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Contos-->Um trabalho duro -- 03/06/2006 - 20:49 (Sergio Marcondes Cesar de Araujo Lopes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A última garfada, o último pedaço do bife, coincidiram com o toque da campainha. Simão ergueu os olhos e notou que Maria continuava comendo seu jantar como se nada tivesse ouvido. Levantou-se, fez questão de passar bem rente ao lado da mulher, buscando ser notado, ou pelo menos demonstrando isso claramente.
Abriu a porta sem perguntar quem era e a presença dos dois sujeitos mal-encarados não lhe causou surpresa alguma.

- Sentem-se por aqui, em qualquer lugar, e esperem uns cinco minutos que eu preciso resolver umas coisas.
- A gente vai atrasar e vai acabar ficando tarde. Amanhã cedo eu trabalho e eu ... . – Tentou falar o mais novo dos dois, bem mais novo que o outro.
- Cala a boca, senta aí e não mexa em nada. Eu já volto, porra! – E Simão saiu resmungando, sumindo por trás da porta que fechou-se com sua passagem.

Maria continuava impassível, terminando seu jantar calmamente – até de forma exageradamente lenta – com os olhos fixos no prato já quase vazio, e nem pareceu notar a volta do marido à sala. Simão puxou uma cadeira e colocou-a bem ao lado de Maria, apoiando os cotovelos sobre as pernas e segurando a cabeça bem próximo à esposa, que por sua vez retardava o final da refeição cortando um pedaço minúsculo de carne em dois.

- Meu bem, as coisas estão melhorando para nós. Esse ano está sendo bom, eu estou conseguindo juntar um dinheirinho e logo, logo, a gente vai poder sair dessa casa para uma com dois quartos, construir uma casinha na praia, naquele lugar que você foi com seu irmão no ano passado. Pode escrever, vamos ter o segundo filho numa casa legal, e o terceiro já vai poder passar as férias na praia, na nossa casa. Isso não é bom?
- Você sabe que não é só isso. Eu prefiro esperar mais tempo, ter menos coisas, mas fazer as coisas direito, do jeito certo.
- Mas o que é que eu faço de errado? Eu não roubo, não mato, não engano ninguém. Pôxa, você tem um marido que dá duro em dois empregos, trabalha de noite quase todo dia e ainda torce o nariz só porque o cara vai sair para um serviço? Sacanagem! Tá cheio de cara que eu conheço que leva a vida, vai atrás de mulher, de droga, de cachaça, deixa mulher e filho em casa, bate na infeliz se ela reclamar, e eu saio pra trabalhar sentindo que estou pisando na bola com você, com o Simãozinho. Acho que isso é muito injusto!
- Eu nunca te pedi nada disso! Não quero casa na praia, quero meu marido em casa, comigo e com o filho dele, quero que ele seja exemplo pro menino, que o Simãozinho possa ter orgulho do que o pai faz e ... .
- E o que? Eu dou um duro danado no supermercado o dia todo, de terno e gravata num puta calor, correndo atrás de moleque malandro, aguentando aquele chefe babaca querendo me ferrar direto, chego todo dia em casa na mesma hora, não é possível isso não ser motivo de orgulho, nem de exemplo.
- Você sabe do que eu estou falando.
- E você sabe que não é crime, nem sequer errado. Faço esse bico porque preciso e porque não é crime. Podia estar por aí assaltando casa de grã-fino, roubando carro, que nem um monte de vizinhos nossos.
- Tá! Não vamos discutir de novo, não vai mudar nada. Nunca mudou, já deve ser a décima vez e o papo é sempre o mesmo. Eu não preciso concordar, nunca concordei e nada mudou. Vai lá resolver suas coisas e veja se volta logo. E não se esqueça de que tem gente te esperando aqui.
- Um dia a gente vai ter que se entender, se bem que eu não vou fazer isso pra sempre. Periga eu parar com esse serviço antes de conseguirmos nos entender. Bom, deixa pra lá, os caras estão na sala e eu disse que voltava logo. Não vou demorar, prometo.
- Vá com Deus!
- Amém!

