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Contos-->Contos do Lajedo - Naufráaagos!!! -- 01/07/2006 - 19:00 (José J Serpa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Naufráaagos!

O grito foi lançado do patamar de pedra da última casa alpendrada lá para as alturas da Margaça ou da Fornalha, a meio da encosta do Pico Faxial, por onde se alcandora a pitoresca freguesia do Lajedo. E foi repetido do patamar de outras casas que se aninhavam cada vez mais abaixo na encosta... E cada grito de alarme foi lançado por uma voz de mulher e repetido, acto contínuo, por outra e outra como se fossem ecos umas das outras. Naufráaagos!... Naufráaagos!
Só muito mais tarde, depois de passada a crise, é que se soube o que é que tinha motivado a primeira mulher a lançar o alarme. Na aflição do momento, ninguém pedia explicações. As mulheres e as crianças largavam o que tinham na mão e corriam encosta a baixo: naufráaagos, naufráaagos. Os homens largavam tudo também. Um que estava lavrando ainda no Cerrado de Cima desencangou os bois à pressa e deixou-os soltos para acorrer também ao adro da Igreja, cá em baixo, no sopé da ladeira. No Pau Cerrado, a moça de ti João Frisado, a Etelvina, largou a vaca em meia ordenha e pernas pra que vos quero.... Os sinos já tocavam a rebate, angustiados: dlin-dlão, dlin-dlão, dlin-dlão... Corria gente também do Campanário alarmados pelos sinos que ressoavam em eco repetido duas vezes pelo enorme esporão rochoso do Pináculo. Os mais atrasados vinham ainda a correr encosta abaixo quando alguém gritou:
—P´ra Cima-da-Fonte! P´ra Cima-da-Fonte.
E, num repente, como um bando de pombos que levanta em sincronia e voa na mesma direcção o grupo de gente que se tinha formado à porta da Igreja arrancou para o local indicado. Aqueles que ainda corriam encosta abaixo, viraram na mesma direcção, sempre correndo, saltando paredes, atravessando pastos e cerrados... As crianças corriam à frente seguidas dos homens mais novos, das moças e das mulheres jovens... sempre tão recatas, mas agora sem a mínima inibição a arregaçar as saias para galgar paredes e valados de pernas ao léu, como se nada fosse. Os cães acompanhavam os donos e juntavam os seus latidos aos gritos e brados do povo.
Naufráaagos! Naufráaagos!
Mal se distinguiam vozes individuais acima do alarido geral. Depois de contornar o Outeiro da Terça, a Etelvina alcançou ti Francisco Rocha que ia mais devagar nas suas pernas trôpegas:
—Nã corras tanto, Etelvina. A vaca ficou c´os tetos a pingar duma banda?
—Nã faz mal. Falta os de trás, mas eu já vou acabar de a ordenhar. Nã morre pela espera, olha lá... Ensi despache-se, Ti Francisco, senão nã chega lá.
—Não que eu já nã posso andar às carreiras... e também nã lhes faço bem nenhum... é só p´ra não os deixar fazer burrices que ei lá vou. Quem lhes há-de acudir há-de ser os moços que são novos e valentes. Ei já nã posso c´uma gata po rabo.
Etelvina avagou e foi acompanhando o velho.
Quando o regedor e a Etelvina chegaram a Cima-da-Fonte, já a freguesia estava lá em peso. Já tinham acendido uma fogueira. As crianças andavam por combros e valados a ajuntar queirós secas e gravetos para atiçar o lume e todos falavam ao mesmo tempo, gesticulavam, apontavam...
—Olhe, Ti Francisco, lá estão eles. Lá fora... Isto vai anoitecer nã tarda e a gente já foi acendendo a fogueira. Agora tem de se acudir àquela gente. Eu já arranjei campanha e vamos botar uma lancha ao mar. Estão por fora dos Calhaus da Muda, vê? Aquele pontinho preto? Há-de ser uma jangada. Donde é que vem aquela gente?
—Isto foi navio que se afundou aí p´ra fora, no mar alto.
—Nã sei, mas a gente vai-lhes acudir. Vamos, rapazes.
—Espera, José, o mar está de ressaca. Nã vai ser fácil sair...
Tinham-se calado todos para ouvir o diálogo entre o velho regedor e o moço José Brito que era seu cabo-de-polícia.
—Sair ainda se sai, mas varar depois é que vai ser pior —continuou o regedor— a vaga cada vez lava mais.
—Vai-se varar à Fajã Grande, se for preciso. Isto é Nordeste. Lá está bom. E um magote de moços capitaneado pelo José Brito ia pôr-se a caminho do porto, lá para De-Baixo-do-Arco.
—Espera, José, espera. Enquanto eu não chegar ao porto não arria ninguém.
—Ti Francisco, não. Olhe que isto é um estirão daqui lá a baixo. O Ti Francisco nunca mais lá chega... A gente vai ir às carreiras por í abaixo.
