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Contos-->Um Centauro na Amazônia -- 05/04/2006 - 20:15 (Hull de la Fuente) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Um centauro na Amazônia

(Hull de La Fuente)

Ao amigo Corrado Cuccoro, Professor de Grego antigo e de tantas outras disciplinas do Liceu Paolo Sarpi, de Bergamo, Itália, o meu eterno agradecimento pelas frases no idioma helênico que aparecem neste conto.

Todos os direitos reservados.


“UM CENTAURO NA AMAZÔNIA”


As sombras da noite começavam cobrir a entrada da gruta há muito abandonada pelos garimpeiros de cassiterita. Lá dentro, Kalibe, o jovem índio yanomami, invocava os utupês, espíritos de seres mitológicos e os yaroripês, espíritos dos ancestrais humanos e animais. O canto e a dança eram tristes. Ele realizava a cerimônia de sepultamento dos pais, mortos por garimpeiros, naquela tarde. Acontecera tudo rapidamente. Os três haviam saído pra colher ervas com as quais fariam o pó yãkoana, alucinógeno, usado na iniciação dos novos xamãs. Kalibe escapara da tragédia, graças à proteção do seu rixi, o espírito da pequena onça Yuí, que lhe aparecera por entre as folhagens da mata fechada. Kalibe se deteve para saber o que o rixi queria dizer. Na cultura yanomami todos os integrantes elegem um bicho de estimação como espírito protetor, um rixi, pode ser um animal doméstico ou, como no caso de Kalibe, uma onça, criada por sua família desde o nascimento até o dia em que foi morta, picada por uma cobra, enquanto dormia.

Sua mãe, Yatobi, e o pai Wauaré, prosseguiram a caminhada, mas logo adiante foram surpreendidos por um grupo de garimpeiros, fortemente armados. Kalibe ouviu os tiros de metralhadora, os gritos dos pais e as risadas dos homens brancos, após matá-los. O espírito da pequena onça o reteve até que os homens se distanciaram do local do crime. O jovem xamã era hábil no manejo do arco e da flecha, mas de que adiantava sua valentia contra metralhadoras? Seria uma presa fácil para os malvados homens. O Sol moveu-se por mais de uma hora lá no alto, após os tiros. Então a onça Yuí o levou até onde estavam os corpos. Kalibe levantou nos braços o pequeno corpo coberto de sangue de sua mãe. O espírito de Yuí materializou-se e o índio depositou nas costas da onça o corpo da mulher. Kalibe olhou para o corpo do pai mergulhado numa poça de sangue e as lágrimas desceram por sua face. Acostumado a pratica da corrida de toras, levantou o corpo de sobre as folhas ensangüentadas e o colocou nos ombros. Então, guiado pela onça Yui, foi levado até à gruta.

Yuí ajudou-o a sepultar os dois xamãs e seus poucos pertences, entre as fendas abertas nas paredes da gruta. Wauaré sempre levava consigo folhas secas de tabaco para mascar. Kalibe atou algumas folhas ao próprio arco e enterrou as outras com o corpo do pai. Depois de cobrir as fendas com barro e pedras, se deu conta de que estava irremediavelmente só. Até o espírito da onça Yuí, havia voltado para o cosmos, pois um espírito auxiliar não pode permanecer muito tempo no mundo dos vivos. Kalibe não sabia nem mesmo se ao voltar pra aldeia, encontraria alguém com vida, pois os garimpeiros tinham ido naquela direção.

O índio saiu da gruta e sentou-se numa rocha perto da entrada. A noite caíra sobre o velho garimpo abandonado. Acostumado a ver na escuridão, olhou para o estrago causado pelos “homens civilizados”, do que fora um dia uma floresta. A mata teimava em ressurgir nas encostas das crateras e sobre as montanhas de barro e pedra. A devastação tinha sido muito grande e espalhava-se até onde sua vista podia alcançar. Sozinho, Kalibe chorou e chorou, até adormecer com a cabeça apoiada sobre os joelhos.

Despertou ao nascer do sol ao som de uma língua diferente, mas estranhamente ele a compreendia.

_Kalé heméra! (Bom dia, em grego antigo)

O jovem olhou em volta e viu por entre os arbustos, o rosto de um rapaz branco, cujos cabelos castanhos, caiam-lhe em cachos sobre a testa e um sorriso cordial brilhando nos grandes olhos castanhos:

– Kalé heméra! – repetiu o jovem recém-chegado.