Simão sabia que aquele havia sido um bom final para a conversa. Maria tinha razão, era sempre o mesmo papo, com os mesmos argumentos e as mesmas discussões. Nos últimos dois anos eles batiam sempre na mesma tecla, mas dessa vez Maria tinha até que demonstrado uma certa tolerância, coisa que era rara nesses embates. Só o fato de mandar que fosse com Deus já deixara Simão num estado de espírito melhor. Ele saiu da cozinha e entrou na sala com um ar mais leve, carrancudo como sempre, mas leve como raramente se sentia.

Os dois estavam ali, sentados lado a lado no sofá da sala, dois brutamontes, um bastante barrigudo, barba avantajada e um pouco grisalha, bastante feio para qualquer padrão razoável, e o moleque, um pouco maior que o outro, mas magro e em boa forma física, com musculatura bem definida e exageradamente exercitada, nem bonito nem feio, mas com um rosto que intimidaria qualquer um, talvez um pré-requisito para exercer sua profissão diurna, porteiro de um cinema erótico na região do centro da cidade.

- Vamos embora! Não vou oferecer nada porque não tem, e também porque combinamos de nos ver depois do jantar. Os dois já jantaram, não?
Os dois assentiram com a cabeça e puseram-se em pé, seguindo o dono da casa rumo à porta e depois à rua.

O carro estava à porta, um monza bem velho, com um capô de cor diferente do resto do carro. Era de Simão, que nem perguntou nem queria saber como os dois haviam chegado ali. Entraram no carro, Simão ao volante com o mais velho ao lado e o rapaz no banco de trás.

- Bom, vocês sabem onde vamos e qual é nossa tarefa. Rapaz, como é mesmo seu nome?
- Zico.
- O nome. O apelido eu escolho.
- Artur.
- Então Zico está bom. Você sabe qual é a nossa, né? É a sua primeira, não?
- Sim, minha primeira vez, mas sei o que fazemos e estou pronto. Pode contar comigo.
- Tá bom. Você já conhecia o Mário Mudo?
- Nos conhecemos hoje, no ponto.
- Ponto?
- Ponto do ônibus.
- Ah! O Mário é parceiro antigo. Confio nele cem porcento. Veja como ele trabalha e tente fazer igual, que para mim já basta. Não se meta a ser melhor que ninguém, faça o seu e vá pra casa dormir tranquilo e com o seu no bolso. Conversamos?
- Conversamos sim. Pode deixar.
- O Mário não é de falar muito, então não sei se vocês se falaram.
- Quase nada.
- Mário, vê se fala com o cara aí, porra.
O mais velho, Mário, assentiu novamente com a cabeça e deixou claro que isso só aconteceria em caso de extrema necessidade, daí seu apelido.

- Você trabalha?
- Trabalho sim. De dia, você diz?
- Sim, de dia, emprego de verdade, salário, patrão, essas coisas.
- Eu tomo conta da porta do cine Shangrilá, no Arouche.
- Toma conta por que? A porta foge se você não estiver lá?
Simão riu da própria piada, um riso alto, gargalhado, bem forçado, enquanto acotovelava Mário, ao seu lado, e notava nele uma pequena ponta de sorriso no canto esquerdo da boca, que equivalia à gargalhada falsa de Simão.

- É puxado o trampo lá! – rebateu o rapaz, sentindo-se demasiado desconfortável.
- É, deve ser, a porta deve dar um trabalhão. – E continuo a rir exageradamente, o que o garoto notaria mais tarde ser uma característica de Simão, além de ajudá-lo a relaxar antes dos serviços. – Quantos anos você tem, Zico?
- Vinte e um.
- O Mário já tinha neto quando você nasceu. Você está nervoso?
- Não, nem um pouco. É moleza!
- É um trabalho difícil, coisa pra quem tem estômago.
- Tô tranquilo! Pode contar. Pra quem lida com vagabundo o dia todo isso vai ser brincadeira.
- Olha rapaz, vá por mim, isso é coisa dura de se fazer. É um trabalho difícil, não é MM?
Mário Mudo grunhiu algo parecido como “hum”, como que dizendo “e como é”.

