o Américo ouvia as narrativas dos grandes quando contavam episódios de viagens à Vila... Aqueles nomes assumiam, na sua imaginação infantil, proporções fantásticas, cores, sons, formas indescritíveis.
—E viu alguma feiticeira? E tem muitos bichinhos no Rochão Bichinho? E a Cruz de Pedra é grande? Do tamanho do meu Pai? E a Boca da Baleia está aberta?
Os grandes riam da inocência das perguntas do Américo:
—Deixa, rapaz. Quando fores maior, o teu pai leva-te à Vila e já vês isso tudo...
Afinal não era o pai que o ia levar à vila pela primeira vez. Ia ser a mãe. O recado para irem levantar umas sacas de roupa da américa veio por uma vizinha que fora às Lajes buscar as suas.
—Oh... são bem três ou quatro sacas, Maria. E bem cheias que as vi eu quando fui buscar as minhas. A tua gente lá da América mandou-te coisa asseada, desta vez...
—Pois louvado seja Deus, que faz muita falta cá a roupinha. Inda ontem este encharcou-se todo no poço, e teve de ficar em cuecas enquanto a roupa secou ao sol. Hei-de ir amanhã buscá-las.
Este era o Américo. O irmão mais velho, o José, tinha-lhe feito um barco com a navalha americana, presente dum tio que regressara às Flores recentemente. O José era muito habilidoso e o barquinho ficara um mimo. Américo tinha brincado com o barco toda a manhã no poço do Gortão, a navegar no mar alto e a carregar pedrinhas de uma margem para a outra. Fazia-lhe ondas com a mãos para ver se o barquinho se aguentava bem no mar bravo... O resultado foi a encharcadela de que a mãe falara à vizinha.
—Oh, esta roupinha vai dar muito jeito agora... Deus lhes pague... Que eles lá na América bem podem ir mandando que a gente precisa muito, e eles lá...
—Aquilo lá é uma fartura, Maria. Há-de vir ver a minha. Saias, blusas, calças dangrim... uns alvaroses bem novos...
—Há-de se ir às Lajes amanhã, buscar...
—Eu também quero ir, eu também quero ir —choramingou o Américo a puxar pelas saias da mãe— eu ainda nunca fui às Lajes...
—Não sei... Pai é que há-de dizer... Ele amanhã vai prà Costa, parece-me...
O pai disse que sim. Levavam a burra de ti Fernando, porque ele ia prà Costa apanhar inhames e tinha que levar o cavalo:
—José vai comigo aos inhames. Américo pode ir às Lajes. Quando se cansar põe-no em cima da burra. É irem cedo que cedo é que se começa o dia.
E ficou assim dado o governo para o dia seguinte. Mas, logo depois da ceia, os planos foram alterados. Tia Elvira, uma irmã do pai, veio fazer serão e disse que estava pensando em ir às lapas no dia seguinte:
—O mar vai estar bom. Também queres ir, José?
—Meu Pai já disse que a gente ia prà Costa amanhã. Aos inhames...
—Bom, mas isso pode-se arranjar —considerou o pai que gostava muito daquela sua irmã Elvira— Américo vai prà Costa e José pode ir mais a tia ...
Américo, ao ver desfazer-se o sonho da sua primeira ida às Lajes, teve uma birra tremenda. Bateu o pé, berrou, acabou por levar umas nalgadas, e foi-se acocorar a um canto da cozinha a soluçar. O José, sentindo-se de certo modo culpado pelo desgosto da criança, acocorou-se em frente dele:
—Não chores. Vais às Lajes outro dia. Deixa. Olha, eu dou-te a minha navalha pra levares prà Costa. Toma...
Ao ver alvejar, na mão do irmão, o cabo da navalha, branquinho e liso, uma navalha de homem grande, com cabo de dente de baleia, Américo calou-se. Toda a sua frustração se diluiu como por encanto.
—E posso ficar com ela todo o dia? Mesmo todo?
—Mas olha não ma percas. Vê lá!... Vou pôr-lhe um cordão na argola... anda com ela amarrada aos suspensórios... aqui na casa do botão... eu vou amarrá-la, espera...

**********

Nessa noite o Américo sonhou que tinha perdido a navalha. Tinha-lhe caído na água da ribeira do Incharro. Ele via-a mas não lhe podia chegar... Não podia andar. Fazia um esforço enorme e não conseguia mexer as pernas. A burrinha de ti Fernando e a mãe, completamente alheias à sua aflição, iam-se afastando... ficando longe, longe, caminhando sempre. Ele bradava, chamava a mãe, mas não saía nenhum som da sua boca. Que agonia! Era a navalha ali a brilhar debaixo da água, a mãe cada vez mais longe, e ele sem poder... nada, nem andar nem gritar... Mas finalmente, num esforço imenso, desesperado, conseguiu dar um berro enorme que atroou naquele horrível pesadelo como um trovão, e o acordou num gemido de angústia imensa.
A navalha tinha-a bem segura na mão...

