Casal em dificuldades
Já passavam das seis da tarde de sábado, quando Regina fala com Ronaldo das necessidades de ir ao supermercado fazer as compras da semana. Após muita reclamação, e não era para menos, Ronaldo estava cansado da pelada que acabara de fazer com seus amigos e de uma exausta semana de trabalho. Regina por sua vez tinha cuidado dos meninos e lavado a roupa da casa, e também tivera uma semana de dupla jornada. Apesar das discussões, Ronaldo concorda em fazer a tarefa de marido e pai.
Lembra, no entanto que a gasolina do carro está na reserva e o dinheiro é pouco. Mas lá se vão os dois. Dois não, quatro. Afinal não tinham com quem deixar as crianças. Eles brigam e choram no banco de trás. Regina grita e Ronaldo dirige um velho opala beberrão.
Na chegada ao supermercado, o estacionamento está cheio, mas com jeitinho aparece uma vaga espremida. Ronaldo estaciona. Todos descem e disputam um carrinho com outros clientes. Os meninos vão correndo na frente. Regina torna a gritar para que as crianças se comportassem.
Regina dita as necessidades e Ronaldo controla o bolso. Ela precisa comprar quase tudo, do feijão e arroz ao papel higiênico e sabão em pó. Ele não pode passar pela gôndola de cervejas e vodka. Os meninos pedem biscoitos e iogurte. O carrinho vai enchendo e também acabando com a paciência de Regina e Ronaldo. E ainda faltam o shampoo e alguns cremes para o cabelo e o corpo. O carrinho está cheio e também Ronaldo, que briga mais uma vez com Regina por ela gastar demais. Enfrentam a fila do caixa, pagam com cheque pré e saem.
Na volta ao carro, mais problemas. O velho opala não pega por falta de gasolina.
Ronaldo quase explode. Regina fala um palavrão e os meninos choram novamente. O tumulto está formado. Para resolver o problema, as crianças ficam no carro com Regina, aguardando Ronaldo ir até o posto mais próximo e trazer um pouco de combustível. O dinheiro curto, posto longe, lá vai o Ronaldo a pé. No caminho para num bar para arranjar uma vasilha Pet (garrafa de plástico), aproveita e toma uma. Chega ao posto, compra a gasolina e na volta toma mais uma. Todos estão irritados. A briga toma novas proporções. Insultos de ambas as partes.
Ao chegar em casa, descarregam o carro, colocam as crianças já dormindo em suas respectivas camas e continuam brigando. Essa não era a primeira, mas poderia ser a ultima briga, pensa o casal. Afinal, elas se repetiam e eram cada vez piores.
Regina vai dormir no quarto das crianças, junto do filho menor e Ronaldo no quarto do casal. Ronaldo liga a TV para ver o jogo do flamengo já em andamento, e pra piorar o Fla está perdendo. Tudo está no fim, pensa, ele de um lado e ela do outro.
Regina está decidida a ir para a casa da mãe com as crianças, e Ronaldo pensa o pior. Desliga a TV, vai na cozinha, toma mais algumas cachaças, vai ao banheiro, volta para o quarto, apaga a luz e pensa de tudo. Ir embora, se matar ou matar Regina, pois ela é culpada de tudo. Isso não é a primeira vez que passa pela cabeça de Ronaldo.
Todos dormem. Na manha de domingo, bem cedinho, Ronaldo acorda, se levanta, enquanto Regina e os meninos ainda dormem. Ele vai ao banheiro, faz xixi, escova os dentes e pensa o que vai fazer. Afinal, eles brigaram muito. Caminha até a cozinha, toma um resto de café frio que estava na garrafa térmica, acende um cigarro, vai até o quarto das crianças, abre a porta devagarzinho. Regina e eles ainda estão dormindo.
Ronaldo volta à cozinha e pega na gaveta de talheres uma faca e uma pedra de amolar. Pensativo, senta-se à porta e com raro cuidado amola a faca. Sem pressa, leva a lâmina brilhante de um lado para o outro. Vira a pedra, e torna a afiar a faca. O rádio está ligado baixinho e ele ouve as ultimas notícias. Acende mais um cigarro, enquanto caprichosamente afia a faca. Agora ele corta um limão, coloca vodka e gelo e saboreia a bebida, ainda pensativo. A faca continua em sua mão sendo amolada. Ronaldo coloca a faca sobre a banca da pia, sai sem fazer barulho, vai a uma banca de jornais, compra a edição de domingo e volta olhando as manchetes principais. Deixa o jornal ainda arrumado sobre a mesa e volta a amolar a faca.
Já são dez horas da manha. Agora, Ronaldo levando a faca na mão, abre a porta do quarto das crianças, vagarosamente e em silencio, chega próximo a Regina, inclina-se sobre ela e diz: acorda amor! Já são dez horas! Eu já fiz o café, comprei o jornal, separei as picanhas e a lingüiça, temperei o coração de galinha das crianças e fiz o molho a campanha.
- Eu esqueci de contar: O flamengo virou o jogo, a cerveja já estava gelada, Ronaldo já havia ligado para os amigos do casal, convidando pra “churrascada” e o som tocava “Amada Amante” com Roberto Carlos.
Essa é a vida de um casal brasileiro (nem sempre da periferia), que amam e discutem para tornar a amar. São erros e acertos, é o cotidiano da vida de um casal trabalhador.
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