Seguiam por uma rua de terra, entraram numa avenida por onde se mantiveram na pista da direita, como que procurando por um entrada, mas assim seguiram por muitos minutos, num silêncio desagradável, até que Simão decidiu ligar o rádio, sem se preocupar como o que tocava, uma música romântica meio-sertaneja, dessas que se ouve em quase todo lugar durante semanas até que ela desaparece misteriosamente para sempre. A música melhorou um pouco o ambiente no carro, visto que Simão parecia preocupado em ler as placas com os nomes das ruas que cruzavam a avenida e Mário mantinha-se, além de mudo, imóvel.

- Deve ser por aqui, isso se já não passou. Se passou vai ser um saco, porque o retorno é bem lá pra frente. MM, nem a pau! Apague esse cigarro, porra! A Maria me mata se sentir cheiro de cigarro no carro. Apaga, apaga!
- Merda! – Mário falara sua primeira palavra na noite.
- Boa Marião, não te ouvia falar uma palavra faz tempo.
- Ele falou comigo no ponto, hoje.
- Então você é um homem de sorte. Estou começando a gostar de você, Zico. Se até o Mário falou contigo, você deve ser gente boa.
- Valeu!
- Mas não se anima não, nós estamos aqui pra trabalhar. Trabalhe direito e você terá amigos nesse carro, trabalhe errado e esse carro te atropela. – Simão gargalhava novamente e buscava em vão outro sorriso no rosto de Mário.

Tomaram a direita numa rua asfaltada, repleta de casinhas iluminadas precariamente e alguns terrenos baldios. Não se via nenhuma alma na rua, e ainda era um tanto cedo para se encontrar ruas desertas, mesmo ali, um bairro pobre, de gente que dorme cedo e acorda antes do amanhecer. O carro ia mais lentamente, mas não dava mostras de estar chegando ao seu destino, a música que tocava agora era desconhecida de todos, mas também não parecia fazer o género de ninguém também. Por algum motivo o alerta de Simão, brincadeira ou não, mexera com Zico, que sentia seu coração bater mais intensamente e começava a se perturbar com ideias sinistras e cenários pessimistas, afinal de contas, se isso fosse bem pior que lidar com os caras que atormentavam seu dia-a-dia na porta do cinema, um bando de drogados, bêbados e marginais, a coisa poderia ser bem diferente do que lhe fora passado quando de seu recrutamento.
Mário continuava impassível, braços cruzados, maço de cigarros amassado na mão esquerda e olhar fixo no que vinha pela frente do carro. Gordo que era, tinha sua respiração sempre ofegante, saindo-lhe pelo nariz expirações abafadas e ruidosas, que sempre incomodavam a todos os presentes.
Simão dirigia bem, firme e tranquilo ao volante, vez por outra fazia algum comentário em voz baixa para si mesmo, e em certo momento parecia mover os lábios cantarolando silenciosamente uma das músicas que tocavam no rádio, mas Mário não notara isso e Zico, que reparara, não tivera coragem de ensaiar a brincadeira. A fama de Simão no meio era das melhores, tido com durão e competente, ele era quase uma referência para os que se punham a fazer aquele tipo de empreitada. Nos últimos meses passara a ser bastante requisitado, fazendo do serviço, que normalmente demandava uma ou duas noites dos executores por semana, tomar-lhe quase todas as noites, geralmente em dias de semana, deixando-lhe os finais de semana para curtir a família e os amigos, que encontrava sempre em animadas peladas num campo de terra batida logo ao lado de sua casa.

- Acho que é ali, aquela casa com duas luzes na frente. Estão vendo?
- Eu estou, aquela com cerca na frente, né? - Só Zico manifestou-se, como era de esperar.
- É. Vá até lá e tente descobrir se tem gente em casa, mas seja discreto, finja que está indo pra algum lugar. Seja esperto.
- Como assim? Você quer que eu chegue perto da casa, tipo assim perto de uma janela para ver se tem gente lá dentro?
- Você entendeu. Vá logo. Eu quero é saber se o filho da velha já saiu pro trabalho.
- Tá. E se eu for visto?
- Você não vai ser visto.
- E se for? Só imaginando.
- Se for visto, dançou. Agora vá.