– Não é um bom dia. É um dia de tristeza. – respondeu o índio. – Você fala uma língua diferente daquela dos outros malditos brancos. O que você quer? Sabia que eu posso matá-lo com uma única flechada?

– E por que você mataria um visitante? Eu vim de muito longe. Mas acho que cheguei ao lugar errado. Que estrela é esta?

– Estrela? Aqui é a minha terra. Há milhares de anos, nós, da nação Yanomami, vivemos aqui. Só depois que o homem branco chegou, é que a nossa gente foi perdendo as terras, as roças, as caças, a cultura e a vida.

– Terra? Você disse Terra? Então eu estou realmente perdido. – afirmou saindo de detrás dos arbustos, para espanto do índio Kalibe, que de susto quase rolou pela encosta pedregosa e tomado de medo perguntou:

– Você é um utupê-yaroripê? (ser mitológico e humano). Quem o mandou aqui? Foram os meus pais? Não pode ser, eles também nunca viram alguém como você... Ou será que você é um feiticeiro inimigo? – O jovem índio não escondia a surpresa. Ele nunca havia visto um espírito igual aquele. Será que o canto fúnebre que entoara no sepultamento dos pais o tinha atraído? - Você é um espírito de homem ou de cavalo?

– Eu não sou um espírito! Eu sou um centauro. Há milhares de anos, meus antepassados viveram aqui na Terra. É uma história longa, aconteceu bem longe daqui... – disse. – Mas de onde eu vim a história que os nossos primitivos antepassados viveram aqui na Terra, é passada de geração a geração.

– Deve ser como a nossa história. – afirmou Kalibe – Mas nós não a escrevemos, nossa história foi sendo passada de pai para filho, até agora. Só o homem branco precisa escrever suas lembranças, porque eles não têm memória. Ainda assim, eles esquecem e mentem. Dizem que esta nossa terra é deles. Porque está lá no papel que eles escreveram. Mas não é verdade, nós sempre estivemos aqui...

– Como é o seu nome? Por que você está nu? – perguntou curioso, o jovem centauro.

–Eu sou Kalibe, meus pais e eu somos xapiri thépé (pessoas espíritos) da nação Yanomami, é nosso dever zelar pela saúde e a segurança da nossa gente. E eu não estou nu. Vê este cordão em volta da minha cintura? E esta parte que sai da cintura e levanta a ponta de minha genitália para cima? É assim que nos vestimos. Se o cordão arrebenta, aí sim, então temos que nos agachar para amarrá-lo de novo. É muito vergonhoso deixar que outros vejam a ponta da genitália para baixo.

– A civilização da Terra mudou muito. – disse o centauro, surpreso – Não é essa a história que os antigos nos contam. O povo era bem diferente.
_Mas você também está nu, jovem homem-cavalo... Você não usa os panos que os garimpeiros usam... E a sua genitália não está amarrada para cima.

_Você tem razão, pela ótica do homem comum, eu estou nu. Minha “roupa” se resume às alças do alforje com as flechas que carrego comigo. Você já ouviu falar da Tessália?

– Não! Não sei o que é Tessália. Mas espero que não seja coisa de garimpeiro. Por que você é um pouco homem e um pouco cavalo? Você foi amaldiçoado por um xamã, ruim?

O centauro ajeitou o arco e o alforje de flechas nos ombros e rindo, respondeu:

_Eu não sou amaldiçoado. Eu sou um semideus. Eu e mais três da minha espécie fomos enviados para uma galáxia muito distante do nosso planeta de origem, mas durante a viagem alguma coisa me desviou da rota. E agora estou aqui falando com você... Ah! E Tessália era a região da terra, na Grécia, onde viveram os centauros como eu.

O índio ouviu a explicação e prosseguiu:

_Eu pedi ajuda aos deuses, mas não pensei que eles mandassem um homem-cavalo para ajudar-me, aliás, eu nem sabia que existiam criaturas iguais a você... É a primeira vez que os deuses respondem assim... Você tem nome?