O velho reconsiderou e disse:
—Tá bom. Mas olha tu é que vais de mestre. Nã dês o leme a ninguém. A responsabilidade é tua. Espera-me por uma jazida boa antes de sair do porto. E sai-me direito ao Cartário. Só tomas o rumo dos Calhaus da Muda, quando vires o barcéu em cima do Cartário. C´o mar nã se brinca. Os homens que quiserem vir comigo que se mexam. Os outros fiquem aqui p´ra o que for preciso. E não deixem apagar a fogueira. Havera d’ir alguém ao Mosteiro e à Fajãzinha a dar notícia, que eles podem não ter dado por nada ainda. Um mais ligeiro que vaia.
E partiram. Os moços a corta-mato pelas relvas abaixo os mais velhos pelos atalhos que ziguezagueavam encosta abaixo a caminho do porto.
Quando chegaram a cima da rocha, na Terra de Nacolau, já os moços tinham virado ao Cerrado da Casinha e assomavam p´ra os lados da Castela a caminho do porto.
—Aqueles diabos ainda me vão fazer tolices aí p´ra baixo. O mar está de ressaca. Olhem p´ra aquilo.
—Nã se arrelie, Ti Francisco, o Jzé sabe o que é que tá fazendo —disse um dos do grupo.
—Não. Que quem está dentro do barco nã mede bem as jazidas. Vai tu adiante, João, que ainda te mexes bem, e põe-te em cima da pedra p´ra lhes dar sinal quando a ressaca avagar.
O João partiu à frente num trotezinho ligeiro que a descida tornava natural. As vacas nas relvas tinham deixado de pastar e, curiosas, miravam de cabeça erguida o grupo, como se quisessem entender as razões de toda aquela desacostumada azáfama.
Quando o João Artur chegou acima da rocha, a lancha lá estava postada na estreita enseada do porto à espera de jazida.
—Ó Jzé, nã saias. Ei daqui vejo bem e dou-te sinal — gritou-lhe e pôs ambas as mãos em pala por cima dos olhos, mais para sublinhar a missão que assumira do que para ver melhor.
Do lado da terra era a falésia cortada a pique sobre a estreita entrada do varadoiro. Do lado do mar era uma ponta de baixio também negra que separava a minúscula enseada das ondas que atravessavam mesmo em frente para se ir desfazer em explosões de espuma na rocha. Lá fora, ainda perto, mas já em mar fundo e mais calmo, os ilhéus da Cartarinha e da Cartária apontavam para o grande Cartário, guarda avançada da baía do lajedo.
—A vaga é só na pedra, Jzé. A partir da Cartaínha tá bom. Aguenta aí com paciência que isto vai dar jazida. Ei daqui vejo bem.
E o José Brito deixou de contar as vagas que atravessavam a boca do porto e se iam estatelar na rocha negra à sua frente e pôs-se de olho no João Artur.
—C´mé tá aí fora, João? Ei já contei oito vagas grandes... costuma ser às sete que dá jazida...
—Mais duas e fica bom. Agora aguenta e tem paciência senão ainda malhas aí contra rocha...
Com efeito, enquanto mais duas ondas grandes cruzaram a entrada do porto o João Artur gritava aos homens da lancha:
—Cheguem-se bem pr´a fora! Vai dar jazida... Agora!
E o José Brito, como se de repente lhe desse um acesso de fúria, de braço estendido por cima das cabeças dos remadores:
—Puxem por esses remos, almas do diabo! Querem morrer aqui? Finca-me esse remo bem na água, Trigueiro, que isso não é as saias da tua avó! Dá-lhe! Puxa!
Ao impulso dos remos, a pequena lancha guinou, como um cavalo que se empina para largar a galope, e largou ligeira na relativa acalmia deixada entre duas ondas de ressaca mais espaçada. Em dois minutos dava a volta à ponta do Baixio e zarpava direita ao Ilhéu do Cartário. Ao vê-la cavalgar as ondas que lá fora eram mais pequenas e sem arrebentação, o João Artur sorria, orgulhoso de si, e murmurava.
—Ah rapazes, boa remada! Agora é dar-lhe! Boa viagem... e boa sorte...


****************


Nunca se soube ao certo o que se passou com a lancha e com a sua tripulação, depois da largada do porto do Lajedo. Sabe-se que a lancha foi encontrada à deriva, dias depois, ao largo de Ponta Delgada por um barco do Corvo que andava na pesca do mar alto. Três dos tripulantes tinham desaparecido. Os outros dois estavam exaustos, esfomeados e a morrer de sede. Os pescadores corvinos recolheram-nos, mataram-lhes a sede e a fome, o melhor que puderam e, com a lancha a reboque, vieram-nos entregar ao Capitao do Porto de Santa Cruz.
A chegada dos dois sobreviventes ao Lajedo, deu origem a outra comoção colectiva que galvanizou toda a população. As mulheres carpiam-se em altos brados.
As mães e irmãs dos desaparecidos atiravam-se aos braços dos maridos e dos pais, e desmaiavam de dor e desespero. Os homens, mais comedidos, pouco diziam... Encolhiam os ombros, abavam as mãos, acenavam consternados em apoio das carpideiras. Os gritos e as lamúrias das mulheres redobraram de intensidade quando, pouco depois, o Capitão do Porto se apeou no adro da igreja. Vinha fazer um inquérito preliminar. Dois náufragos salvos e três desaparecidos era assunto sério demais para delegar nas mãos do regedor.