Zico desceu do carro, estacionado do outro lado da rua uns dez metros antes da casa, e atravessou a rua com passos curtos e andar vacilante. Seu coração se fazia ser notado com batidas ritmadas mas fortes, transpirava no pescoço e na testa, coisa que acontecia nesses momentos de tensão e ajudavam a tirar-lhe a concentração. Mesmo assim manteve aparente calma andando em direção à casa pela calçada. Passou em frente a cerca, que ficava uns três metros da porta de entrada, sem alterar o passo, andou mais uns quinze metros, atravessou a rua e voltou para o carro, abrindo a porta de trás e sentando-se calmamente, suscitando em Simão uma certa vontade de pular sobre o rapaz e quebrar-lhe o nariz.

- Ei, que foi isso?
- Nada, fiz o que você pediu. O cara está lá e deve sair em cinco minutos. Tá bom?
- Você é o que? Mãe de santo?
Mário riu com um pouco mais de vontade e virou-se para ver a reação e a resposta do moço.

- Não, eu estava passando pela frente da casa quando ouvi uma voz de mulher avisando a alguém que ele estava atrasado para o trabalho, e o cara respondeu que estava terminando sei-lá-o-que e já ia sair. Só isso.
- Bom trabalho, seu e da sorte! – Exclamou Simão, sorrindo e olhando de lado para Mário, que voltara-se para a frente e reassumira sua situação de estátua.
- Que trabalho deve ter esse cara para sair de casa essa hora da noite?
- Ele toma conta da porta do cinema lá do inferninho no período da noite. – E Simão desatou nova gargalhada, sem se importar com o barulho e sem consultar a opinião de Mário a respeito, certo de que nada viria do barbudo. – Relaxa rapaz, ria um pouco, faz bem e tira o nervoso. O cara ali trabalha no metrô, turno da noite, não sei se é na limpeza ou onde é, mas sai agora e só volta quase na hora do almoço.
- Ah, tá.
- Bom, vamos lá, deixe eu dar as coordenadas. Escutem. O cara sai agora e a velha fica sozinha, digo velha mas não sei quantos anos ela tem, mas deve ter a idade da mãe da gente, quer dizer da minha e do Zico, a mãe do MM já tem bisneto, né MM. – Mário ignorava a graça do parceiro mas prestava atenção ao que parecia ser um plano de ação. – Levamos o que eu disser e não quero ninguém batendo na velha. Bater só em caso de necessidade.
- Tipo o que?
- Tipo você vai saber se precisar. Não gosto de sujeira, bater em velho é maldade.
- É, é mesmo.

Naquele instante uma claridade alcançou a rua e da porta da casa, aberta, além de luz saiu um sujeito moreno, quase negro, alto e uniformizado, que em passos apressados passou pela cerca sem se preocupar em fechar a portinhola, seguindo pela calçada rumo a avenida donde vieram os três do monza. Em silêncio observaram o rapaz passar, devia ter uns trinta anos, e acompanharam seus passos até ele desaparecer no final da rua. Simão olhou para Zico, para Mário e depois para Zico novamente.
- Vê se não estraga a parada cara, isso é o ganha-pão do Mudo.
- Pode deixar, eu tô pronto. Vai ser moleza.
- Olha, escuta aqui, preste atenção. Isso é trabalho duro, difícil, acredite.
- Tá, tá bom, pode deixar.
- Vamos embora, colados em mim.

Simão desceu do carro e sem olhar para trás dirigiu-se a passos firmes para a casa. Mário parecia bem sincronizado com Simão, seguindo-o de perto, enquanto Zico teve certa dificuldade em acompanhá-los, pois não esperava tal agilidade de ambos. Zico estava nervoso, tinha um pouco de vontade de desistir, um pouco de raiva de Túlio, seu primo e dono da academia onde treinava, que o indicara para aquela empreitada, mas conseguia disfarçar um mínimo. Apressando um pouco o passo, Zico alcançaria Mário e colocava-se logo atrás dele, lugar que julgava um dos mais seguros naquele momento.
Simão subiu os dois ou três degraus que levavam até a porta de entrada e bateu levemente à mesma, como se fosse uma visita. Mário subiu a escada e ficou ao lado da porta, de frente para Simão, e Zico, obedecendo sinal de Simão ficara ao pé do primeiro degrau da escada. Logo veio uma voz de mulher, não parecia tão velha assim, perguntando quem era.