Kirone ouviu as palavras do silvícola e entendeu o motivo de sua passagem no planeta Terra. A força do canto de lamentação do silvícola tinha chegado aos deuses, e aqueles compadecidos, o tinham desviado de sua missão para ajudar a primitiva criatura. Só podia ser esta a explicação para encontrar-se naquele lugar. A missão que fora conferida aos dois casais de centauros, de povoar a nova Tessália num planeta que estava se formando, certamente podia esperar.

_Meu nome é Kirone. É uma homenagem ao primeiro rei dos centauros, Quirão. Quirão viveu aqui na Terra, numa região da Tessália, da qual acabei de falar.

– O que fez o primeiro rei de vocês, pra merecer a honra de você imitar o nome dele, jovem homem-cavalo?

– Quirão era um sábio, amigo de deuses e humanos. Foi professor de muitos heróis gregos como Aquiles e Jasão e tantos outros heróis lendários. Ensinava música e medicina. Ele foi ferido por ocasião da visita de seu amigo Heracles ao centauro Folo. Heracles teve sede e pediu vinho a Folo, mas Folo abriu o tonel de vinho onde todos os centauros bebiam. Existiam os centauros que não eram imortais e que quando bebiam se tornavam violentos, estes centauros, ao sentirem o odor do vinho caíram de assalto sobre o visitante e sobre o próprio Folo. Heracles resistiu ao assalto e matou alguns deles, os outros fugiram e se refugiaram na gruta do Rei Quirão, que, ao ouvir tanto barulho saiu pra ver o que estava acontecendo, mas justo naquele momento Heracles disparou uma flecha envenenada com o sangue da Hidra de Lerna, a flecha atingiu o joelho de Quirão. Heracles ao ver o amigo centauro ferido, correu em seu socorro, mas nem ele nem a própria capacidade de Quirão podiam salvá-lo, pois a ferida jamais poderia ser curada. Embora conhecesse muito bem medicina, Quirão nada podia contra o veneno contido no sangue da Hidra. O ferimento lhe causava muita dor e ele não tinha paz. Quirão estava condenado ao sofrimento eterno, porque era imortal. Zeus, o rei dos deuses e meio irmão de Quirão, autorizou Prometeu, um mortal, a substituir Quirão na imortalidade, pondo fim ao sofrimento do rei dos centauros. Zeus, entretanto, não se conformando com a morte de Quirão, o transportou para o cosmos e o transformou numa constelação. Nós, os centauros de agora, vivemos todos na Constelação de Centauros. Somos pacíficos, desde que não nos provoquem. E você, o que faz aqui sozinho? Onde estão os seus semelhantes?

– Minha aldeia e minha gente, se tiverem sobrevivido ao ataque dos homens ruins, estão a um dia de caminhada daqui. Eu e meus pais viemos em busca das ervas da iniciação. Agora eles estão dentro desta gruta, onde os sepultei. Os garimpeiros os mataram ontem à tarde. Só posso deixá-los após três dias. É quando o espírito de cada um deles desperta. Eles vão me dizer o que devo fazer, para proteger nossa gente. – o índio suspirou fundo e acrescentou – É triste a história do rei da sua gente, mas ele deu origem a sua nação, não é?

_De certa forma. Você permite que eu veja onde seus pais estão? Talvez eu possa ajudar e você não precisará esperar três dias.

_Devo pedir permissão ao meu rixi. Espere um pouco.

Kalibe fechou os olhos e apelou ao seu espírito protetor, a onça Yuí. A cara da onça foi se agigantando em sua mente e ele entendeu que podia confiar no estranho homem-cavalo. O jovem pegou o arco e as flechas e fez sinal pra Kirone, que o acompanhou ao interior da gruta.

O barulho das patas do centauro, ressoava na caverna. Por um instante o índio pensou em voltar atrás. Os espíritos nem sempre gostam de barulho. O centauro percebeu a preocupação do rapaz, e como num passe de mágica o barulho sumiu. Após andarem alguns minutos, o índio parou e apontando pra parede da gruta disse:

_É aqui! Eles estão aqui.

Kirone deu alguns passos para trás e levantou a mão direita na direção do lugar. Um espelho surgiu na parede. As imagens de Yatobi e Wauaré apareceram sorrindo dentro do espelho. Kalibe estava acostumado a ver e falar com espíritos de pessoas, de animais e até de vegetais, mas agora, ao ver os pais, suas pernas tremeram e ele caiu de joelhos, chorando. A voz de Yatobi, sua valente mãe fez-se ouvir, como um eco na caverna:

_Não chore, valente guerreiro! Na sua vida não há lugar para lágrimas. Eu e seu pai estamos bem.