Mandou dar de beber e de comer ao cavalo estafado de uma viagem de três léguas através da ilha.
—Mas pouco a pouco, ó rapaz, não mo deixes encher a barriga de água de repente que ele está cansado da viagem, por esses matos do diabo.
—Sim, Senhor, uma coisinha de cada vez... Ei sei c´ma é.
O Capitão do Porto trazia duas ordenanças que o tinham acompanhado a pé, e ordenou a uma delas que fosse com o moço que ia tratar do cavalo:
—Vai lá com ele... e vê se esse animal não pára em correntes de ar... Deixa aqui a arma, que não te vai ser precisa. Vá, gira!
As carpideiras tinham se calado. Só as mães dos desaparecidos choramingavam ainda, mas em voz baixa. Ouviam-se ainda, entre as outras mulheres, um ou outro soluço, mas já raros.
O interrogatório foi feito em Casa de Espírito Santo e presidido pelo regedor que fez o seu depoimento:
—Quando eu cheguei ao porto eles já iam altos. Quase nos Calhaus da Muda. Também já estava a ficar de noite. De cima da pedra do Portinho, eu ainda vi a luz da lancha... mas aquilo apagou-se logo... E pronto... nunca mais! A gente ficou lá em baixo toda a noite à espera deles, de lanterna na mão, mas nada. Os que tinham ficado em Cima-da-Fonte tiveram a fogueira acesa toda a noite e quando clareou, mandaram-me dizer que viesse pra cima porque eles já não os viam no mar. E quando eu cheguei lá a cima era verdade —nem lancha, nem jangada nem nada. Tinha desaparecido tudo. Aquilo foi o fim do mundo, Senhor Capitão. As mulheres aos gritos e os homens às carreiras por cima dessas rochas e baixios à procura deles. Nada. Nem um sinal.
—Essa história está mal contada, Ti Francisco — disse o Capitão do Porto — como é que se desaparece assim sem mais nem menos... e com mar manso? Eles já tinham ido à inspecção?
—O José Brito ficou aprovado pra todo o serviço militar, e em Setembro ia pà tropa... Os outros dois...
—Tá. E os dois que vieram pa trás?
—Esses são mais novos. Um tem quinze e o outro vai fazer...
—Chame-os cá:
—Pois sim. Mas olhe o senhor Capitão que...
—Ti Francisco, mande lá vir os rapazes... senão vão responder à Vila. Eu devia era ter ficado logo lá com eles. Poupava-me a viagem.
—Tá bem, tá bem... Mas olhe que os rapazes nã sabem nada. Eles andaram por cima desses mares ao frio, à fome e à sede dias e noites, e vieram de lá meio atoleimados... Nã dizem nada direito...
O Capitão do Porto que sabia de antemão o desfecho de tudo aquilo, não pôde esconder toda a sua frustração:
—Senhor regedor, quantos soldados deu o Lajedo, nos últimos cinco anos?
—Ah...
—Ah... Pois é. Nenhum, Ti Francisco.
—E nos últimos dez?
—Ah...
—Ah... Pois é. Nenhum.!
—A Junta de Recrutamento tem esta informação toda... Os moços do Lajedo desaparecem todos, ou antes da inspecção, ou depois... Puff!... é um ar que lhes dá. América... Os baleeiros americanos já sabem quando é que hão vir cá por eles... Traga-me cá esses dois. Vá, Ti Francisco.
E os dois rapazolas vieram... um a fazer trejeitos de tolo com os olhos no tecto e a fingir-se surdo ... o outro muito sério mas a gaguejar tanto que mal se entendia. O interrogatório durou pouco e nada adiantou. Era uma formalidade destinada a minimizar quanto possível o embaraço das autoridades locais quando os três moços tivessem de ser dados como faltosos ao serviço militar.
—O que é que aconteceu? Onde é que estão os outros três?
—Nã sei.
—Nã sabes? Então tu...
—Nã sei nã Senhor. Olhe o Senhor Ca...ca...capitão... Eu só me alembro duma ga..ga...galera, grande cmo Ca...ca...cartaio, e veio gui...gui...guinando contra a gente... e arriaram um bote e levaram-nos.
—Levaram-nos?
—Nã sei... levaram-nos. Içaram-nos, bo... bo...bote e tudo, cum guin...guindastre... Nuuunca mais os vi...
—Ouve lá tu gaguejas sempre, ou foi do só do susto?
—Foi do susto...
O capitão não pode evitar uma gargalhada que ressoou fora da Casa de Espírito Santo. O povo do Lajedo e Campanário, muitos da Costa e alguns do Mosteiro que se tinham reunido cá fora, descontraíram, sorriram uns para os outros e segredaram aos familiares dos dois que estavam a ser interrogados:
—Tá bom... tá bom. Nã vá sê nada... Ele já se riu...





















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