- Sou eu.
- Eu quem?
- Eu, ora!

A porta se abriu um pouco, provavelmente para que a mulher pudesse conferir quem era o conhecido cuja voz não reconhecera, e Simão meteu-lhe o pé abrindo mais espaço entre a porta e o batente, onde seu pé ficou, garantindo que não se fecharia, enquanto Mário, já de frente para a porta, empurrou com força, abrindo a porta e lançando a mulher ao chão, num barulho surdo que só poderia lembrar alguém caindo no chão.

- Olha aí, tia, ninguém vai te machucar se você ficar calada. Ninguém aqui é ladrão, não queremos nada seu, só viemos buscar o que vocês devem.

A mulher era, realmente, uma pessoa velha, com aspecto de quem havia apanhado bastante da vida. Seu rosto era enrugado demais, como suas mãos, finas e com dedos compridos. Ela caíra sentada e não fizera mais nenhum ruído, nem sequer parecia assombrada com aquela invasão. Permaneceu dois ou três segundos olhando os três brutamontes entrarem em sua sala e voltou os olhos para o chão parecendo conhecer o protocolo desse tipo de ação.

- O que vocês querem? Eu não devo nada a ninguém, sou aposentada e vivo do que ganho. Pelo amor de Deus, isso deve ser engano!
- Não tem erro não, dona. Seu menino tá devendo as calças por aí, e acha que não precisa pagar. E não é assim que as coisas funcionam. Ele pediu, levou e esqueceu de quem o ajudou. Não quer pagar direito, vai ser na marra.
- Não sei de nada não! Aqui é minha casa, meu filho não mora aqui. Eu tô dizendo moço, acredite.

Simão deu dois passos em direção à velha, olhou para ela com um olhar frio e de reprovação, acertou-lhe um tapa no rosto enrugado, um tapa seco, forte, que jogou a mulher que estava sentada no chão a ponto da mesma bater com as costas e a cabeça no chão, produzindo um barulho desagradável até para Mário que virou o rosto e piscou os olhos como se ele levasse a bofetada.

- Eu disse que ninguém vai machucar você, mas não mente pra mim não, tia, que aí o problema fica entre nós dois, e aí o bicho pega. Eu estou aqui trabalhando, resolvendo problema de outra pessoa com o seu filho. Não mete a gente na estória que a coisa fica ruim pra todo mundo. Tá bom? Conversamos?

A mulher ergueu o corpo e colocou-se sentada novamente, mas mantinha os olhos fixos no piso, evitando encarar Simão e os demais. Ela não respondeu nada, mas era claro para todos que não havia necessidade de resposta.

- Nós vamos levar umas coisas, diminuir o prejuízo do meu patrão. Eu escolho o que quiser e você fica quietinha aí, que nada vai te acontecer. Vamos, os dois, um no quarto e o outro aqui na sala, quero televisão, aparelho de som, coisa eletrônica e coisa de cozinha tipo microondas e liquidificador. Mostrem o que pegarem pra mim. Tia, onde está o dinheiro? Onde você guarda a grana? Pode falar!
- Não tenho dinheiro nenhum. Só uns trocados pra condução.
- Mentira, cadê o dindin?
- É verdade.
- Vai mentir de novo, tia? Tá difícil!
- Eu juro. É verdade.

Simão parecia querer acreditar na velha, passou a olhar ao redor em busca de algo que interessasse no pagamento da dívida, quando Mário voltou do quarto com um rádio pequeno, mas novo, e recebeu de Simão um sinal afirmativo. A televisão já estava ao lado da porta, colocada por Mário enquanto Simão discutia com a mulher.
Em poucos minutos, não mais que cinco, estavam ao lado da porta uma televisão velha, o rádio, um aparelho de som portátil, um rádio relógio e uma batedeira nova em folha, ao seu lado Mário com uma corrente de ouro nas mãos e Zico, lívido e com os olhos esbugalhados, ofegante como se tivesse corrido uma maratona.
Simão olhou o produto da investida, piscou para os dois e voltou-se para a mulher.
- Tia, era isso, agora a senhora dá o anel que está no seu dedo pro menino aqui e vamos pra casa. Aí acabou, pronto.
- Minha aliança não, isso não, é tudo o que tenho do meu finado marido. Pelo amor de Deus, é só o que peço.
- Zico, pega a aliança do finado e vamos embora. Já estou cheio dessa tia chorona.
- Não moço, por favor, eu imploro.