_Onde vocês estão? Como é do outro lado?

_ Não se preocupe, ainda é cedo para você conhecer este lado, mas eu posso dizer que aqui encontramos tudo o que aí só víamos em sonhos. O seu pai vai falar com você. Fique em paz, guerreiro Kalibe!

Sorrindo, Wauaré perguntou ao filho:

_O que você vai fazer com as folhas de tabaco que tirou dos meus pertences, jovem guerreiro?

Surpreso, Kalibe olhou para o centauro a seu lado e respondeu:

_Eu tirei algumas das suas folhas para usar quando estiver com medo.

_Você não precisará do tabaco. Agora você tem um amigo. É o jovem homem-cavalo que o ensinará a defender-se dos predadores brancos. Com a ajuda dele você lutará e defenderá a terra Yanomami. Você será um grande guerreiro. Daqui onde estamos podemos ver os homens brancos, no futuro, se unindo na promoção de uma grande assembléia entre as mais de trezentas aldeias Yanomamis. Durante a assembléia, alguns brancos vão usar máquinas estranhas e poderosas. Aquelas máquinas podem “olhar” dentro das mais profundas camadas do solo. Eles descobrirão as riquezas da terra Yanomami. Depois milhares de homens virão das cidades e expulsarão os índios para lhes tirar o ouro. Naquela ocasião, centenas de aldeias desaparecerão. Populações inteiras vão morrer de doenças estranhas. A gripe, o sarampo e a catapora se alastrarão dizimando aldeias inteiras. Outros serão assassinados pelos garimpeiros. Tudo vai acontecer diante dos olhos de quem deveria protegê-los. O governo dos brancos.

A imagem de Wauaré e Yatobi foi se distanciando e eles se despediram do filho pedindo a ele que nunca deixasse de lutar pela demarcação das terras Yanomami. Impressionado com tudo que presenciara Kalibe dirigiu-se ao centauro:

_Como você fez esta mágica? Eu não vi você consumir o yãkoana, o alucinógeno... A voz e a imagem dos meus pais eram perfeitas, como você fez isto?

_Eu sou um semideus, tenho poderes, não preciso de alucinógeno. No meu planeta todos têm um tipo de poder. Lamento que no seu mundo não seja assim.

_Nós, os xamãs, temos poderes , mas agora eu vejo que os nossos poderes não são nada perto dos seus.

Os jovens saíram da gruta e andaram em direção do rio, ambos tinham sede. Mas ao se aproximarem das margens, viram urubus sobrevoando os céus e sobre as águas milhares de peixes mortos, flutuavam. Kalibe olhou desolado para a cabeceira do rio e explicou o que estava acontecendo ao visitante.

_São os homens que mataram os meus pais. Eles estão rio acima. São garimpeiros de ouro. Eles usam veneno pra limpar o ouro... Agora você vê o resultado da maldade deles. O veneno acaba com os peixes e também é ruim para os animais e pra nós. Ninguém pode beber da água. Garimpeiro só gosta de ouro, não gosta da vida, não respeita homem que vive na mata, não respeita nada.

Kalibe soluçou diante do centauro.

Então Kirone pegou o arco e uma de suas flechas e mirou a cabeceira do rio Ericó. A flecha voou veloz, num assobio fino. No mesmo instante, maravilhado, Kalibe viu os peixes mortos desaparecem e as águas tornarem-se claras. Vários animais se aproximaram das margens para matar a sede. Os pássaros começaram a cantar rompendo o silêncio de morte que antes imperava na mata. O centauro mergulhou nas águas e convidou o índio a fazer o mesmo. Quando voltaram à tona, a flecha lançada por Kirone pousou lentamente de volta na mão dele. Kalibe, para mostrar gratidão ao centauro, lançou uma flecha nas águas límpidas, pegou um grande e apetitoso pintado e de posse de alguns galhos secos, começou a fazer fricção em busca do fogo. O centauro entendeu qual era o objetivo do índio e num movimento imperceptível fez surgir a chama. Enquanto o peixe assava, o índio contou o que sabia da história e costumes de sua gente, e falava grego, sem perceber. Quando o peixe assou, Kalibe o dividiu com o novo amigo. Depois, rindo comentou: é a primeira vez que eu vejo um cavalo comer peixe. Os dois riram e seguiram em direção da cabeceira do rio.