**********

O dia seguinte amanheceu radiante e fresco. Os galos cantavam em despiques de dois ou três, os passarinhos mais pequenos chilreavam nos bardos de faia-do-norte e de incensos. Os melros pretos saltavam ao caminho a dar os bons-dias a quem passava, as vacas mugiam desejosas da ordenha... E Américo, escarranchado à frente do pai, na sela, via, cheirava e ouvia tudo aquilo das alturas do possante cavalo que os levava à Costa. Ao atravessar a ribeira do Campanário, a navalha escorregou-lhe da mão e caiu numa pocinha de água límpida. O pai, suspendendo-o pelas mãos, desceu-o do cavalo, e içou-o pelo mesmo modo depois dele ter apanhado a navalha, e recordado com um ligeiro arrepio de medo, o sono que tivera:
—Amarra-se e nunca mais se tira de lá. Deixa ver —e o pai atou-lhe o cordão da navalha à casa do botão dos suspensórios— assim... agora já não cai mais.
E enquanto o pai trabalhou toda a manhã a arrancar os inhames, a cortar-lhe a copa e as raízes, o Américo, de navalha em punho, deu asas à sua imaginação. De cepa de cana-roca, talhou bonecos, vacas, barcos... até fez uma rodinha que guarneceu, em toda a volta, com umas palhetas feitas de bocadinhos de cana para fazer uma azenha...
—Não te cortes —acautelava-o o pai— vê lá... essa cana corta como vidro...
Mas o Américo era mesmo jeitoso de mãos e não se cortou... Pôs um eixo na azenhazinha e foi experimentá-la na levada de água que ali passava para o moinho.
—Pai, a minha roda anda!
—Tá bom... Não desamarres a navalha que a perdes.
—Não. Está aqui bem presa... Jzé hoje foi bom pra mim... emprestou-me a sua navalha... É uma navalha boa, não é, Pai?
—É. Veio da América. Quando fores grande, hás-de ter uma também.
E o Américo sentiu-se repassado por uma imensa onda de ternura... Poisou a rodinha ao lado da levada de água e aproximou-se do pai com vontade de lhe dar um beijo... mas ao chegar junto dele acobardou-se e disse apenas:
—A navalha fechou-se e eu não a posso abrir...
—Deixa ver...
E o pai, depois de limpar as mãos a uma saca de serapilheira, abriu-lhe a navalha:
—Toma, e não te cortes.
Américo voltou à levada e pôs-se a arquitectar maneira de fixar a sua azenha na levada para a poder deixar lá sempre a moer... foi então que a tragédia os atingiu em cheio...

**********

Dois rapazes, o António Lopes e o José de ti Fernando, aos brados e às carreiras, desciam a encosta que dava para o olheiro de inhames do Américo:
—Ó Ti Jzé, ó Ti Jzé venha pra casa! O seu Jzé caiu ao mar! No Parantão... andava às lapas... escorregou e agora ninguém o acha...
O pai do Américo ficou, por um momento, inteiramente imóvel com a faca numa mão e um inhame na outra. Américo olhou alternadamente para os dois mensageiros de desgraça e para o pai, incapaz de apreender também toda a enormidade da terrível tragédia... Mas depois viu o pai pôr-se em pé dum salto como se tivesse sido mordido por um bicho invisível e correr, aos brados, em círculos fechados, à volta do monte de inhames que já tinha arranjado...
—A culpa foi minha, toda minha. Eu é que te dei licença para ires às lapas, filho desgraçado. Oh, José da minha alma que fui eu que te matei... Oh, filho que te perdi pra sempre... maldito mar que mo levaste... Lapas malditas
A cena era horrível. O homem, louco de desespero, arrepanhou com ambas as mãos a camisola que lhe cobria o peito e chorou dolorosamente. Depois pôs-se de joelhos em terra e, oscilando o tronco para trás e para diante, apertava o peito com os punhos fechados como se quisesse conter nele o coração que lhe queria saltar. Américo ainda confuso, sem bem compreender o que se passava, correu para o pai, transido de medo, os olhos muito abertos, lavado em lágrimas... O pai abraçou-o muito apertado ao peito e, sempre de joelhos, continuou a oscilar descontroladamente:
—Ai, Américo, perdeu-se o nosso José. O mar levou-o! Maldito! Perdeste o teu irmão... Desgraçado filho... Desgraçado! Desgraçado!... E a culpa foi minha... Só minha!
A criança, que sufocava apertada nos braços do pai, libertou-se deles, ajoelhou na terra em frente dele e, chorando copiosamente estendeu-lhe as mãozinhas muito juntas, a tremer violentamente:
—Não, Pai, não... Não chore... não. Não chore mais, Pai, que eu morro. Olhe é para si... só para si... tome.
E, nas suas mãos molhadas de lágrimas e sujas do barro da levada, brilhava a navalha do afogado.
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