Com o olhar, penetrante e firme, Simão fez Zico dirigir-se até a mulher sentada no chão e tentar tirar-lhe o anel. Ela debateu-se e escondeu a mão sob o corpo, virando-se de lado. Zico tentava virar-lhe o corpo, mas ela era dura, corajosa e estava determinada a manter o anel consigo. Simão puxou Zico pela gola da camisa e, demonstrando impaciência, desferiu um chute nas costas da velha, que gemeu alto mostrou o rosto já choroso, colocando-se deitada de costas com as mãos ainda entrelaçadas como a esconder a aliança. Simão meteu sua mão direita em meio às mãos da mulher e tirou o anel sem muitas dificuldades.

- Moleque, da próxima vez espero que não precise me meter no seu trabalho. Acabou. Vamos embora. Tia, espero que doa pouco. Zico, leva a TV, Mário, eu levo o rádio relógio e você o resto.

A mulher mantinha os olhos fixos no chão, mas agora chorava copiosamente mesmo em voz baixa esfregando as mãos trêmulas em busca do anel que se fora.

- Dona, a gente só está trabalhando. Isso aqui não vai ficar com nenhum de nós, é pra pagar o que seu filho deve, ele é quem devia apanhar, mas eu só faço o que mandam. Avise a ele que o Gaspar ainda quer o resto da dívida, que isso aqui paga os juros. Diz pro seu menino que eu não quero mais voltar aqui, mas já sei o endereço e também já marquei a cara dele.

Simão foi o primeiro a sair, seguido pelos demais, todos carregando o produto da ação rumo ao carro do outro lado da rua. Zico preocupava-se em ser visto por algum vizinho com aquelas coisas nas mãos, obviamente achariam que é assalto, poderiam chamar a policia, aquilo podia terminar mal. Mas nada aconteceu, nem um ruído enquanto colocavam tudo no porta-malas. Simão ligou o carro, fez a volta na rua e seguiu o caminho de volta, deixando a casa com a porta aberta iluminando aquele pedaço de rua.

A volta foi ainda mais silenciosa que a ida, com Mário sentado na mesma posição, com os braços cruzados e olhar fixo na pista, Simão também em silêncio, a não ser duas exclamações em voz baixa de “velha burra” e “velha estúpida”, nem chegou a ligar o rádio. Zico suava em bicas, com o cabelo molhado pelo suor que lhe brotava por todos os poros, coração acelerado, respiração ofegante e uma tremedeira incontrolável na extremidades.
Chegaram à porta da casa de Simão pouco depois das onze, encontrando as luzes apagadas e um silêncio semelhante ao da rua visitada na empreitada, com exceção de dois garotos que conversavam sentados sobre o muro de um terreno baldio vizinho.

- Bom, então é isso. O Mário acerta comigo amanhã, é só passar aqui depois do jantar e pegar o seu, MM. Zico, alguém vai te procurar e acertar o seu, acho que deve ser lá na academia. É lá que te encontraram, não?
- É sim.
- Então é isso, tem gente nossa lá.
- Valeu pessoal, trabalho bem feito.

Virou-se e entrou em casa, sem despedidas formais, cumprimentos ou acenos, batendo a porta suavemente, evitando barulho. Os dois seguiram pela calçada calmamente, sem palavras.

- Ei rapaz, Zico! – Simão aparecera novamente em frente à casa, já sem a camiseta.

Zico virou-se rapidamente, visivelmente nervoso e trêmulo.

- Eu disse, não é? É um trabalho duro.

Zico concordou com a cabeça, apertando os lábios e cerrando os olhos, virou-se e retomou o caminho ao lado de Mário. Continuaram a andar em silêncio da mesma forma que antes, e Zico se espantaria ao receber um tapinha de Mário no ombro, algo que valia por mais de mil palavras.
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