Depois de algumas horas de caminhada avistaram os garimpeiros. Eles já haviam destruído grande parte das margens. Novamente Kirone lançou mão do arco e da flecha, atingindo a gigantesca draga, no meio do rio, fazendo-a desaparecer instantaneamente. A flecha mágica voltou e de novo foi lançada nos equipamentos juntos às margens atingindo também as choupanas. Tudo foi desaparecendo. Os homens, apavorados, gritavam para que fosse salvo o ouro. Mas já era tarde, nada restara dele. Amedrontados e sem entender o que estava acontecendo, mais de cinqüenta garimpeiros fugiram floresta adentro, pelo terreno acidentado. Sem armas e sem comida, com certeza a floresta úmida e quente daria um péssimo final a todos eles. Ao ver pela segunda vez, naquele dia, o poder das flechas de Kirone, Kalibe perguntou-lhe com que raça de macacos eram feitas as pontas das mesmas.

_De onde eu venho não existem macacos. Fazemos as pontas de nossas flechas de marfim.

_Então, talvez esta é causa da morte da nossa gente. Nós confiamos muito no poder dos macacos. Com certeza eles são os culpados de tantas mortes. Nós Yanomamis, sempre fizemos as pontas das flechas com os ossos das pernas de macaco coatá...

Kirone ficou interessado e perguntou por que razão o macaco era culpado das mortes dos silvícolas. O índio então explicou que, freqüentemente, os indivíduos da tribo são picados por cobras. Quando isto acontece, o pajé invoca o espírito de um pássaro pra descobrir o paradeiro do espírito da cobra. Depois o pajé pede ao espírito do macaco pra flechar o espírito da cobra, mas nem sempre o espírito do macaco obedece, pois o macaco fica de brincadeira pelas árvores e esquece de ir flechar o espírito da cobra. Com a demora do macaco, o índio ferido morre. O centauro disfarçou um sorriso diante da narrativa infantil e tão pura, da indefesa criatura. Então decidiu quê, como fizera o seu antepassado Quirão, há milhares de anos na Grécia, ele também transmitiria conhecimentos ao rapaz. Agora estava convencido de que essa era a razão da sua presença naquela selva inóspita. E usando seus poderes, fez Kalibe adormecer e o transportou de Roraima para o Parque Nacional do Pico da Neblina, no alto Rio Negro, no Amazonas. Numa caverna, há quase três mil metros de altura, o manteve profundamente adormecido. Sobre o peito nu do índio, cruzou duas de suas flechas encantadas. Uma o manteria aquecido e alimentado e a outra transmitiria conhecimentos ao jovem.

Kirone se tornou invisível e, sobre uma nuvem, partiu para a aldeia de Kalibe. Urubus sobrevoavam o local. O grupo havia sido dizimado. Era uma comunidade de apenas sessenta e sete indivíduos, a maioria era composta de jovens que seria iniciada no xamanismo, mas havia também algumas crianças. Kirone fez desaparecer todos os corpos, da mesma forma como fez com os peixes do Rio Ericó. A casa coletiva no meio da clareira fora incendiada pelos garimpeiros. Dela só restara cinzas. O jovem centauro devolveu à clareira a forma primitiva. O lugar ficou cheio árvores e cipós entrelaçados. A roça de milho e cará ele preservou, mas sabia que em pouco tempo a floresta a sufocaria.

O centauro prosseguiu sua viagem sobre a Amazônia. Viu a devastação das florestas. Toras de árvores seculares flutuavam sobre as águas dos rios, impedindo a navegação, por quilômetros e quilômetros. Em alguns rios, o assoreamento provocado pela ganância dos garimpeiros retirara a possibilidade de pesca das populações ribeirinhas, brancas ou indígenas. Em algumas partes, viu grupos de índios magros, famintos, a procura de caça. Kirone, penalizado, fez surgir: antas, veados, macacos e outros animais. Os índios olharam-se aturdidos e felizes caçaram e aplacaram a fome. Próximo às cidades, as florestas ardiam. O fogo era provocado pelos fazendeiros de grãos. Eles derrubavam árvores seculares e ateavam fogo no que restava da mata. O ar era quase irrespirável. O centauro pensou em como o homem podia destruir o próprio planeta. A gente daquela região estava promovendo a desertificação da Terra. Nessa altura, ele não podia mais interferir. O homem possui o livre arbítrio, é responsável por suas escolhas, seus atos.

