A fazenda Belmira amanheceu em festa. Canções primitivas se fizeram ouvir ao som de tambores e salvas de palmas. E até mesmo o moçambique se fez presente. As crianças, ignorantes no costume, acompanhavam os adultos com olhos aparvalhados. Seus pés vacilantes arriscavam no compasso marcado pelos mais velhos. Comeram batatas assadas na fogueira e beberam chá da raiz de gengibre.
Cipriana saiu à varanda com a trouxa de roupas às costas. Caminhou pelo terraço, desceu os degraus de madeira e cortou o terreiro em direção ao rio. Da fogueira, que iluminou o rosto alegre de sua gente e aquecera as conversas de rodas, só restara cinzas.
Pela tarde daquele mesmo dia, sinhá Belmira foi encontrar Cipriana acocorada ao pé da castanheira, pitando um cigarro de palha. O sol mergulhava no horizonte e seus raios matizavam o céu num jogo de cores fascinante. Os pássaros voaram em debandada com os gritos da jovem senhora. Vinha esbaforida, segurando as saias e um sorriso nos lábios. Porém, o semblante da negra toldou-lhe o sorriso singelo.
No dia anterior, uma multidão havia se reunido no Largo do Paço para aguardar a assinatura da Lei Áurea, a missa campal em São Cristóvão, o ruído dos foguetórios, das bandas de música e a presença da Princesa Isabel, muito cônscia do papel que desempenhara.
- Ora, alegre-se, Cipriana. Já se foram os dias de apreensão e de temor, de tristezas e de lágrimas. O sol da liberdade já raiou.
Cipriana alçou os olhos para além do rio. O Sapiantã era o seu companheiro de lavagens. Era em suas águas que as crianças nadavam e, de onde, os mais velhos tiravam o peixe que alimentava sua gente. Um som triste e melancólico escapou de seus lábios.
- Credo, Cipriana. Quem te ver e ouvir pensará que não queres ser livre – insistiu Belmira.
A negra, de tez morena e cabelos cacheados, virou-se para a senhora e falou numa voz baixa, porém digna:
- O homem já nasce livre, sinhá. Somente ao negro esse direito foi negado. Depois de anos de servidão, nos mandam embora sem se importar se teremos um chão para plantar; dispersam nossa gente não importando se teremos um teto sobre nossas cabeças. É como o fruto doce e suculento da árvore mais alta que o menino deseja. Depois de muitas quedas, ele o consegue e o que acontece? O fruto já foi comido pelos pássaros e o que restou não dá para ser aproveitado. O advento da libertação, sinhá, não mudará nossa condição humana.
Cipriana molhou os dedos com cuspe e apagou o cigarro. Levantou-se, pegou a trouxa de roupas e voltou para aquela que ainda era sua casa.