Além da beleza ameaçada do que restara nos Estados do Amazonas, Roraima e Pará, Kirone conheceu a exuberância da fauna e da flora do Pantanal, onde a ação predatória do ser humano, já começava a ser observada. O centauro compreendeu a grandeza do amor do jovem Kalibe por sua terra e se perguntava: por que os silvícolas são capazes de viver em harmonia com o meio ambiente e os chamados “civilizados”, não?
Kirone compreendeu que a sua missão na selva amazônica era a de estabelecer um contato igualitário, ou menos conflitante, entre povos de culturas totalmente diferentes, no caso, primitivos índios e brancos gananciosos. A cultura do centauro podia perfeitamente ser compreendida pelas nações indígenas porque é intrínseca à sensibilidade ancestral da própria mitologia. Para o índio Kalibe se apresentava uma ocasião de comunicação, ele poderia interagir com o branco mantendo seu orgulho, fazendo com que o branco respeitasse verdadeiramente sua cultura, seu território, sua vontade e por fim, a sua liberdade. Kalibe não seria apenas mais um índio no cenário verdejante da Amazônia. Ele seria um líder. A sobrevivência de muitas nações indígenas ia depender do trabalho que no futuro ele iria realizar junto aos órgãos tutelares dos silvícolas.

O Sol se punha no horizonte quando o centauro retornou à gruta onde deixara Kalibe. Muito tempo havia transcorrido. Kirone viu a mudança do jovem. Ele se transformara num forte e alto guerreiro, fugindo ao padrão da raça, composta por indivíduos pequenos. Com um sorriso de aprovação o centauro recolheu a flecha da sabedoria e depois a flecha da vida de sobre o peito do índio. Kalibe despertou e pondo-se de pé, confessou:

_Acabo de sonhar coisas incríveis. Sinto-me capaz de lutar e dizer coisas que eu nunca imaginei. Eu me sinto mais alto e mais forte. Amigo homem-cavalo foi você quem fez isto? Que lugar frio é este? Ou será que eu também estou morto?

_Não! Você não está morto. Você é a realização do sonho de seu pai Wauaré. Venha! Vou mostrar onde você está. – disse Kirone, levando-o na direção da saída da gruta – Vê esta neblina toda? Você está numa caverna no alto da montanha dos ventos. Os brancos, como diz você, chamam esta montanha de Pico da Neblina. Vou afastar as nuvens para que você veja a floresta. – o centauro soprou de leve e como por encanto, o vento e a neblina desapareceram. Das alturas, Kalibe contemplou o horizonte verde e ficou encantado com a beleza que se apresentava diante de seus olhos. Aquele era o seu habitat, o seu mundo. A floresta parecia lhe dar as boas vindas. O rapaz respirou profundamente, enchendo os pulmões com o ar que alcançava as alturas da caverna.

_Como você me trouxe aqui? – quis saber curioso e a seguir corrigiu-se dizendo: – Que pergunta tola a minha, hoje, lá na gruta meu pai Wauaré, disse que você faria coisas por mim. É isto, você é um semideus. Naturalmente não foi nada complicado pra você transportar-me até aqui. – afirmou surpreso com a própria desenvoltura.

_Eu o trouxe nas minhas costas, esqueceu da minha outra metade? – Disse Kirone sorrindo – Você só errou numa coisa: foi a três anos que estivemos na gruta onde estão os restos de seus pais. No meu tempo, os dias são diferentes do seu tempo. Você está agora com vinte e um anos. Descobri que a sua gente não conta o tempo de nascimento, mas é esta a sua idade. Guarde com você este dado. Agora vamos sair daqui, mas antes eu tenho que lhe fazer uma recomendação: todo o conhecimento que eu transmiti a você não poderá ser desvirtuado. Você terá facilidade para falar línguas, para os estudos em geral. Você usará seu conhecimento apenas naquilo que for importante para a sobrevivência das nações indígenas. A cada nova situação você descobrirá maneiras de resolvê-las pacificamente. Eu vou deixá-lo próximo a uma aldeia Yanomami. Infelizmente você tinha razão no tocante ao seu grupo de origem. Ele foi totalmente dizimado no mesmo dia da morte dos seus pais. Nesse novo grupo você encontrará apoio, será reconhecido como um grande xamã, entre a sua gente. Junto ao novo grupo você conhecerá uma linda moça com quem se casará. Os dois irmãos dessa moça serão seus aliados nas lutas que terá pela frente. Aprenda a ouvir e a guardar com você as palavras ditas por seus interlocutores. Use sempre a razão acima de qualquer sentimento. Boa sorte, meu amigo da Terra.

_Eu agradeço a você, amigo homem-cavalo.

_Hoje eu partirei ao encontro da minha graciosa centauresa, Diana. Vou rever o meu amigo Hekite e sua noiva Ngune, cujos nomes na língua da nação Karib, quer dizer: “Bom” e “Lua”. Eu também aprendi muito entre a sua gente. – disse sorrindo – Eu viajei por várias aldeias. Conheci os costumes dos homens da mata, como diz você. Vi também muitas cidades e vilas. E para seu conhecimento, saiba que o homem civilizado não é menos primitivo do que a sua gente.

Kalibe viu-se de novo às margens do Rio Ericó, no Estado de Roraima. Kirone bebia tranqüilo das águas do rio. O índio aproximou-se do centauro e pela primeira vez viu sua nova imagem refletida nas águas. Sem esconder a admiração, indagou ao amigo, chamando-o pelo nome:

_Kirone! Este sou eu mesmo? Como posso ter crescido assim se a minha gente é de estatura baixa? Você fez de mim um guerreiro alto e forte. – a seguir, emocionado, abraçou-se ao amigo “homem-cavalo”, que o fitava divertido.

_“Eis allen tin’ heméran!” (Até um dia!) Kirone, grande amigo. Eu serei o guerreiro que o meu pai disse, graças a você. Eu nasci índio, como nos chamaram os homens que vieram do outro lado do oceano, quando aqui chegaram; mas acima de tudo eu sou humano, tenho até alma, conforme foi reconhecido por Bula papal, em 1537. – falou em tom de ironia.

_Bravo! Você fala grego perfeitamente. E assim será com outras línguas. Você despertou do sono bem determinado, cheio de coragem, fazendo uso do conhecimento adquirido e até com certo humor irônico. Seja feliz, amigo Kalibe. Lute por sua bela terra verde.

_Eycharistéo soi, phìle! (Muito obrigado, amigo). Nunca o esquecerei.

O centauro ajeitou a alça do alforje ao ombro e completou:

_Quando você encontrar dificuldades intransponíveis, vá para o meio da taba, olhe na direção da Constelação de Centauros – disse apontando para o lado onde encontrá-la – e peça sabedoria, aquela que vem do alto, você a obterá. Após essas palavras o centauro desapareceu.

Próximo à aldeia, Kalibe encontrou um posto da Fundação Nacional do Índio, o rapaz olhou com interesse para o mesmo e pensou: “Minha luta vai começar por aqui, na selva mesmo. Vou estudar e aprender todo o sistema das leis dos homens brancos. Eu sei que com isto serei emancipado, como determina a lei tutelar deles. Naquela ocasião perderei minha identidade étnica, não serei nem índio, nem branco, serei aculturado, como são classificados os índios que assimilam a cultura dos civilizados. Se for necessário, farei carreira política. Este é o preço que pagarei pela demarcação das terras Yanomami. Contudo, a minha gente sobreviverá. Eu juro por meu pai Wauaré, por minha aldeia que foi dizimada e por você, amigo centauro”. Kalibe fechou a mão e ergueu o punho para o alto numa jura silenciosa.

Distante, a milhares de estrelas, Kirone contava para seus amigos a nova versão da história do planeta Terra. Definitivamente, os centauros não poderiam ter permanecido nela. E concluiu: “A primeira Tessália continuará sendo apenas uma região da antiga Grécia, onde, o mito sobre os centauros será, para sempre, cantado em prosa e versos pelos poetas.”

FIM

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